'Permissões para poluir não são commodities', afirma Amyra El Khalili.
A economista Amyra El Khalili
busca esclarecer a confusão entre créditos de carbono e commodities ambientais,
e fala ainda sobre a Rio+20, ferramentas de mercado, especulação, conservação e
economia verde.
Reportagens CarbonoBrasil
11/05/2012 - Autor: Fabiano Ávila - Fonte: Instituto CarbonoBrasil
Instituto CarbonoBrasil - Sabemos que o modelo atual de capitalismo predatório
não é o ideal para o desenvolvimento da humanidade, porém, infelizmente, a
única coisa que move a sociedade para agir parece ser o seu bolso. Se as
ferramentas de mercado, colocando um preço nos recursos naturais, não são
adequadas para lidar com a exploração massiva dos ecossistemas como muitos
acreditam, qual seria o melhor modelo?
Amyra El Khalili - A crítica procedente a este
modelo capitalista é justamente no que está sendo precificado, ou seja, os
ecossistemas e os serviços ambientais que são aqueles que a natureza nos
oferece gratuitamente. De fato, quando há escassez, a consequência será a
mercantilização destes ‘recursos naturais’ (como chamamos em gestão ambiental),
das matérias-primas (como chamamos na indústria) ou da megadiversidade e dos
ecossistemas (como chamamos no ambientalismo). Veja você que dei três nomes
diferentes para a mesma coisa! E cada um desses nomes tem um entendimento
diferente do que representam.
Então o que propomos é um novo modelo, onde esta
precificação (formação e preços) seja calculada diretamente no ‘produto’ e não
na matriz ambiental que gera o produto. Quando indicamos as sete matrizes para
produção de “commodities ambientais” (água, energia, biodiversidade,
florestas-madeira, minério, reciclagem e redução de poluentes –água, solo e
ar), estamos falando de “mães ambientais”, dos ecossistemas e de processos de
gestão ambiental e não de ‘comoditizar’ (transformar em mercadorias) estas
matrizes. Pois as matrizes ambientais são bens difusos (de uso público) e
processos (conhecimento e tecnologia) e devem ser administradas pela sociedade
conjuntamente com os governos e iniciativa privada.
Acontece que este modelo econômico do capitalismo
predador entrega a administração, a gestão e os lucros diretamente nas mãos da
iniciativa privada com a conivência e aval dos governos que se submetem a essa
dinâmica neoliberal, transferindo suas responsabilidades para as corporações.
Há soluções quando buscamos o caminho do meio, ou
seja, construindo um novo modelo onde sejam valorizados os conhecimentos
tradicionais, a preservação aliada à conservação ambiental com as comunidades
que vivem nestes habitats naturais. Exemplifico: o doce de goiaba da Associação
das Mulheres Produtoras de Goiaba de Campos dos Goytacazes pode ser uma
“commodity ambiental”. O que deveria ser precificado? A goiabeira? Não. O doce
de goiaba, que é produto gerado da goiabeira. A goiabeira é uma árvore que
pertence à floresta nativa ou a um reflorestamento de espécies exóticas. Esta
árvore é parte do ecossistema. A goiabeira manejada, que tem seus frutos
recolhidos corretamente com o plantio de outra muda no seu entorno, é
naturalmente uma produtora de serviços ambientais, pois, sequestra carbono,
mantém a cobertura vegetal, alimenta animais e aves, recompõe a vegetação
degradada e promove a recarga de aquíferos, entre outras funções. Essa
valoração deve ser contabilizada no produto final que a goiabeira gerou: o doce
de goiaba e o lucro deste doce devem ser divididos entre a Associação de
Mulheres que os produziu. Não é monocultura da goiaba, mas diversificação de
produção. Assim sendo, quando não for tempo de goiaba, passam a produzir doce
de cagaita, e quando não for tempo de cagaita, produzem doce de pequi e assim
por diante. A monocultura gera impactos ambientais. Para manter um serviço
ambiental, é necessário também modificar o modelo de produção e todo complexo
que envolve essa produção. Veja que o modelo econômico contempla uma associação
ou cooperativa, um grupo, e não um investidor capitalista ou multinacional que
produz doce de goiaba para venda industrial em supermercados. Essa é a questão:
quem será beneficiado por cuidar dos ecossistemas e como se dará a gestão e
resultadosobtidos com os ‘ecossistemas’.
Amyra - A 'comoditização', processo de produção e
qualidade para o sistema bursátil (da bolsa de valores) gera altos impactos
ambientais. Exige cada vez mais tecnologias de ponta, como biotecnologia,
geoengenharia, nanotecnologia, maquinário pesado que utiliza cada vez menos mão
de obra, monocultura intensiva e cada vez mais e mais avança fronteiras
agrícolas (soja, milho, cana, café, etc..) e de exploração mineral (petróleo,
minério de ferro, ouro, prata, aço,etc..); é o que chamamos de commodities
convencionais. Se a ‘comoditização’ gera altos impactos ambientais e é
contrária ao processo natural dos ecossistemas em tempo e conservação – por
serem necessárias para atender a demanda do mercado de derivativos altas
escalas de produção, promovendo concentração de riquezas e cada vez empregando
menos – como uma commodity pode ser ambiental?
Para produzir uma ‘commodity ambiental’ é
necessário compreender o que significa ser ambiental, ou seja, atender o
econômico, o social e o ecológico. Assim sendo, o modelo econômico deve ser o
contrário da commodity convencional. Na commodity convencional o sistema
financeiro está no topo do triângulo, pois é quem decide quais serão os
critérios de produção, certificação, contratos mercantis e comercialização das
commodities convencionais; já nas commodities ambientais, o excluído deve estar
no topo deste triângulo, pois os povos das florestas, as minorias, as
comunidades que manejam os ecossistemas é quem devem decidir sobre esses contratos,
critérios e gestão destes recursos, uma vez que a maior parte dos territórios
lhes pertencem por herança tradicional. No meio ambiente urbano, chamamos as
comunidades para decidir sobre estes critérios de produção e todo aparato de
instrumentos econômicos considerando que a favelização, a pobreza, a miséria
que as levam para as regiões de riscos ambientais, como beiras de rios,
encostas de morros, áreas de lixões; enfim, há toda uma discussão com a
sociedade para identificarmos as matrizes ambientais a serem preservadas e
quais seriam os produtos gerados por estas matrizes.
Veja então a confusão conceitual na qual se
chegou: os créditos de carbono são certificados que pretendem (pelo menos em
tese) reduzir a poluição, portanto não são commodities convencionais, já que
poluição não deveria ser mercadoria, e muito menos são commodities ambientais.
Tanto não são, que até o presente momento não existe ainda um arcabouço
jurídico para os créditos de carbono no Brasil. E no exterior são definidos
pela imprensa especializada em finanças e pelos legisladores dos países
europeus que os negociam como ‘permissões para poluir’, com cotas de permissões
autorizadas por seus comitês de regulação.
Portanto, chamar ‘créditos de carbono’ de
‘commodities ambientais’ somente criará confusão conceitual e postergará cada
vez mais a regulamentação desse instrumento econômico, haja vista que todo
operador de commodities sabe perfeitamente que quando opera no mercado spot (à
vista) ou nos mercados futuros (derivativos) está negociando estoque de
produtos e não a redução de estoques, até por que se for redução de estoque
(negativar o produto) não há como realizar uma engenharia financeira nos
mercados de derivativos (futuros). Se no futuro a poluição acabou por que vamos
projetar seu preço?
Assim sendo, se os mercados de derivativos estão
negociando ‘créditos de carbono’ significa que a poluição está sendo tratada
como ‘commodity’ e que não está sendo reduzida a poluição; pelo contrário,
estão projetando no mercado futuro que ainda haverá estoques de carbono na
atmosfera para ser negociado. O que estimulará o aumento da poluição.
E se for comprovado que é desta forma mesmo que
estão negociando os créditos de carbono, como estão denunciando na imprensa
internacional com o caso do HCFC-22 e do HFC-23, os chamaremos de ‘commodity
suja’, mas jamais incorreremos no absurdo conceitual de chamá-los de
‘commodities ambientais’.
Amyra - Confesso que ainda não compreendi como se
dará a ‘operacionalização’ desta Bolsa e quais são as regras adotadas para a
comercialização dos Créditos de Carbono e demais Créditos no estado do Rio de
Janeiro, quais são as salvaguardas, o sistema de compensação, as avaliações de
riscos sistêmicos e nem a engenharia da coisa.
Soube pela imprensa e ainda há pouca informação
para avaliarmos. Não é tão simples formar um mercado regional de créditos de
carbono, de efluentes e dos produtos anunciados pela Bolsa Verde. Fiquei
confusa quando recebi a notícia, pensei que fosse o Programa Bolsa Verde do
Governo Federal, depois em outra notícia o repórter chamava os tais ‘créditos’
de ativos ambientais, de commodities e de valores mobiliários (ações).
Em outra matéria li a declaração de um dos
idealizadores afirmando que todos esses créditos são ‘commodities ambientais’ e
que ainda não existia uma Bolsa de Commodities Ambientais. Com esta declaração
fiquei com a impressão de que estão passando por cima de um debate público
sobre ‘commodities ambientais’ com centenas de relatórios produzidos em
diversos estados brasileiros assinados por centenas e centenas de lideranças
comunitárias, cientistas e ambientalistas. Se for isso mesmo, não nos
surpreende o modus operandi. Recentemente fomos vitoriosos em ação judicial que
moveu o Sindicado dos Economistas no Estado de São Paulo contra a ONG CTA. Foi
comprovado judicialmente todo aparato técnico-científico que envolvem os
direitos autorais sobre o Projeto BECE, originado do Projeto CTA, de minha
autoria. Ganhamos o processo na 1ª e 2ª instância. Uma vitória retumbante
contra um sindicato forte que congrega em torno de 25 mil economistas
paulistas.
Creio que os idealizadores da Bolsa Verde também
estão ignorando que a BovespaBM&F tem o registro junto aos órgãos
reguladores dos créditos de carbono. Eu, pessoalmente, na qualidade de
ex-operadora e ex-consultora de commodities da BMF, acho muito difícil que a
BovespaBM&F abra mão destes royalties. Aliás, se a BovespaBM&F ainda
não fez mais do que está fazendo é porque encontrou falhas nos desenhos destes
instrumentos que podem colocar em risco o seu sistema de salvaguardas.
Prudência faz parte da sabedoria de quem conhece muito bem o que é risco
sistêmico e enfrenta um processo no Caso do Banco Marka e FonteCindam.
ICBr - Considerando o modelo do ETS
californiano, onde apenas uma pequena fatia das cotas de emissões pode ser
suprida com offsets, você acha que seria um modelo mais interessante a ser
seguido?
Amyra - Se ocorrer uma falha no desenho
mercadológico do instrumento econômico lançado no mercado, mesmo que seja em
teste, é muito difícil efetuar correções. O problema está na forma com que os
títulos estão circulando no sistema. Executar arbitragens, desenhar opções nos
derivativos e outras engenhocas para suprir uma falha de risco não modifica
erros estruturais do contrato financeiro.
ICBr - Existem vários casos de fraude e
de especulação nos EU ETS, no MDL e até no REDD. Esses fatos negativos fazem
parte de um aprendizado para deixar essas ferramentas mais sólidas ou elas
possuem tantos problemas fundamentais que continuaremos a ver esse tipo de
coisa?
Amyra - É como disse anteriormente, se o sistema
financeiro compreender estas ‘permissões para poluir’ como ‘commodities’, não
tem mais como fazer correções, pois desencadeará uma série de operações sem
controle. As fraudes ocorrem por que há vácuos na legislação, na implantação,
na regulação e na comercialização. Quando um contrato é aprovado para ser
negociado em Bolsa, tem que ter um estudo de risco sistêmico, a justificativa
de que esse instrumento não causará um dano para a economia. Por este motivo
também é preocupante a movimentação nos mercados voluntários e nos mercados de
balcões (fora das Bolsas). Toda argumentação técnica científica para os
créditos de carbono ancorados no MDL e agora as propostas para o REDD são de
fatores ambientais, mas não de cálculos financeiros compreendendo a dinâmica e
a velocidade com que os mercados negociam. Portanto esse aprendizado, na
prática, pode custar muito caro para o meio ambiente, e se prejudicar sua
credibilidade quem pagará essa conta será a humanidade.
ICBr - A Rio+20 está chegando e muitos
comentam que a conferência já começa enfraquecida, inclusive sem possuir o
devido foco. Qual sua opinião sobre o evento?
Amyra - Novamente as confusões conceituais estão
no foco da questão. Ainda é confuso o conceito de economia verde. Na verdade a
crítica sobre esta expressão ‘economia verde’ se dá por entenderem os
movimentos sociais, ambientalistas e cientistas renomados que é apenas a
reprodução do capitalismo predatório agora sobre as riquezas naturais, sem uma
proposta concreta de mudança no modelo econômico e sem metas estabelecidas que
respeitem os direitos fundamentais, como os princípios acordados na Rio-92: o
Princípio do Poluidor Pagador, o Princípio da Precaução, o Princípio das
Responsabilidades Comuns porém Diferenciadas.
No entanto, a Rio+20 está propiciando uma
discussão salutar sobre a economia que vivemos, que é a economia de mercado
para a economia que queremos. Uma nova economia. Se colocarmos todas as
variáveis na balança, independentemente do resultado final dos documentos que
serão produzidos na Rio+20, estaremos provocando uma discussão fundamental para
iniciarmos o processo de transição do capitalismo predatório para uma economia
justa, socialmente digna, politicamente participativa e integrada e
ambientalmente sustentável. Essa será a esperança do Projeto BECE e a razão de
existir da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras), e
por isso apoiamos a Cúpula dos Povos,
movimento paralelo à Rio+20, como contraponto ao discurso oficial.
ICBr -E como está o projeto BECE-Brazilian Environment
Commodities Exchange (Bolsa Brasileira de Commodities Ambientais) e a Aliança
RECOs?
Amyra - A ONG RECOs – Redes de Cooperação
Comunitária Sem Fronteiras (antiga ONG CTA) – nasceu do projeto de educação
financeira nos mercados de capitais que idealizei e coordenei (1996 a 2003)
para o Sindicato dos Economistas (SP). Este projeto era, a princípio, uma
consultoria para a Bolsa de Mercadorias & de Futuros (1990) na gestão de
Dorival Rodrigues Alves, falecido em 1999, vítima de câncer, um dia antes de
terminar o segundo curso patrocinado pela BM&F para formação dos CTA’s
(Consultants, Traders and Advisors – Geradores de Negócios Socioambientais nos
Mercados de Commodities). Desde sua morte, decidi que este projeto seguiria seu
caminho natural como Organização da Sociedade Civil e hoje como rede
internacional, a Aliança RECOs.
Atualmente, a aliança é uma teia de intensas
relações afetivas (clusters), ou seja, é uma rede solidária unindo produtores e
difusores de informações, com o objetivo de registrar a história do
desenvolvimento sustentável, fomentar e estruturar o mercado de
"commodities ambientais" e "commodities espaciais" desde o
Brasil de um novo modelo econômico para América Latina e o Caribe.
A Aliança RECOs está implantando, há mais de uma
década, o Projeto BECE (sigla, em inglês, de Bolsa de Commodities Ambientais),
que até então era apenas uma proposta, debatida por seis anos em redes
virtuais, com mensagens eletrônicas, palestras, seminários, cursos e atividades
culturais no Brasil e no exterior. O nome está em inglês em função também da
linguagem financista universal e, em especial, por uma saudável provocação ao
Banco Central, pois o codinome BECE significa: B de Banco, E de Ecologia, C de
Central, e E de Economia. Hoje, a Aliança RECOs conta com a parceria de
centenas de lideranças, entidades e instituições de peso nacional e
internacional.
O estudo técnico-científico de origem brasileira
ocorreu no final de 1989 e começo de 1990, motivado pela concentração de riscos
nos mercados de futuros, chamados derivativos, quando um grupo de operadores de
commodities convencionais discutia o quanto ganhavam seus clientes e,
proporcionalmente, quantas pessoas morriam nas guerras para cada dólar lucrado
nas bolsas de commodities e futuros com petróleo, metais e moedas. Fizemos,
então, uma aposta: quem conseguiria desenvolver uma engenharia financeira que
invertesse o modelo ortodoxo das operações financeiras e, ao invés de ganhar
com a morte, criar um mecanismo que oferecesse ganhos com as vidas de mais e
mais pessoas. Destes apostadores, fui a única pessoa que sobreviveu e levou a
aposta adiante (meus amigos faleceram em acidentes, cometeram suicídio ou tiveram
enfarto porque não aguentaram a pressão dos mercados).
BECE é um Projeto Open (construído abertamente) e
somente caminha com consulta e participação pública. Não decidimos nada,
absolutamente nada a portas fechadas. Entendemos que mais importante do que desenvolver
Bolsas de Valores e de Commodities era construir e implantar um novo modelo
econômico para América Latina e o Caribe, formando redes de cooperação
técnico-científicas alicerçadas no tripé: educação, informação e comunicação.
Também concluímos que não precisamos de uma Bolsa de Commodities Ambientais,
mas de uma Aliança como é a RECOs – Rede de Cooperação Comunitária Sem
Fronteiras com o tripé: legitimidade, credibilidade e ética. Sem estes tripés
solidificados não há como formar novos mercados emergentes e atender as
reivindicações da sociedade, ou seja, nenhuma economia se sustenta!
ICBr - O Brasil é apontado, até por toda
a sua riqueza natural, como um berço perfeito para a chamada economia verde. O
que falta para vermos esse conceito virar realidade?
Amyra - Pois é essa a preocupação que temos! Se o
conceito ‘economia verde’ caminhar na direção da apropriação dos recursos
naturais via mecanismos financeiros será uma tragédia, mas se conseguirmos
chegar a um entendimento de que podemos promover uma nova economia o Brasil sem
dúvida estará à frente de uma revolução estrutural de todo sistema financeiro
mundial. Temos propostas, ideias e competências na ciência, na academia, nos
mais diversos setores da sociedade e uma vontade enorme com entusiasmo, que é
da característica peculiar de sermos brasileiros, apaixonados pela vida e
acolhedores. Temos o que muitos já não têm: natureza e solidariedade. E somente
conseguiremos avançar 20 anos na frente desta conferência no Rio de Janeiro se
os jornalistas ambientalistas e investigativos forem capazes de traduzir todos
esses conceitos e propostas, como está fazendo nesta entrevista o site do
Instituto CarbonoBrasil.
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