"O Nordeste tem muita água", afirma João Suassuna
29/10/2009
http://www.ecodesenvolvimento.org.br/avina-leadership/o-nordeste-tem-muita-agua-afirma-joao-suassuna
João Suassuna estuda a questão hídrica do semi-árido/Foto: Divulgação/Fundaj
O engenheiro agrônomo João Suassuna é um dos especialistas mais respeitados
do Brasil quando o assunto é a hidrologia do semi-árido, principalmente em
relação ao Nordeste Seco do país, região que o também líder-parceiro da Avina estuda há mais de uma década.
Nesta entrevista ao portal EcoDesenvolvimento.org, ele relata parte de sua
trajetória como pesquisador da Fundação
Joaquim Nabuco, defende a criação de cisternas e critica veementemente o
projeto de transposição do Rio São Francisco.
EcoD: Como é que se deu a trajetória profissional do senhor até
aqui?
João Suassuna: Eu terminei meu curso acadêmico em 1974.
Depois trabalhei durante sete anos no Ibama. Já no início dos anos 1980, o
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) implantou
em Brasília uma coordenação de energia (setor que do final dos anos 1970 até os
80 era prioridade nesse país...), e eu fui convidado a trabalhar nessa área com
pesquisas sobre a biomassa, carvão e lenha vegetal, por exemplo. Então
trabalhei em Brasília cerca de 10 anos, depois fui transferido para a Agência
Nordeste do CNPq, em Recife, para trabalhar num programa de difusão de
tecnologia em nível de produtores de baixa renda.
EcoD: É aí que começa o teu interesse pela água no Nordeste?
João Suassuna: Exatamente. Este trabalho junto aos pequenos
produtores ampliou minha visão sobre as questões hídricas do Nordeste, como por
exemplo levar a água para uma região onde aparentemente não tem. Foi aí que a
minha trajetória evoluiu. Mas antes disso vale destacar que a Agência Nordeste
do CNPq acabou extinta na gestão do então presidente Fernando Collor de Mello.
Então, nos deram a opção de sair de Brasília e migrar para uma instituição
federal vinculada ao Ministério da Educação (MEC), foi então que cheguei a
Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj).
EcoD: Que conta com pesquisas importantes sobre o desenvolvimento
sustentável.
João Suassuna: Isso. O forte da Joaquim Nabuco é a área
social. Lá, eu comecei a desenvolver um trabalho voltado para o convívio com o
semi-árido e, numa dessas vertentes, tratamos das questões hídricas do Nordeste
Seco, e mais especificamente da transposição do Rio São Francisco.
EcoD: E o senhor critica bastante esse projeto. Por qual razão?
João Suassuna: Porque o Nordeste tem muita
água. Para você ter ideia, o Nordeste acumulou, em suas represas, algo em torno
de 37 bilhões de metros cúbicos d’água – é o maior volume de água represada em
regiões semi-áridas do mundo. O que nós não temos ao certo, é uma política
específica que faça com que esta água que já existe seja distribuída para as
torneiras das populações. E é nesse cenário que o governo federal quer trazer a
água do São Francisco para abastecer as principais represas do Nordeste e fazer
com que haja o que eles chamam de “sinergia hídrica”.
EcoD: Qual é o significado dessa expressão?
João Suassuna: O impedimento de que as represas sequem. Mas
o que precisa estar claro é que o Nordeste tem grandes represas que jamais
secarão, mesmo com o uso contínuo dessa água. Então se a água do São Francisco
abastecer as principais represas da região, ela acabará sendo usada de maneira
errada.
EcoD: Por que?
João Suassuna: Porque essa água não vai resolver os
problemas de quem mais precisa: a população difusa do Nordeste. E olhe que
estou falando de algo em torno de 10 milhões de pessoas, que no exacerbar de
uma seca passam sede e fome.
EcoD: Nesse caso, qual alternativa o senhor propõe?
João Suassuna: Para problemas difusos, você precisa de
soluções também difusas. Ao cair nas grandes represas, a água do São Francisco
vai favorecer ao grande capital. Lá em Fortaleza, o governo do Ceará está construindo
uma siderúrgica que sozinha vai consumir um volume de água capaz de suprir a
necessidade de um município de 90 mil habitantes. Então se a água do São
Francisco cai na Barragem do Castanhão, que é a maior represa do Nordeste, e
que já há um canal que a liga até o Porto de Pecém, lógico que esta água irá
abastecer esta siderúrgica. É aí que entra o que nós consideramos como a
“indústria da seca”. Estão prometendo abastecer 12 milhões de pessoas no
Nordeste com a água do São Francisco, e não vai acontecer isso. Essa água será
utilizada para o agronegócio, e é aí que temos investido o nosso trabalho. Nós
temos 74 artigos publicados na internet denunciando essa realidade.
EcoD: A construção de cisternas é uma boa alternativa?
João Suassuna: Sem dúvida. Não é um canal de transposição
que vai resolver os problemas socioeconômicos dos que mais precisam, no caso, a
população difusa. Ora, se hoje, nas margens do São Francisco você já tem
problemas de desabastecimento, não é um canal que vai resolver tal impasse,
porque nesse projeto não há a previsão de uma distribuição razoável dessa água
para resolver o problema. Simplesmente não há.
Por intermédio da Agência Nacional das Águas (ANA), o governo federal editou
o Atlas Nordeste de Abastecimento Humano de Água, que busca o abastecimento
para 34 milhões de pessoas. Esta sim é uma grande ideia que está sendo
implantada. Abrange um número muito maior de municípios e, pasme: custa a
metade do que está previsto na transposição do Rio São Francisco. Esse projeto
atende o problema de desabastecimento para os municípios até 5 mil habitantes.
De que forma? Com a água que já existe na região, através da adução das águas
já existentes nas represas, nos poços, enfim.
EcoD: E o que vem a ser a adução?
João Suassuna: Significa a utilização de tubulações para
recalcar essa água, abduzi-la para as populações. Isso resolve o problema de 34
milhões de pessoas da área urbana. Para a área rural, referente às comunidades
difusas, que moram nos pequenos lugarejos, grotões, pés de serra, existem
alternativas, como as que vem sendo trabalhadas pela ASA Brasil – que
desenvolve um programa de 1 milhão de cisternas na região seca do Nordeste.
Esse programa já tem cerca de 300 mil cisternas implantadas. Uma cisterna de 16
mil litros resolve o problema de uma família de 5 pessoas durante os oito meses
sem chuva na região. O Nordeste seco concentra suas chuvas quatro meses e nos
oito meses restantes não chove, então, a cisterna rural abastece essas pessoas
com água para beber e cozinhar durante oito meses. Nós temos que incentivar
esse tipo de iniciativa, e não um projeto que vai trazer a água do São
Francisco, que fica a 500 km do local de consumo, com preços exorbitantes.
EcoD: O senhor também é um defensor das fontes renováveis de
energia. Já pesquisava a biomassa vegetal há 30 anos, não é mesmo?
João Suassuna: Verdade. É como eu disse, na época em que a
energia era prioridade nesse país. Continuo defendendo essas alternativas aos
combustíveis fósseis. O biodiesel também, já que ele também pode ser produzido
a partir de oleaginosas como a mamona, a própria soja e o álcool combustível.
Fui contra a proposta de implantação da cana de açúcar irrigada no Nordeste
Seco para a produção de etanol. Caso acontecesse, seria um desastre. Ainda bem que houve o zoneamento da cana, o que isentou
aquela região dessa proposta.
EcoD: Aquele anunciado pelo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc,
recentemente?
João Suassuna: Exato, em parceria com a Embrapa. Tive
conhecimento que projetos nesse sentido seriam implantados no Oeste de
Pernambuco, por exemplo, algo em torno de 80 mil hectares de cana de açúcar,
com a água do São Francisco. Se hoje já não tem água do São Francisco para
abastecer esse povo. Como é que eles querem tirar mais água para irrigar? E a
gente sabe que a irrigação é que leva 70% do volume das águas extraídas dos
rios. Seria um crime."
Nenhum comentário:
Postar um comentário