Seca revisitada.
Pesquisadores explicam origem do fenômeno que atinge
semiárido nordestino e comentam suas consequências sociopolíticas.
http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2013/308/seca-revisitada
Por: Henrique Kugler
Publicado em 24/10/2013 | Atualizado em 24/10/2013
“A caatinga estendia-se, de um
vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas”, escreve
Graciliano Ramos em ‘Vidas secas’. Hoje, porém, não se vê o êxodo em massa de
camponeses. (foto: Leo Nunes/ Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0)
Sol escaldante no semiárido nordestino. A
inclemência das secas há tempo arrasa a terra e a vida do sertanejo. Ainda
assim, “apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de
terríveis episódios, ele alimenta a todo transe esperanças de uma resistência
impossível”, narrou Euclides da Cunha (1866-1909) em Os sertões. Esse
texto é de 1902. De lá para cá muito mudou, mas ainda hoje a complexidade do
sistema climático continua a desafiar a ciência; e as consequências da seca na
região ainda nutrem acirrados debates entre acadêmicos, técnicos e gestores.
Como entender a origem das agruras climáticas que
afligem o Nordeste de nosso país? “As secas costumam ser ocasionadas por dois
fenômenos climatológicos de escala global”, explica o climatologista José A.
Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O primeiro deles
é o El Niño. Trata-se de um aquecimento incomum das águas superficiais do
oceano Pacífico – o que origina, na costa oeste da América do Sul, índices de
evaporação e precipitação bastante elevados.
E, por incrível que pareça, essa mudança
ocasional em um oceano distante é capaz de alterar, também, os padrões de
circulação atmosférica no território brasileiro. Uma das consequências do El
Niño é o decréscimo – por vezes radical – no regime das chuvas sobre o Nordeste
de nosso país. A periodicidade desse fenômeno natural é incerta, mas ele
costuma ocorrer em ciclos de dois a sete anos.
Por incrível que pareça, uma
mudança ocasional em um oceano distante é capaz de alterar, também, os padrões
de circulação atmosférica no território brasileiro
O segundo fenômeno responsável pelas sucessivas
secas na região tem um nome ligeiramente mais complicado: é o que
climatologistas chamam de variação do gradiente de temperatura da superfície do
Atlântico Tropical. O conceito é bastante simples. De tempos em tempos, as
águas do Atlântico Tropical Norte – região oceânica entre o Equador e a
latitude 15° Norte – ficam mais aquecidas que as águas do Atlântico Tropical
Sul – localizado entre o Equador e a latitude 15° Sul. Isso acarreta notórias
alterações nas zonas de precipitação.
“Onde temos águas mais quentes, há mais
evaporação; e maiores taxas de evaporação favorecem a formação de chuvas”,
ensina Marengo. Quando as águas do norte se aquecem, portanto, a precipitação
tende a se concentrar por lá – abandonando parte do Atlântico Tropical Sul e
reduzindo significativamente o índice pluviométrico do Nordeste do Brasil.
É comum confundir os conceitos de seca e
estiagem. Vale o esclarecimento. “O clima da região Nordeste é semiárido, o que
significa que o ano é dividido em estações chuvosas e estações de estiagem”,
explana Marengo. “Seca é quando não chove nos meses em que deveria chover.” No
caso do semiárido nordestino, há expectativa de chuva entre janeiro e junho; e
ausência de precipitação é esperada entre julho e dezembro.
“Com nossos sistemas de
previsão meteorológica, somos cada vez mais capazes de predizer os períodos de
seca”, afirma Marengo (ver ‘Incertas, mas previsíveis’). “Mas não podemos
prever seus impactos, pois a falta d’água costuma trazer sérias consequências
sociais e políticas.”
Incertas,
mas previsíveis
Predizer o clima e o tempo é
sempre um desafio para a ciência. “Mas, no caso das secas do Nordeste, os
índices de acerto nas previsões têm sido bastante satisfatórios”, comenta
Marengo. “Estações meteorológicas automáticas distribuídas nos mares e no
continente coletam dados precisos sobre temperatura, pressão e diversas outras
variáveis climatológicas”, que permitem aos meteorologistas elaborar cenários com
grau razoável de confiabilidade.
Atualmente, porém, mesmo com sistemas sofisticados, não somos capazes de prever o tempo com mais de três meses de antecedência. Por exemplo: em setembro, pode-se ter alguma acurácia nas previsões para outubro, novembro e dezembro. A previsão oficial do governo para o Nordeste é anunciada normalmente em janeiro – quando já se sabe como será o regime de chuvas durante os meses de fevereiro, março e abril.
Uma curiosidade: ainda hoje vivem os chamados ‘profetas da chuva’ – figuras locais que, entre o misticismo e a tradição, lançam palpites sobre o regime pluviométrico do sertão. Marengo confidencia: em algumas reuniões entre meteorologistas, esses inusitados magos do semiárido são convidados a participar. “Em muitos casos, o que eles especulam por métodos tradicionais se aproxima do que nossa ciência prevê”, comenta o pesquisador. “Não há nada de errado no fato de a ciência dar ouvidos à experiência.”
Atualmente, porém, mesmo com sistemas sofisticados, não somos capazes de prever o tempo com mais de três meses de antecedência. Por exemplo: em setembro, pode-se ter alguma acurácia nas previsões para outubro, novembro e dezembro. A previsão oficial do governo para o Nordeste é anunciada normalmente em janeiro – quando já se sabe como será o regime de chuvas durante os meses de fevereiro, março e abril.
Uma curiosidade: ainda hoje vivem os chamados ‘profetas da chuva’ – figuras locais que, entre o misticismo e a tradição, lançam palpites sobre o regime pluviométrico do sertão. Marengo confidencia: em algumas reuniões entre meteorologistas, esses inusitados magos do semiárido são convidados a participar. “Em muitos casos, o que eles especulam por métodos tradicionais se aproxima do que nossa ciência prevê”, comenta o pesquisador. “Não há nada de errado no fato de a ciência dar ouvidos à experiência.”
Literatura e realidade
A figura clássica do retirante talvez não exista
mais. O camponês castigado pela falta d’água, com seu gado magro a definhar na
caatinga, é parte de um momento pretérito que, ao que tudo indica, foi
superado. Pelo menos em parte. “Não vemos mais aquele êxodo em massa, como
retratado em Vidas secas, de Graciliano Ramos [1892-1953]”, comenta o
engenheiro Marcos Freitas, da Agência Nacional de Águas (ANA). Nos idos
passados, levas de nordestinos deixavam suas terras e rumavam para as grandes
cidades. Hoje, no entanto, a vida dos sertanejos parece menos difícil. “Parte
desse sucesso se deve às políticas governamentais de incremento de
disponibilidade hídrica”, diz o engenheiro da ANA.
Açudes, cisternas,
carros-pipa. São algumas das principais estratégias adotadas nas últimas
décadas para atenuar a falta d’água em muitos municípios do semiárido. Méritos
ao Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), vinculado ao
Ministério da Integração Nacional (MIN). “É preciso reconhecer os avanços, sim,
mas estamos distantes de uma situação ideal e ainda há muito a se fazer”,
pondera Freitas.
Amanhecer semiárido
Especialistas estão de acordo: “O que caracteriza
a seca no semiárido nordestino não é a falta pura e simples de água, e sim a
forma lotérica como as chuvas se distribuem no tempo e no espaço”, explica o
engenheiro agrônomo João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco. Um só trimestre
pode registrar até 90% da precipitação anual.
“Desafio, portanto, é armazenar essa água de
maneira eficiente e segura para que ela seja distribuída de maneira igualitária
durante o ano”, diz Freitas. “Mas não basta armazenar; é preciso atentar para a
qualidade da água estocada”, alerta. Esgoto nos rios, resíduos sólidos a poluir
cursos d’água são alguns dos problemas que insistem em permanecer em pauta –
não somente no Nordeste, mas em todo o Brasil. “Tratamos apenas algo em torno
de 60% de nossos esgotos”, diz Freitas.
Nas últimas décadas, muitos municípios do
semiárido têm adotado estratégias para atenuar a falta d’água, como o uso de
açudes, cisternas e carros-pipa. (foto: Ana Paula Couto/ MIN)
Outro desafio, segundo ele, é incentivar o uso
mais racional dos recursos hídricos na agricultura do semiárido. Os sistemas
convencionais acarretam desperdício notório de água. “Por isso devemos
incentivar a irrigação por gotejamento ou microaspersão”, sugere o engenheiro.
“São muito mais eficientes, pois evitam perdas por evaporação.”
O terceiro grande desafio, para Freitas, é o
abastecimento de populações difusas. Aglomerados urbanos, em geral, contam com
infraestrutura hídrica satisfatória. Mas habitantes de paragens remotas sofrem.
“Longas caminhadas, quilômetros a fio com uma lata na cabeça para buscar água;
isso ainda acontece”, lamenta Freitas.
Dado desolador: segundo o
engenheiro da ANA, no Brasil perde-se de 30% a 40% de água nos processos de
distribuição. Motivo: infraestrutura precária – vazamentos, tubulações
avariadas, desvios clandestinos...
Sertão: retrato institucional
A última seca do Nordeste foi registrada em 2012.
E os baixos índices pluviométricos de 2013 confirmam: esta seca ainda perdura.
Quanto a 2014, pouco se sabe. Previsões de janeiro poderão trazer melhores
notícias. Ou não. Segundo Marengo, as secas tendem a durar de um a dois anos.
Não é incomum, entretanto, que se estendam por tempo maior. Na década de 1950,
por exemplo, a terra sedenta do semiárido permaneceu sob esse regime implacável
por nove anos.
Freitas: “O avanço do
conhecimento divide as ciências, mas devemos superar a visão compartimentada do
saber para solucionar os problemas do semiárido nordestino”
“Mas hoje, mesmo no segundo ano consecutivo da
seca, os habitantes da região não têm tido graves problemas de abastecimento”,
observa Freitas. É a prova, segundo ele, de que as políticas públicas estão
funcionando a contento. “Recentemente, o governo federal ampliou as medidas ao
anunciar um aporte de R$ 9 bilhões em uma série de iniciativas, como a
prorrogação das operações de crédito rural, a renegociação das dívidas
agrícolas e a expansão dos programas Bolsa Estiagem, Garantia-Safra e Operação
Carro-Pipa”, informou o MIN à Ciência Hoje. As ações devem atender a
mais de 10 milhões de pessoas que vivem nas regiões afetadas pela
imprevisibilidade do clima.
“Mas, infelizmente, é comum haver descontinuidade
entre um governo e outro”, aponta o engenheiro da ANA. “Um estado ou município
pode ter boa estrutura institucional durante um mandato; mas ela pode ser
totalmente desmobilizada no governo seguinte.” Para Freitas, as instituições
ainda funcionam de forma precária – sem um quadro efetivo de servidores permanentes
e concursados.
Para os pesquisadores, a
solução para o semiárido requer visão integrada. “O meteorologista preocupa-se
com as chuvas; o agrônomo com as culturas agrícolas; o hidrólogo com a vazão
dos rios; o economista com os impactos econômicos; e o político poderia
auxiliar no planejamento orçamentário e nas negociações de questões
federativas”, aponta o engenheiro da ANA. “O avanço do conhecimento divide as
ciências, mas devemos superar a visão compartimentada do saber para solucionar
os problemas do semiárido nordestino.”
A
contenda do velho Chico
Impossível falar de seca no
Nordeste sem mencionar a transposição do rio São Francisco. A obra é das mais
polêmicas – e tem dividido opiniões desde o início. Um dos maiores críticos ao
projeto é o engenheiro João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Segundo ele, a transposição é
uma grande fraude técnica. “Ela permanecerá no imaginário como a solução
para a seca, e não é”, censura Abner. “Essa obra não vai terminar nunca.” O
governo rebate: o MIN informou à Ciência Hoje que
a obra estará concluída em 2015.
Um dos pontos de disputa é o fato de que a transposição, segundo seus críticos, é uma obra que beneficiará o grande capital – grandes propriedades agrícolas e industriais –, e não as populações difusas que carecem de abastecimento. “Não é verdade”, contra-argumenta o MIN. “Os canais dos eixos Leste e Norte, por exemplo, levarão a água do São Francisco para 325 comunidades difusas.” Segundo Abner, entretanto, são os financiamentos de campanhas eleitorais – por parte das empreiteiras responsáveis pela obra – que motivam a controversa transposição.
Um dos pontos de disputa é o fato de que a transposição, segundo seus críticos, é uma obra que beneficiará o grande capital – grandes propriedades agrícolas e industriais –, e não as populações difusas que carecem de abastecimento. “Não é verdade”, contra-argumenta o MIN. “Os canais dos eixos Leste e Norte, por exemplo, levarão a água do São Francisco para 325 comunidades difusas.” Segundo Abner, entretanto, são os financiamentos de campanhas eleitorais – por parte das empreiteiras responsáveis pela obra – que motivam a controversa transposição.
Ciência Hoje/ RJ
Texto originalmente publicado na CH 308 (outubro de 2013).
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