Pesquisador João Suassuna contesta irrigação de cana no Semiárido defendida por ministro.
No último dia 9, o Jornal do Commercio de Pernambuco publicou a matéria “Irrigação terá 5 bilhões”, na qual o ministro da Integração, Fernando Bezerra Coelho, anunciou um projeto nacional de irrigação no Semiárido do Nordeste para viabilizar a “nova fronteira da cana-de-açúcar”.
Site Rema Atlântico |
Verônica Pragana - Asacom |
24/08/2011 |
No último dia 9, o Jornal do Commercio de Pernambuco publicou a matéria “Irrigação terá 5 bilhões”, na qual o ministro da Integração, Fernando Bezerra Coelho, anunciou um projeto nacional de irrigação no Semiárido do Nordeste para viabilizar a “nova fronteira da cana-de-açúcar”.
“O ministro defendeu que essa área por onde vão passar os projetos de irrigação “é a nova fronteira da cana-de-açúcar e o Semi-árido do Nordeste atende a lógica da geração do etanol”. Pelos cálculos do ministério, dos 200 mil hectares a serem irrigados, 100 mil deles poderão ser ocupados com a cana-de-açúcar.”, revela um trecho da reportagem.
Para debater sobre esse projeto, a Asacom entrevistou o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, especialista no estudo hidrológico do Semiárido, autor do livro “A transposição do Rio São Francisco na perspectiva do Brasil real” e tem mais de 80 artigos publicados, muitos dos quais sobre o projeto de transposição.
O que o senhor acha de plantar cana irrigada no Semiárido?
João Suassuna - O Rio São Francisco é um rio de múltiplos usos, tem uma importância enorme na geração de energia no Nordeste. Já temos mais de 10 mil megawatts de potência instalada no rio. A região é uma grande importadora de energia. No ano de 2010, o sistema Chesf gerou seis mil megawatts médios e a região precisou de oito mil megawatts médios. Ou seja, o rio São Francisco já não atende a geração de energia do Nordeste. Temos que consumir energia vinda de fora. Nós também temos um parque irrigável importante na margem do rio São Francisco, algo em torno de 800 [mil] a um milhão de hectares, dos quais 340 mil já estão irrigados, isso já leva uma fatia enorme da água do São Francisco.
Numa hora em que o São Francisco já não dispõe de volume pra gerar a energia necessária no Nordeste, na hora em que temos um parque de irrigação que cresce essa área a 4% ao ano e já existem projetos em carteira que não vão pra frente porque o rio São Francisco não dispõe de volume pra atender a irrigação daquela área prevista, nessa hora se quer tirar água para irrigar o oeste de Pernambuco, que se fala em 160 mil hectares, dos quais 80 mil só com cana de açúcar. Isso, fisicamente, é impossível atender com os volumes do São Francisco atuais a essa área que estão pretendendo irrigar. A cana de açúcar é um vegetal muito eficiente em pegar os gases atmosféricos e os nutrientes do solo para transformar em sacarose, mas precisa de muita, muita água.
Seguramente, não vamos contar com os volumes [de água] do São Francisco primeiro para atender as demandas de energia e irrigação que já vinham sendo feitas e, agora, querer irrigar mais 160 mil hectares, 80 mil só com cana de açúcar? Fisicamente, isso vai ser impossível.
Asacom - Quando o senhor fala deste parque de irrigação, o senhor inclui o a irrigação prevista no projeto de transposição do São Francisco?
João Suassuna - Não. Porque esta irrigação prevista no projeto de transposição é no Nordeste Setentrional, é fora da bacia do rio, são 350 mil hectares a mais. Isso só tem a agravar o problema.
Eu tenho estudado a questão da transposição há 16 anos, tenho mais de 80 artigos circulando na internet e no ano de 2010 escrevi um livro aproveitando todo esse acervo de informação gerado por mim. Falo, neste livro, sobre as debilidades do São Francisco em oferecer volumes para atender a tudo isto. Já tem a irrigação, a geração de energia no Nordeste e querer levar as águas para atender a 12 milhões de pessoas que estão sedentas e ainda irrigar 350 mil hectares nas margens dos canais, é outra coisa que vai ser impossível. Estou mostrando que existem alternativas mais interessantes.
O próprio governo federal mostrou estas alternativas com a edição do Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água, que é um trabalho que está sendo coordenado hoje pela ANA [Agência Nacional de Águas]. É um trabalho que, com metade do custo previsto para a transposição - com R$ 3,3 bi quando a transposição estava prevista no primeiro momento no valor de R$ 6,6 bi - abastece algo em torno de 34 milhões de pessoas no Nordeste, enquanto a transposição visa o beneficiamento de 12 milhões de pessoas. É um projeto socialmente mais abrangente. E, pra surpresa nossa, quem foi priorizado no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) não o foi o Atlas e sim a transposição.
Asacom - Mas esse projeto de transposição revela um modelo de desenvolvimento econômico concentrador das riquezas...
João Suassuna - Pois é. Essa água seguramente não vai atender a quem mais precisa no Nordeste, que é a população difusa, que vive nos pequenos lugarejos, nos sítios, nas propriedades, nos grotões. Essa população, que hoje é assistida por frotas de carros-pipa, ela não vai ver uma gota da água do São Francisco porque essa água, quando abastecer as principais represas do Nordeste, vai ser utilizada pelo grande capital. É um modelo de concentração de renda para os grandes. Os pequenos, as populações difusas, vão continuar sendo assistidas por frotas de caminhões pipa. No nosso modo de entender é exatamente aí onde reside a indústria da seca.
Asacom - De que maneira a sociedade pode se organizar para fazer resistência ao projeto de irrigação de cana no Semiárido?
João Suassuna - Já existe uma ação que no meu modo de entender é muito importante. Foi feito o zoneamento da cana-de-açúcar pela Embrapa, que excluiu a cana-de-açúcar irrigada dos limites do Semiárido porque [a região] não dispõe de volume suficiente [de água] pra praticar esse tipo de cultivo. Antes de se propor um projeto maluco como esse de se tirar água da represa de Sobradinho pra irrigar 160 mil hectares no oeste de Pernambuco, tem que se observar os trabalhos já feitos por órgãos oficiais, como a Embrapa. Se existe um trabalho de zoneamento agrícola que exclui a cana de açúcar dos limites do Semiárido, por que se propor a irrigação de 80 mil hectares de cana no Semiárido? Isso não tem sentido.
Asacom - E ainda há os impactos ambientais de uma monocultura num solo suscetível à desertificação...
João Suassuna - Os solos do Semiárido são solos dificílimos de serem trabalhados, porque nós temos 70% do Semiárido com uma geologia que chamamos de cristalino. A rocha que dá origem ao solo está praticamente na superfície, em alguns lugares chega a aflorar. Esses tipos de solos são difíceis de serem drenados. E essa região tem uma evapotranspiração muito acentuada, evapotranspira no Nordeste seco mais de dois mil milímetros por ano, numa região que chove até 800 [milímetros]. Se você observar diretinho chove mais de baixo para cima do que de cima pra baixo. E se não houver uma assistência técnica adequada, o cidadão que pegar água do São Francisco e começar a irrigar e não se preocupar com a drenagem, vai ter um insucesso tão grande e, a curto prazo, vai começar a salinizar toda a região. Isso é uma coisa que estamos começando a divulgar neste momento.
O que se deveria estar sendo feito hoje no governo Dilma e já tinha questionado isso no governo Lula, era primeiro partir para revitalizar toda a bacia do São Francisco, que está completamente degradada, já não temos mais matas ciliares, as matas estão virando carvão. Em todo o oeste de Pernambuco tem uma jazida de gipsita, que é transformada em gesso sob o uso da lenha da Caatinga. Naquela região, que faz parte da bacia do são Francisco, já não tem mais Caatinga. A gente teria que prestar mais atenção e investir todas as nossas fichas nisso aí e não tirar água do rio para abastecer o povo que nós sabemos que não vai ser abastecido e sim essa água vai ser direcionada para o grande capital, é a criação de camarão, é a irrigação em grande escala e por aí vai.
O que o senhor acha de plantar cana irrigada no Semiárido?
João Suassuna - O Rio São Francisco é um rio de múltiplos usos, tem uma importância enorme na geração de energia no Nordeste. Já temos mais de 10 mil megawatts de potência instalada no rio. A região é uma grande importadora de energia. No ano de 2010, o sistema Chesf gerou seis mil megawatts médios e a região precisou de oito mil megawatts médios. Ou seja, o rio São Francisco já não atende a geração de energia do Nordeste. Temos que consumir energia vinda de fora. Nós também temos um parque irrigável importante na margem do rio São Francisco, algo em torno de 800 [mil] a um milhão de hectares, dos quais 340 mil já estão irrigados, isso já leva uma fatia enorme da água do São Francisco.
Numa hora em que o São Francisco já não dispõe de volume pra gerar a energia necessária no Nordeste, na hora em que temos um parque de irrigação que cresce essa área a 4% ao ano e já existem projetos em carteira que não vão pra frente porque o rio São Francisco não dispõe de volume pra atender a irrigação daquela área prevista, nessa hora se quer tirar água para irrigar o oeste de Pernambuco, que se fala em 160 mil hectares, dos quais 80 mil só com cana de açúcar. Isso, fisicamente, é impossível atender com os volumes do São Francisco atuais a essa área que estão pretendendo irrigar. A cana de açúcar é um vegetal muito eficiente em pegar os gases atmosféricos e os nutrientes do solo para transformar em sacarose, mas precisa de muita, muita água.
Seguramente, não vamos contar com os volumes [de água] do São Francisco primeiro para atender as demandas de energia e irrigação que já vinham sendo feitas e, agora, querer irrigar mais 160 mil hectares, 80 mil só com cana de açúcar? Fisicamente, isso vai ser impossível.
Asacom - Quando o senhor fala deste parque de irrigação, o senhor inclui o a irrigação prevista no projeto de transposição do São Francisco?
João Suassuna - Não. Porque esta irrigação prevista no projeto de transposição é no Nordeste Setentrional, é fora da bacia do rio, são 350 mil hectares a mais. Isso só tem a agravar o problema.
Eu tenho estudado a questão da transposição há 16 anos, tenho mais de 80 artigos circulando na internet e no ano de 2010 escrevi um livro aproveitando todo esse acervo de informação gerado por mim. Falo, neste livro, sobre as debilidades do São Francisco em oferecer volumes para atender a tudo isto. Já tem a irrigação, a geração de energia no Nordeste e querer levar as águas para atender a 12 milhões de pessoas que estão sedentas e ainda irrigar 350 mil hectares nas margens dos canais, é outra coisa que vai ser impossível. Estou mostrando que existem alternativas mais interessantes.
O próprio governo federal mostrou estas alternativas com a edição do Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água, que é um trabalho que está sendo coordenado hoje pela ANA [Agência Nacional de Águas]. É um trabalho que, com metade do custo previsto para a transposição - com R$ 3,3 bi quando a transposição estava prevista no primeiro momento no valor de R$ 6,6 bi - abastece algo em torno de 34 milhões de pessoas no Nordeste, enquanto a transposição visa o beneficiamento de 12 milhões de pessoas. É um projeto socialmente mais abrangente. E, pra surpresa nossa, quem foi priorizado no Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) não o foi o Atlas e sim a transposição.
Asacom - Mas esse projeto de transposição revela um modelo de desenvolvimento econômico concentrador das riquezas...
João Suassuna - Pois é. Essa água seguramente não vai atender a quem mais precisa no Nordeste, que é a população difusa, que vive nos pequenos lugarejos, nos sítios, nas propriedades, nos grotões. Essa população, que hoje é assistida por frotas de carros-pipa, ela não vai ver uma gota da água do São Francisco porque essa água, quando abastecer as principais represas do Nordeste, vai ser utilizada pelo grande capital. É um modelo de concentração de renda para os grandes. Os pequenos, as populações difusas, vão continuar sendo assistidas por frotas de caminhões pipa. No nosso modo de entender é exatamente aí onde reside a indústria da seca.
Asacom - De que maneira a sociedade pode se organizar para fazer resistência ao projeto de irrigação de cana no Semiárido?
João Suassuna - Já existe uma ação que no meu modo de entender é muito importante. Foi feito o zoneamento da cana-de-açúcar pela Embrapa, que excluiu a cana-de-açúcar irrigada dos limites do Semiárido porque [a região] não dispõe de volume suficiente [de água] pra praticar esse tipo de cultivo. Antes de se propor um projeto maluco como esse de se tirar água da represa de Sobradinho pra irrigar 160 mil hectares no oeste de Pernambuco, tem que se observar os trabalhos já feitos por órgãos oficiais, como a Embrapa. Se existe um trabalho de zoneamento agrícola que exclui a cana de açúcar dos limites do Semiárido, por que se propor a irrigação de 80 mil hectares de cana no Semiárido? Isso não tem sentido.
Asacom - E ainda há os impactos ambientais de uma monocultura num solo suscetível à desertificação...
João Suassuna - Os solos do Semiárido são solos dificílimos de serem trabalhados, porque nós temos 70% do Semiárido com uma geologia que chamamos de cristalino. A rocha que dá origem ao solo está praticamente na superfície, em alguns lugares chega a aflorar. Esses tipos de solos são difíceis de serem drenados. E essa região tem uma evapotranspiração muito acentuada, evapotranspira no Nordeste seco mais de dois mil milímetros por ano, numa região que chove até 800 [milímetros]. Se você observar diretinho chove mais de baixo para cima do que de cima pra baixo. E se não houver uma assistência técnica adequada, o cidadão que pegar água do São Francisco e começar a irrigar e não se preocupar com a drenagem, vai ter um insucesso tão grande e, a curto prazo, vai começar a salinizar toda a região. Isso é uma coisa que estamos começando a divulgar neste momento.
O que se deveria estar sendo feito hoje no governo Dilma e já tinha questionado isso no governo Lula, era primeiro partir para revitalizar toda a bacia do São Francisco, que está completamente degradada, já não temos mais matas ciliares, as matas estão virando carvão. Em todo o oeste de Pernambuco tem uma jazida de gipsita, que é transformada em gesso sob o uso da lenha da Caatinga. Naquela região, que faz parte da bacia do são Francisco, já não tem mais Caatinga. A gente teria que prestar mais atenção e investir todas as nossas fichas nisso aí e não tirar água do rio para abastecer o povo que nós sabemos que não vai ser abastecido e sim essa água vai ser direcionada para o grande capital, é a criação de camarão, é a irrigação em grande escala e por aí vai.
E outra: temos que dar apoio sim ao trabalho que a ASA [Articulação no Semi-Árido Brasileiro] vem fazendo nessas tecnologias de acesso à água que vem da chuva, que é o caso da cisterna rural de 16 mil litros que abastece uma família de cinco pessoas – água para beber e cozinhar – nos oito meses sem chuva. Isso é uma coisa certa. A gente faz um cálculo de telhado que em um metro de telhado, se chover um milímetro, você tem um litro d´água. E no Semiárido chove até 800 milímetros! Você tendo aquela água e acumula no oitão de casa, isso é uma alternativa que soluciona a questão da água para beber. Partiríamos para o Atlas Nordeste, para o abastecimento de municípios de até cinco mil habitantes, e teríamos soluções extremamente mais viáveis em termos de problemas de abastecimento e não partindo para uma transposição do São Francisco, que é um projeto faraônico que só vai encher os bolsos das empreiteiras e dos grandes empresários.
Saiba (+) sobre o assunto:
, feito pela Embrapa, no qual a mencionada cultura é considerada inapta para cultivo na região semiárida.
por João Suassuna — Última modificação 14/11/2013 17:01
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