Tem água pra ver, mas não pra beber.
Reportagem mostra que as promessas de água abundante para a população nordestina após a transposição do rio São Francisco não se concretizaram. Além disso, as obras do projeto trouxeram impactos graves para a região. Confira os depoimentos:
(Coletivo Nigéria)
Nos arredores do maior açude do Ceará, moradores de assentamentos, cidadezinhas e vilas sofrem com a seca enquanto a água passa diante dos seus olhos para abastecer o agronegócio, a indústria, e a capital, Fortaleza.
Leva-se uma hora para chegar da nova à velha Jaguaribara em um barco de alumínio com um motor de popa de 25 HP. A extensão do Castanhão, o maior açude cearense, impressiona, mas o nível d’água baixou tanto nos últimos dois anos que a antiga sede do município, inundada há uma década pela própria barragem, emergiu. A seca reduziu à metade a capacidade de 6,7 bilhões de metros cúbicos do Castanhão, que perde 22 mil litros de água por segundo, quase metade deles conduzidos pelo Eixão das Águas, o canal de transposição, à região metropolitana de Fortaleza. O sistema Castanhão-Eixão das Água responde por 37% da capacidade de armazenamento de água do Ceará.
A reaparição da antiga Jaguaribara, que jazia sob a obra de engenharia hidráulica que prometia reduzir drasticamente os efeitos da seca no Vale do Jaguaribe, tem um quê de fantasmagórica no período mais árido que o Ceará enfrenta nos últimos 50 anos. Dos 184 municípios do entorno do rio Jaguaribe, represado pela barragem, 175 estão em situação de emergência. A nova Jaguaribara, a cidade planejada que substituiu a que foi submersa pelo açude, está sendo abastecida por carros-pipa e seus moradores chegam a pagar R$ 8 o quilo do feijão, enquanto os pequenos agricultores às margens do Eixão, o canal que abastece Fortaleza, precisam repartir a água com os animais e vêem suas lavouras perdidas.
A mais de 200 quilômetros dali, porém, o Castanhão, via Eixão das Águas, garante a água na capital cearense e, em breve, vai suprir também a demanda hídrica do Complexo Industrial e Portuário do Pecém, o maior projeto de infraestrutura para o desenvolvimento econômico do Ceará, localizado na região metropolitana da capital. Resta apenas concluir o quinto trecho do Eixão das Águas – que então terá 255 km de extensão – o que está previsto para setembro.
A água do Castanhão vai completar seu trajeto do sudeste do Estado, onde está o açude, ao litoral cearense. O objetivo é final é o complexo industrial conjugado ao porto, que vem registrando crescimentos anuais entre 20% e 30%, composto por uma siderúrgica da Vale, uma refinaria da Petrobrás e duas usinas termelétricas da empresa MPX, do grupo de Eike Batista – que já opera com uma das usinas e vai colocar a outra em funcionamentonos próximos meses. As duas usinas térmicas, planejadas para gerar 1.085 MW, vão consumir até 800 litros de água por segundo. A demanda total de água prevista para o complexo é de 5 mil l/s de “água bruta” – o termo técnico para a água doce não tratada.
Dez anos de promessas não cumpridas
Em um cenário em que 71 dos 143 reservatórios monitorados pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) estão com níveis abaixo de 30%, o Castanhão, inaugurado em 2003, cumpre missão de seguir abastecendo Fortaleza, que concentra mais da metade da população do Estado, e de parte considerável do agronegócio no Estado, como a produção de frutas para exportação no perímetro irrigado da Chapada do Apodi, com altas taxas de crescimento. Mas, como mostra a situação dos moradores de Nova Jaguaribara, ainda não trouxe benefícios à população local, nem mesmo aos que perderam suas casas para a obra.
Dos 22 mil litros por segundo de vazão do Castanhão, 10 mil seguem pelo Eixão das Águas e 12 mil são despejados no leito do Rio Jaguaribe – o maior rio cearense, com cerca de 600 km de extensão, margeado por empreendimentos do agronegócio. Esse volume de água explica por que, ao contrário de Recife, por exemplo, nem a seca prolongada trouxe ameaça de racionamento à capital cearense, destaca o coordenador geral do Complexo do Castanhão, José Ulisses de Sousa, engenheiro do Departamento de Obras Contra as Secas (Dnocs).
Por outro lado, nem todos os 18 assentamentos planejados para receber as famílias desalojadas pela barragem foram concluídos. A maior parte dessas famílias era arrendatária de terras alheias e não recebeu indenização pelas casas perdidas. Na ponta final do Eixão das Águas, a obra atingiu os índios Anacé, que tiveram uma lagoa aterrada, riachos represados e perderam suas terras para grandes indústrias e para a infraestrutura do governo.
Houve esperança no início. Os primeiros assentamentos a serem construídos, como o Curupati Peixes, desenvolveram com sucesso a psicultura em Jaguaribara, e hoje o Castanhão é pontilhado por gaiolas para a criação de peixes em cativeiro, principalmente tilápias. Segundo, o engenheiro Ulisses, “é o maior parque piscicultor do País”. Outros assentamentos foram destinados à pecuária leiteira, como o Mandacaru, em que cada família recebeu três hectares de terra para o cultivo do pasto. Mas as “matrizes” – as vacas leiteiras – que deveriam chegar de Minas Gerais, como prometido à época da inundação, uma década depois ainda não chegaram.
“Concordo que é um pouco tarde”, concede Ulisses. “É a questão da burocracia do sistema do governo brasileiro. Nós temos vários órgãos fiscalizadores, temos uma Lei de Licitações engessada, que proíbe a gente de correr. Não tem como. A gente fica engessado. Tem que esperar licitação, Procuradoria dar parecer, ai demora mesmo. Agora que é tarde, é”, reconhece o engenheiro. “Existe um débito do governo com essas comunidades, mas em nenhum momento parou-se de trabalhar em cima de alcançar o objetivo do projeto inicial do Castanhão”, afirma.
Ulisses também reconhece que é um “absurdo” que as comunidades às margens do Castanhão tenham que ser abastecidas através de carros-pipa. Dos 820 caminhões da Operação Carro-pipa no Ceará – coordenada pelo Exército e pela Defesa Civil e responsável por atender a 134 municípios do estado –, dois deles abastecem exclusivamente Jaguaribara, incluindo casas da sede do município.
“Essas coisas pretas são do pipa mesmo”
O dono e motorista de um destes caminhões é Fabiano Souza, de 33 anos, que encontramos despejando 8 mil litros de água na cisterna do agricultor Francisco Ferreira Sobrinho, o seu Zé Vital, a cerca de 300 metros de uma das margens do açude. A água é captada a alguns quilômetros dali, na estação de tratamento da Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece), e não tem muito boa cara dentro da cisterna de seu Zé Vital.
“Essas coisas pretas assim são do pipa mesmo, ferrugem talvez. Não tem problema não porque a gente bota no filtro e bota na geladeira. A gente bebe dela aqui e nunca ninguém adoeceu, não”, confia seu Zé Vital.
No centro comercial de Jaguaribara a revolta com a falta d’água na vizinhança do açude transborda na fala de Dona Jacinta Sousa, 48 anos. Para reforçar a dificuldade por que passa o município ela pega uma maletinha de ferramentas repleta de pequenos blocos de anotações, que registram os muitos débitos não saldados em seu comércio. “Eu tenho raiva quando pego nela!”, diz, fechando a valise e jogando-a mais uma vez para debaixo de seu birô.
Em Jaguaribara, quase todas as mercadorias vêm de fora. Segundo os entrevistados, o peixe, criado nos projetos de piscicultura, é a única opção de renda da cidade – além das aposentadorias, das bolsas governamentais e dos empregos na Prefeitura. Praticamente todas as frutas e verduras do comércio vêm de Fortaleza ou da Chapada do Apodi, com preços inflacionados pela seca. Ou seja, além do prejuízo na lavoura, os pequenos agricultores precisam pagar até duas vezes mais para comer.
As chuvas de abril, maio e junho, que amenizaram os impactos da estiagem, não significaram o fim da seca – especialmente porque o segundo semestre é naturalmente o período de estio no semiárido brasileiro. Também não alteraram consideravelmente os níveis dos açudes, apenas dois deles estão com mais de 90% de seus níveis máximos: Curral Velho e Gavião, ambos alimentados pelo Castanhão. O primeiro, localizado no município de Morada Nova, é o marco entre os trechos I e II do Eixão das Águas; o segundo, na região metropolitana de Fortaleza, fica na intersecção entre os trechos IV e V, de onde parte tanto a água da capital quanto a tubulação de 55 km que leva ao Complexo Industrial e Portuário do Pecém (CIPP).
No percurso entre um e outro reservatório, porém, populações das margens do canal sofrem com a escassez de água – como os moradores do Assentamento Amazonas e da comunidade Piauí de Dentro, localizados na fronteira entre os municípios de Morada Nova e Russas.
No Assentamento Amazonas, que cobre uma faixa de terra de 3.700 hectares, cortada pelo Eixão, o ano passado e os primeiros três meses deste foram improdutivos, com água suficiente apenas para a sobrevivência. Além do abastecimento do carro-pipa, que enche as cisternas de uma a duas vezes por semana, uma outorga da Cogerh autorizou retirar 15 mil litros de água por dia do canal. Mas, embora o assentamento exista há 15 anos, não há adutora instalada para abastecer as mais de 50 famílias. Eles têm que pagar um trator para transportar a água, por 25 a 30 reais a carrada (mil litros. Conforme o tamanho do rebanho e da família, isso significa desembolsar até R$ 150 por semana, retirados das bolsas governamentais e aposentadorias.
Os assentados Irmão Nem, presidente da associação dos assentados, e Antônio Porfírio, o Tonhão, que ocupava esse cargo quando foram feitas as negociações para que o canal cortasse a terra do assentamento, afirmam que até hoje as promessas da época da construção do Eixão das Águas não foram cumpridas.
“Na época, eles indenizaram essa parte aqui [a faixa de terra por onde hoje passa o canal]. Mas quando foi pra passar o pique, veio uma equipe do governo e prometeu que deixava áreas irrigadas aqui pra nós. No caso, ele prometeu 50 hectares, pelo menos meio hectare de irrigação pra cada um. Sendo 46 de irrigação e 4 hectares de tanque de peixe. Mas infelizmente já se passou o tempo e até hoje ninguém encontrou isso aí”, conta Irmão Nem.
Na Fazenda Melancias tem água
A poucos quilômetros dali, porém, uma adutora abastece a Fazenda Melancias, propriedade da Agropecuária Esperança que pertence a um dos maiores grupos econômicos do Ceará – o Grupo Edson Queiroz, dono de emissoras de televisão e rádio, jornal, universidade, fábricas de eletrodomésticos, distribuidoras de água mineral e gás butano etc. Dois grandes canos captam água do Eixão para irrigar a pastagem, que alimenta o rebanho de ovinos e caprinos. Entre 2003 e 2011, a empresa foi flagrada três vezes pelo Ministério Público do Trabalho pelo uso de trabalho escravo em outras de suas fazendas no Maranhão e no Piauí.
Na lista de outorgas para o Eixão, sete estão em nome da Agropecuária Esperança, totalizando uma vazão de 2.318 litros por segundo. Questionado sobre o assunto, o diretor de Planejamento da Cogerh, João Lúcio, afirmou que a vazão para a fazenda foi reduzida para priorizar o abastecimento da grande Fortaleza na estiagem, e negou a existência de privilégios no acesso à água.
“Se houver disponibilidade, essa água vai atender o pequeno e vai atender o grande. Não desconhecemos a questão política, porque a gente sabe que a sociedade tem suas correlações de forças, mas nós temos nossa visão aqui na Cogerh. Se tiver água, nós vamos atender os pequenos e vamos atender o grande”, insistiu.
De fato, a lista com 240 outorgas ao longo do canal é formada principalmente por pequenos usuários, que consomem volumes entre 0,4 e 10 l/s. Contudo, não é possível precisar quantos destes estão na mesma situação do Assentamento Amazonas, que possui a outorga, mas não a adutora. A instalação da adutora é de responsabilidade de quem solicita a outorga e os trabalhadores rurais não tem como bancar esse custo, o que prejudica toda a atividade econômica nas pequenas propriedades.
Mesmo quando já investimento do Estado para as adutoras, outros problemas podem inviabilizar o abastecimento das comunidades. A Secretária de Recursos Hídricos – órgão ao qual está subordinada a Cogerh – investiu R$ 6,5 milhões em 23 sistemas de abastecimento que atendem a 32 comunidades localizadas a uma distância de até 2 km das margens dos trechos I, II e III do Eixão. Segundo a secretaria, foram construídas infraestrutura de captação, adução, reservação e chafariz para estas comunidades e outros 12 sistemas estão em fase de licitação. No entanto, ressalva feita pela própria assessoria do órgão, seis dos sistemas já instalados estão parados por falta de infraestrutura suficiente de energia elétrica, de responsabilidade da Companhia Energética do Ceará.
Da varanda se vê, mas não chega na casa
Apesar de não ter sido citada pela secretaria, este parece ser o caso da comunidade de Piauí de Dentro – vizinhas ao Assentamento Amazonas –, em que as 60 famílias continuam sem acesso à água do Eixão. A agricultora Maria Glécia, de 31 anos, conta que a adutora instalada pelo programa da SRH com recursos do Fundo de Combate à Pobreza funcionou durante uma hora e meia. Há mais de um ano está parada, assim como estão sem uso a caixa d’água e o chafariz construídos para distribuir a água.
“Agora tá até bom, tá chovendo um pouquinho… Mas foi ruim, viu? 2012 a gente vendo os bichos morrer… E a gente também. Tinha dia que não tinha água. A gente sabia que tinha aqui, mas como tirar?”, pergunta.
Glécia mora com a família a menos de 40 metros do canal. A varanda dá vista para o cânion de 30 metros de profundidade formado depois que o topo de serra foi dinamitado para a passagem da água, por gravidade, do Castanhão ao litoral. Mas, como não é possível manualmente puxar a água através do cânion, ela precisa percorrer 3 km até encontrar um trecho do Eixão ao nível do terreno. O motor que deveria bombear a água queimou logo após ser ligado. Nem o eletricista enviado pelo governo, nem as inúmeras visitas semanais que seu pai, líder comunitário, fez à sede do município de Russas, deram jeito na situação.
Glécia, o marido Josemberg, o irmão Wagner e o cunhado Gertúlio não sabem dizer quantas cabeças de gado perderam pela falta de água ou mesmo por caírem dentro do canal ao escorregarem no desfiladeiro, que não possui qualquer proteção. Outras tantas foram furtadas depois que o trânsito de pessoas aumentou na área com a abertura da estrada que margeia o canal. Por isso, ninguém cria mais gado solto ali.
As obras do Eixão trouxeram outros impactos graves à comunidade. As pedras e sedimentos gerados pela obra, assim como a engenharia utilizada para o desvio do curso da água, acabaram por aterrar parte de uma lagoa e de um açude da comunidade, hoje água salobra. O cânion separou de um lado a vila de casas e do outro os lotes de terras dos moradores, o que transformaria um percurso original de poucos metros num jornada de 3 km cada trecho, não fosse a resistência. Foi preciso a comunidade se mobilizar e passar três dias inteiros deitada sobre dinamites até conseguir a garantia do governo de que seria construída uma ponte no local.
Para a indústria, água subsidiada
A lista de outorgas de uso de água para o CIPP já soma uma demanda de 3.860 l/s, incluindo empreendimentos que ainda serão instalados, como a Companhia Siderúrgica do Ceará. A CSP, um investimento da Vale em parceria com as multinacionais sul-coreanas Dongkuk e Posco, lidera a lista com uma demanda de 1,5 mil l/s, quando entrar em operação em 2017. Mas, no momento, a Cogerh já fornece uma vazão de 55 l/s para a fase de terraplanagem. A demanda da CSP inclui o consumo de água a termelétrica que será construída para fornecer energia à siderúrgica.
As duas usinas termelétricas da MPX possuem duas outorgas no valor total de 800 l/s, volume que deverá ser usado na totalidade quando a segunda unidade entrar em operação, no segundo semestre. Não é tão grande se comparado ao utilizado pela agricultura irrigada, que representa cerca de 60% da demanda do estado, mas está entre os maiores da indústria. Além disso, ao contrário do que ocorre em projetos semelhantes da MPX no Chile e no Maranhão, as térmicas do Pecém não dessalinizam a água do mar, que fica a poucos quilômetros da usina.
No vídeo institucional das térmicas do Pecém, a empresa chega a se gabar da “abundância” de água: “Além do carvão mineral, outra matéria é necessária para a geração de energia: a água. Nessa região, ela é encontrada em abundância devido à proximidade com o reservatório da Cogerh.”
O reservatório ao qual o vídeo se refere é o Açude Sítio Novos, com capacidade para 50 mil m³, ou seja, um açude de pequeno porte. Não por acaso, afora o Eixão das Águas, cinco outras cinco barragens de mesmo tamanho serão construídas para abastecer o pólo industrial – como mostra o documento “Cenário Atual do Complexo Industrial e Portuário do Pecém (versão preliminar)”, produzido pelo Pacto pelo Pecém, uma articulação de várias instituições em torno do projeto do CIPP, capitaneada pelo Conselho de Altos Estudos da Assembleia Legislativa do Ceará, fortemente engajada na concretização do CIPP.
Alguns deputados estaduais chegaram a formar uma caravana para percorrer o Estado com o objetivo de pressionar a Petrobrás para iniciar a construção da Refinaria Premium II – que compõe com a siderúrgica da Vale os empreendimentos-âncora do complexo –, e as matérias de interesse do CIPP são tratadas com deferência na assembleia. Em junho de 2011, por exemplo, os deputados estaduais aprovaram um desconto de 50% no preço da água consumida pelas térmicas da MPX, o que foi contestado por parte da opinião pública cearense.
Os subsídios, uma tradição da política econômica do Nordeste desde pelo menos os primórdios da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) na década de 1960, são defendidos até hoje pelo secretário estadual de Recursos Hídricos, César Pinheiro: “Pra você trazer empresas pro Nordeste, você tem que fazer um incentivo. Então pra térmica nós demos um desconto de 50%, mas nós fizemos uma coisa que não é discutida. A térmica fica parada durante um período do ano e nesse período ela paga água. Quer use ou não, nós estamos cobrando dela e é um valor significativo. Então não é 50%, porque quando ela não tá usando, nós estamos cobrando. Isso dá um balanço para que nós não tenhamos prejuízo”, diz Pinheiro.
A lei que instituiu o desconto estabelece que a empresa deve consumir no mínimo 7.200.000 m³ por ano, o que representa aproximadamente 228 l/s. Se o número for confrontado com os 800 l/s previstos na outorga, portanto, em três meses e meio as térmicas atingem a cota mínima determinada. A reportagem da Pública entrou em contato com a assessoria da MPX para uma entrevista sobre as tecnologias de reuso de água e redução da emissão de gases poluentes das duas térmicas do Pecém. Mas foi informada de que a empresa não poderia se pronunciar por estar no “período de silêncio”, uma determinação da Comissão de Valores Mobiliários que tenta impedir que empresas envolvidas no momento em transações influencie o mercado.
OS VIZINHOS DA TERMELÉTRICAS
“É muito distinto você ter uma população que veio ter um contato com o automóvel em 1971, veio ter uma televisão colorida em 90, 94, pra de repente estar no ano 2000 e já ter filhos pilotando retroescavadeiras, trator de esteira, ganhando muito dinheiro”, diz Kleber Nogueira, 31 anos, professor da Escola Indígena Direito de Aprender do Povo Anacé, um dos oito indígenas que conversou com a Pública na escola, localizada na comunidade de Matões, hoje na área do CIPP (Complexo Industrial e Portuário de Pecém).
Ainda é difícil para eles engolir o projeto industrial que os expulsou de suas terras e os jogou na área de influência do complexo. Além da vizinhança com as termelétricas da MPX, os indígenas sofreram ainda mais com a transformação dos municípios litorâneos de Caucaia e São Gonçalo do Amarante, que até pouco tempo viviam da pesca e da agricultura familiar
“Ninguém perguntou pra nós… É isso que me faz raiva, é isso que me faz ficar chateada, me deixa com vontade de gritar, estraçalhar mesmo… Não tem como a gente falar de impactos, nesse momento, pro choro não vir aqui, porque em menos de um mês a gente perdeu quatro pessoas na comunidade, por conta dessa porcaria dessa Estruturante (via rodoviária) que passou aí e que não é sinalizada. Uma menina morreu num acidente de carro, antes de ontem uma criança de menos de anos também foi atropelada”, desabafa Andrea Coelho, moradora da Comunidade do Bolso, outro povoado Anacé.
Entre os impactos causados pela atividade econômica acelerada está a drenagem de pequenos riachos e nascentes da comunidade para a instalação das indústrias, e o aterramento da Lagoa do Murici – um dos vários mananciais de água da região, com um lençol freático bastante próximo à superfície, como aponta o estudo “O povo indígena Anacé e seu território tradicionalmente ocupado”, encomendado pelo Ministério Público Federal. Produzido pelo professor Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia da UFC, e outros dois analistas periciais em Antropologia, o parecer demostrou que várias comunidades da área decretada como de interesse público foram ignoradas pelo Estudo de Impacto Ambiental do CIPP.
“Quem tá lá fora não sabe o que está acontecendo aqui na ponta do Eixão, não sabe que a água que sai de lá vem trazendo na tubulação essa enxurrada de coisas. Você pensa que mudou só uma forma de vida, uma coisa bem simples, mas não. O impacto é bem maior. Porque esse Eixão das Águas vem pra alimentar a sede de um complexo industrial”, diz Kléber.
Hoje, boa parte dos Anacé está de mudança para a nova área que conseguiram conquistar a leste do Complexo, para onde os ventos não podem levar a fumaça e a fuligem do carvão mineral das térmicas. Mas os índios que assinaram os primeiros acordos de desapropriação tiveram sorte pior: moram hoje debaixo do “sovaco da MPX”, como eles próprios dizem.
* O Coletivo Nigéria é formado pelos jornalistas Bruno Xavier, Pedro Rocha, Roger Pires e Yargo Gurjão e sediado em Fortaleza (CE). Há mais de dois anos trabalha com produções audiovisuais e assessoria de comunicação de movimentos sociais. Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.
Fonte para edição no Rema:
Ruben Siqueira
Comissão Pastoral da Terra / Bahia
Articulação Popular São Francisco Vivo
Matéria editada, também, no Portal ECODEBATE
COMENTÁRIOS
por João Suassuna — Última modificação 01/08/2013 14:35
A gestão democrática da água, nesta perspectiva, não passa de um sofisma de enganação muito bem urdido e consolidado pelos políticos nefastos que grassam também como pragas remediáveis. E pensar que as multinacionais também como “pragas invasoras” que são, chegam aqui com o apoio espúrio das instâncias governamentais, com o propósito de usar e abusar do bom e do melhor que o Brasil tem. Um povo já tão vilipendiado, sobretudo em região de Semiárido, encravada em região de Polígono da Seca, vulnerabilizada ao longo do decurso histórico pela ausência quase absoluta das políticas públicas (nas 3 esferas).
Segundo Roberto Malvezzi (Gogó) O olhar “sudestino” sobre o Semiárido costuma dizer que aqui nada muda e que hoje a nossa realidade ainda é a mesma denunciada por Graciliano Ramos em sua obra prima “Vidas Secas”, o que não deixa ser ser uma atroz realidade imodificável no tempo e no espaço do movimento do nordestino sofrido com a grande e mais terrível “seca de gestão” promovida pelos políticos nefastos que se apropriam do poder do Estado para se consorciarem com interesses espúrios e nefastos.
Então surgem os ádvenas para se aboletarem das água, dos recursos naturais, degradando e esterilizando o solo, adulterando as sementes, promovendo a escravidão branca por meio do subemprego (que não chega nem para as primeiras necessidades) deixando-os expostos a venenos que já foram abolidos em outros países, lançados indiscriminadamente e sem contenção contaminando as águas e o solo. E a parte final é que saem com os bolsos cheios de dinheiro e deixando um largo espectro de degradação em todas as dimensões sócio-hidroambientais.
E logo vem a mineração, que custeia a dívida interna do Brasil, com sua demanda de água para 2030, em grande quantidade, com o fito somente de degradar, amealhar toda a riqueza e deixar a mais terrível destruição irremediável, posto que não existe PRAD para mineração no Brasil.
Neste contexto se afigura uma grande preocupação em nível alarmista mesmo, concernente à problemática que teremos que enfrentar, impostergavelmente, no que tange à questão da água, “causa causorum” de todos os conflitos emergentes que advirão em um crescente exponencial até os conflitos mais terríveis em escala local e global, consoante o que já foi previsto e alertado pelo ecólogo e limnólogo brasileiro José Galizia Tundisi. O palco já está montado para os conflitos e os atores já entraram em cena. Falta agora a contraposição necessária, adstrita aos movimentos das ruas, incorporando esta e outras demandas igualmente justas e necessárias, porém não só com muitas pernas, mas com uma boa cabeça que o possa conduzir correta e firmemente uma revolução determinada a obstar cada um e todos esses problemas que afligem o nosso país e o nosso povo, dominado pela má gestão e pela invasão de ádvenas que tudo querem, tudo podem e tudo conseguem do melhor que o Brasil tem, com o beneplácito dos governos “entreguistas” a expensas de nosso povo e de nossas riquezas, comprometendo o alcance intergeracional. Um “Acorda Brasil” de verdade, bem estruturado e definido, com delineamentos bem postos e disposto a sufocar e obstar todo intento contrário à libertação dessas mazelas desgraçadas a que o Brasil está exposto multissecularmente.