quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Vidas severinas

Em meio ao flagelo, os agricultores do Semiárido inventam formas de conviver e produzir na seca.


http://revistagloborural.globo.com/Revista/Common/0,,EMI340821-18283,00-VIDAS+SEVERINAS.html
por Rodrigo Vargas | Fotos Marcelo Curia
Revista Globo Rural, n 334, Agosto de 2013
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A BR-122 e rio seco no Semiárido pernambucano

José Vital foi obrigado a vender quase todo o seu rebanho por menos da metade do valor de mercado. Antônio Rodrigues do Nascimento viu fracassarem suas roças de milho e feijão e conseguiu manter apenas seis das 20 vacas que possuía. Antônio Feitosa se valeu de todo o mandacaru que havia nas redondezas para amenizar a fome do gado, mas não foi capaz de impedir a morte de 80% das cabeças.

Relatos assim, aliados às notícias de que o Semiárido brasileiro atravessa a pior seca dos últimos 50 anos, poderiam fazer supor que a região, que abrange nove Estados e quase 12% do território nacional, estaria a viver uma calamidade social de proporção equivalente às que levaram aos grandes êxodos no passado. A piora nas condições climáticas da região, porém, se deu em um cenário menos vulnerável.
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José Vital, o Seu Dede, que vendeu todo o gado

Em uma viagem pelos Estados de Pernambuco, Piauí e Ceará, a reportagem de Globo Rural percorreu algumas das regiões mais castigadas pela seca. Até o início de julho, segundo a Secretaria Nacional de Defesa Civil, os três Estados contabilizavam 707 municípios em situação de emergência. Uma rota de prejuízo e sofrimento, mas também de estratégias de convivência com a estiagem que dão resultados. Entre elas, a implantação maciça de cisternas para captação e armazenamento de água, o incentivo à formação de estoques de forragens e a pesquisa de culturas adaptadas ao clima, além da abertura de novos canais e projetos de agricultura irrigada.

“O Nordeste de hoje é muito melhor que o de ontem”, diz José Otamar de Carvalho, autor do livro A economia política do Nordeste – Secas, irrigação e desenvolvimento e um dos principais especialistas brasileiros em políticas para o Semiárido. “O êxodo ainda ocorre, os rebanhos morrem, mas em proporção inferior à do passado.”

Carvalho aponta, ainda, as políticas de transferência de renda como outro fator que veio amenizar o impacto da falta de chuvas. “Metade dos beneficiários do Bolsa Família está no Nordeste. Do ponto de vista da proteção social, a realidade é outra”, diz.Mas, do ponto de vista econômico, há um caminho mais longo a percorrer.
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Antônio Pedroso Feitosa, um dos sete moradores de Ouricuri

A cavalo por uma estrada seca e repleta de arbustos espinhentos, vestindo chapéu e gibão de couro, a figura de Sérgio Loiola, de 33 anos, só não é mais tradicional em razão de uma camisa do Flamengo que ele veste por baixo de tudo.

Morador de um assentamento da pequena Parambu (CE), ele conta que perdeu as roças de milho e feijão. “A mamona nem nasceu”, relata. Nascido em Tauá, cidade cearense encravada em meio ao Sertão dos Inhamuns, ele admitiu “espanto” com a intensidade da seca atual.

“Nunca vi nada igual. Muita gente perdeu quase todo o gado. Eu salvei a maioria dos meus animais, mas à custa de muito mandacaru. Acho que não sobrou nenhum na região”, relata. O mandacaru (Cereus jamacaru) é uma variedade de cacto adaptada ao clima da região e que geralmente é empregado como última alternativa na alimentação dos rebanhos.

Administrador de uma propriedade que reunia 120 cabeças, Antônio Pedroso Feitosa, de 51 anos, bem que tentou a mesma estratégia, mas não conseguiu evitar uma brutal redução no plantel. “Sobraram 17 cabeças”, lamenta.
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Maria Viana de Souza Silva

Na zona rural de Tauá, José Vital, de 65 anos, chora ao visitar as áreas onde antes pastavam 180 vacas e quase 300 cabras. “Vendi antes de perder tudo. E quase de graça. Agora, quando eu venho aqui neste pasto e não ouço um chocalho, fico emocionado”, diz. Em um plano emergencial anunciado em março, o governo federal prometeu mandar um carregamento de 30.000 toneladas de milho aos pecuaristas cearenses. A ajuda, porém, começou a ser distribuída apenas no final de junho.

“O que estamos sofrendo aqui é o resultado da falta de governo combinada com uma agropecuária que segue os moldes de 400 anos atrás. Muita coisa precisa mudar”, diz José Lúcio do Nascimento Filho, presidente do Sindicato Rural de Tauá.

Para o agrônomo João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, um novo modelo de exploração agrícola precisa ser implantado no Semiárido. “Esse modelo deve passar, necessariamente, pela exploração da capacidade de suporte da região, com a utilização dos elementos biológicos, plantas xerófilas e animais adaptados, fugindo, sempre que possível, das culturas de grãos, como milho e feijão, na dependência de chuvas. A instabilidade climática da região é muito severa, resultando em perdas frequentes de safras”, diz.

Uma proposta de convivência produtiva com a seca vem sendo construída por meio de um conjunto de ONGs coordenadas pela ASA (Articulação no Semiárido Brasileiro). Em pouco mais de dez anos de atuação, foram implantadas 500 mil cisternas para captação de água para 2,5 milhões de beneficiários.

“A seca não é um castigo divino. É uma característica da região. Assim como não se combate a neve na Europa, não se combate a seca no Semiárido. O que nós buscamos é a adaptação”, diz Valéria Landini, coordenadora da ONG Chapada, que atua em municípios na região da Chapada do Araripe, em Pernambuco.
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Personagens da Caatinga: Antônio Rodrigues do Nascimento (à esq.); Sergio Carlos Loyola; e Eliete de Macedo Oliveira (à dir.)

Essa adaptação, no caso da pecuária, consistiria, segundo ela, no investimento em ovinocaprinocultura. “A criação de bovinos nesta região já se mostrou inviável. Um boi necessita de 20 vezes mais água que um bode”, explica.

Na comunidade de Vidéu Velho, em Ouricuri (PE), o sítio de dona Maria Viana de Souza Silva, de 46 anos, é considerado um exemplo das práticas de convivência com a estiagem. Quando recebeu a primeira cisterna, destinada ao consumo, já sentiu uma grande mudança. “Antes, eu caminhava seis quilômetros para buscar água todo dia. Hoje, tenho aqui na porta de casa. Eu até digo que, se essa não é a pior seca de todas, é graças às cisternas.” A chegada da cisterna para a produção, porém, foi o que deu outro rumo à vida da família. Com a ajuda da irrigação, plantou banana, coentro, alface e tomate, entre mais de dez variedades de hortifruticultura. Em 2010 e 2011, a produção foi tanta que ela conseguiu vender o excedente na região.

“Do ano passado para cá, a seca apertou e ficou mais difícil sobrar. Mas, ainda assim, a produção é suficiente para a minha família. Ou seja, a fome que eu passei quando era criança, meus filhos não passam mais”, diz.

Em Araripina, Eliete de Macedo Oliveira, de 45 anos, já tem uma lista de clientes que procuram seu sítio na Serra da Rancharia em busca dos legumes e verduras que cultiva por meio da irrigação. Outros produtos com muita procura são os doces de frutas e de leite. “Já sofri muito com a seca e passei fome. Depois da cisterna, isso é passado.”

Valéria Landini diz que, para funcionar, a estratégia de convivência não pode se limitar à construção dos reservatórios. “É preciso capacitar as famílias sobre o uso racional da água, práticas agroecológicas e as formas de aproveitar melhor o solo e o clima da região.” Para Suassuna, a estratégia é mais efetiva do que investimentos de grande porte como a transposição do São Francisco, projeto bilionário do governo que ele qualifica como “eleitoreiro”. “Esse projeto irá beneficiar, única e tão somente, o grande capital, principalmente a irrigação pesada, a criação do camarão e os usos industriais. O povo que precisa não irá ver a cor da água do São Francisco.”

Em julho, o governo anunciou um plano de safra exclusivo para o Semiárido de R$ 7 bilhões, com taxas de juros entre 1% e 4,5%.
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por João SuassunaÚltima modificação 14/08/2013 11:15

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