Ensaio sobre a cegueira ambiental e social.
Por Dra. Débora F. Calheiros
http://lattes.cnpq.br/6343238272229162
Parafraseando José Saramago, tomo a liberdade de
comparar o universo criado pelo autor com o que vivemos atualmente às vésperas
da Rio + 20. O Brasil poderia estar à frente em termos mundiais, dando exemplo
de como conservar seu patrimônio natural, crescer economicamente de forma
qualitativa, detentor do que deveria ser uma combinação eficiente: uma das
maiores reservas de biodiversidade e de água do planeta, associadas a uma
legislação ambiental primorosa. Contudo fez opção pelo oposto.
A revisão do Código Florestal deveria ser
elaborada sim, atendendo às inovações tecnológicas e ao aumento do conhecimento
científico. Óbvio. Mas não da forma que foi feita, de forma meramente política
para atender um setor privilegiado econômica e politicamente da sociedade
brasileira, com objetivos meramente econômicos e de curtíssimo prazo. Deveria
ter sido feita com base na Ciência, com “C” maiúsculo, como o foi à época
realizado o Código das Águas (1934) e o Código Florestal (1969), editados por
um Ministério da Agricultura à frente de seu tempo e preocupado com a
conservação dos recursos hídricos e naturais indispensáveis à própria atividade
agrícola.
Muitos já falaram sobre isso. Muitos cientistas
do mais alto gabarito deste país. Desde Aziz Ab’Saber (USP) a J. G. Tundisi
(IEE), Luiz A. Martinelli (CENA-USP), Carlos A. Joly (UNICAMP), Carlo Nobre
(INPE), Gerd Sparovek (ESALQ-USP), Jean P. Metzger (IB-USP), Yara
Schaeffer-Novelli (IO-USP), Maria T. F. Piedade (INPA), Wolfgang J. Junk (INAU
- Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Áreas Úmidas/UFMT), Paulo T. de
Sousa Jr. (INAU/UFMT), Catia N. da Cunha (INAU/UFMT), Ennio Candotti (Museu da
Amazonia), P. Girard (INAU/UFMT), L. Casssati (UNESP) entre vários outros, além
de programas de pesquisa importantíssimos como o Biota FAPESP e o próprio INAU,
bem como instituições que deveriam ser referência como a Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC), a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e,
salienta-se, até a própria agência governamental das Águas (ANA). De minha
parte, humildemente, também me incluo neste grupo, como doutora em Ciências,
pesquisadora da área de Limnologia (estudo de ambientes aquáticos
continentais), Ecotoxicologia (contaminação ambiental por pesticidas) e
Etnoecologia (estudo do conhecimento das comunidades e povos tradicionais sobre
o funcionamento ecológico de seus ambientes), especificamente na área de
ecologia de rios e planícies de inundação do Pantanal Mato-Grossense há mais de
20 anos.
Pergunta-se: Para que serve, então, a Ciência?
Para que milhões de reais são gastos em pesquisa, em programas de pós-graduação
para a formação de novos cientistas na área de recursos hídricos e ecologia? O
que acontece com um país que renega e desrespeita a opinião unânime de seus
mais importantes cientistas, em pleno Século XXI e não no obscurantismo
medieval ou ditatorial, mas sim, acredita-se, em plena vigência da democracia?
E tudo isso, pasmem, às vésperas da Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável (Rio + 20), com o país e o mundo clamando por
melhor qualidade de vida e sustentabilidade?
Mais de dois milhões de assinaturas de
brasileiros clamando pelo Veto. Manifestações veementemente críticas de ONGs de
importância nacional e internacional, de movimentos sociais como a Via
Campesina, dos ex-ministros do Meio Ambiente, da OAB e de tantos outros
congregados num movimento histórico denominado Comitê Brasil em Defesa das
Florestas e do Desenvolvimento Sustentável. Posição unânime de cientistas
renomados. Mas nada disso vale quando não há sensibilidade política para a
causa humanista, base da conservação ambiental, optando-se por garantir
novamente o privilégio de poucos em detrimento de toda a sociedade e reforçando
incoerentemente a pobreza. Como diria Juan M. Alier em seu “Ecologismo dos
Pobres” (1992): apropriação e exploração inconsequentes dos recursos naturais
pelas leis capitalistas de mercado.
Contudo a liberdade de expressão científica e
cidadã foram asseguradas. Todos os cientistas puderam se manifestar livremente
e oficialmente sobre o tema. Já esta prerrogativa não nos foi autorizada. O que
faço aqui pode gerar ainda mais represálias. Mas entendo que a liberdade de
expressão é assegurada constitucionalmente e na Declaração Universal de
Direitos Humanos, e a liberdade de pensamento e expressão científicos são, além
de base filosófica da Ciência, um direito e um dever profissional. Um dever de
todos os gestores e órgãos públicos como determina o Artigo 225 da Constituição
Federal e o Código de Ética Profissional dos servidores em órgãos da
Administração Pública: “VIII - Toda pessoa tem direito à verdade. O servidor
não pode omiti-la ou falseá-la, ainda que contrária aos interesses da própria
pessoa interessada ou da Administração Pública. Nenhum Estado pode crescer ou
estabilizar-se sobre o poder corruptivo do hábito do erro, da opressão ou da
mentira, que sempre aniquilam até mesmo a dignidade humana quanto mais a de uma
Nação”. No entanto, a empresa na qual trabalho, a Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA, ligada ao Ministério da Agricultura, ícone da
pesquisa agropecuária de nosso país, proibiu institucionalmente desde out./2010
seus pesquisadores de se manifestarem oficialmente no que se refere ao Código
Florestal e “outros assuntos polêmicos”, “evitando conflitos com a posição
oficial da instituição”,contrariando, inclusive, o seu próprio Código de Ética.
Este fato foi noticiado na grande imprensa à época quando da realização de uma
Audiência Pública sobre o tema no Senado Federal em fev./2011. Recentemente
(mar./2012), antes mesmo da aprovação do novo Código na Câmara Federal ou da
sanção ou veto da Presidente, fomos informados por meio do Documento “Embrapa
2012 - Ano Embrapa para uma Agricultura Mais Verde” que a mesma “reconhece e
fortalece as responsabilidades sociais e ambientais” e busca o fortalecimento
da gestão que considera de “vanguarda”por meio “da implementação de ações
sustentáveis, incluindo a obediência ao novo Código Florestal”. Isso renegando
e ocultando um parecer técnico de seu próprio corpo de cientistas “Síntese da
Pesquisa Agropecuária na Embrapa e a Proteção Ambiental” (jul/2009), que
obviamente corrobora as opiniões dos demais cientistas da área, tendo cuidado
especial para as pequenas propriedades, a grande maioria das propriedades
rurais do país. Ou seja, a influência política do setor agropecuário também
inibe, pressiona e censura a Ciência, numa empresa pública de pesquisa, que
utilitariamente e docilmente (parafraseando um artigo crítico à instituição de
Araújo e colaboradores, publicado em 2011: http://www.scielo.br/pdf/rap/v45n3/10.pdf)
consente e se omite em um debate crucial para a sustentabilidade da agricultura
e, portanto, ambiental do país.
Tudo isso demonstra quão frágil ainda é a
democracia e as instituições governamentais brasileiras em relação à influência
do capital em se apoderar dos recursos naturais em detrimento do conjunto da
população brasileira, daí o fato notório de estarmos na 7ª posição em termos de
economia mundial e na 84ª em termos de distribuição de renda. Apesar de alguns
avanços, pouco mudamos neste aspecto desde a colonização. Cegueira
irresponsável, social e ambiental, censurando e perseguindo cientistas, em
pleno Século XXI.
Na verdade não está sendo apenas um embate entre
ideias ruralistas e ambientalistas, mas entre ruralistas e cientistas, mas com
exceção desta importante instituição pública de pesquisa de grande relevância
para a produção de alimentos para o Brasil. Na verdade, trata-se de um debate
entre ruralistas e uma parte significativa da sociedade brasileira, que deveria
ser respeitada com base no Artigo 225 da nossa Constituição: “Todos têm direito
ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.”
Fonte para edição no Rema:
Ruben Siqueira - siqueira.ruben@gmail.com
Comissão Pastoral da Terra / Bahia
Articulação Popular São Francisco Vivo
www.saofranciscovivo.com.brRuben Siqueira - siqueira.ruben@gmail.com
Comissão Pastoral da Terra / Bahia
Articulação Popular São Francisco Vivo
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