O
Semiárido e as cabeças ocas, artigo de Manoel Dantas Vilar Filho (Manelito)
Revista O
BERRO, N. 157 – Julho de 2012
Distribuir leite de cabra para enriquecer a merenda
escolar e complementar a dieta de desprovidos, começou com Dr. Geraldo Melo no
Governo do Rio Grande do Norte, por si mesmo, e sem ajuda Federal, nos anos 90,
contemplando também estimular a economia das terras secas de lá.
Preocupado com a despesa decorrente, mandou fazer,
por sugestão minha, uma comparação através de computadores então em fase de
expansão, e me contou a boa surpresa que teve: o cafezinho (como eu chamei as
cantinas das repartições públicas), custava 2,3% do Orçamento anual e o
embrionário programa do leite, pagando preço maior que a precariedade dos
mercados de então, uma vez generalizado para todo o Estado, não alcançaria 1%
(um por cento) do mesmo Orçamento.
Tive outra alegria numa Exposição em Lages (RN),
onde pregaram, sem que eu soubesse antes, um retrato meu com a legenda “O
Patrono das Cabras e das Causas do Sertão”, ao ver uma mocinha no grupo
mobilizado para festejar a ampliação do Parque de Exposições, empunhando um
cartaz onde se lia “Eu era filha de um emergenciado, hoje sou filha de um
produtor rural”.
Pedi que me levassem até a fazendinha do pai dela,
onde a casa de taipa com reboco bem feito, o terreiro bem varrido e os canecos
de beber água do pote brilhavam de bem areiados, e fiquei sabendo: ele tinha
apenas três cabras de quem, descontado o consumo doméstico, sobravam menos de 2
litros para vender ao Programa recém-criado. Em 20 meses, ele já criava 45
cabeças e entregava 100 litros/dia à Cooperativa de Angicos (RN). Deu nó na
minha garganta de torcedor pelo Semiárido e entusiasta da inclusão das cabras,
exaltando minhas crenças e minha fé no Semiárido verdadeiro.
Saí de lá com a convicção reforçada de que a
pecuária integrada de bovinos tropicais, cabras nativas e ovelhas deslanadas,
seria mesmo a base da produção harmonizada com o clima daqui e da vida decente
do seu povo, no contraponto às lotéricas lavouras temporárias de milhos, sorgos
e feijões, como preconiza a “Agronomia Oficial” e a assistência técnica dela
decorrente.
O Deputado Francisco Quintans foi a Natal nessa
época, se munir da legislação utilizada por lá e doas normas que regulavam o
programa pioneiro, para implantação na Paraíba. O Governo de então era contra
tudo isso e ele, Quintans, articulado com as Prefeituras de Sumé (PB) e
Monteiro (PB), como bom caririzeiro teimoso, iniciou essa ação fundamental,
tornando grande a ação menor do Governador que ameaçava comprar o leite à
Parmalat, se os produtores “não o vendessem barato”.
Mais adiante, o Governador Cássio Cunha Lima e sua
visão de futuro, logo que assumiu seu primeiro mandato, espalhou para toda a
Paraíba, esse programa de assistência à saúde e à economia dos persistentes
moradores das zonas secas, em parceria com uma iniciativa do Governo Federal,
obrigando-se a aceitar suas condições peculiares.
Esse “Programa do Leite” inserido no FOME ZERO tem,
na sua formulação, características e limitações esquisitas para quem, participe
dele, como produtor ou processador e distribuidor do leite – já agora de cabras
e vacas – queira agir corretamente. São terríveis os esforços para se defender
de seus equívocos de concepção e prática. Um equívoco é pior que um erro; é
matriz para muitos erros.
1) A aquisição do leite é restrita ao Semiárido
brasileiro, o que – se por um lado revela alguma compreensão do que realmente
podem produzir as terras secas do NE – cai, ao longo do tempo, no histórico
menosprezo com que é tratado esse mesmo NE seco, gerando então dificuldades
operacionais continuadas e tristes. Não houve uma leitura prévia mais profunda
da realidade e assim prossegue.
2) O programa fixou quantidades, preços unitários para
o leite e quotas mais ou menos decorrentes para cada produtor ser admitido,
focando as pessoas de pouca renda financeira, o que é politicamente simpático.
Não se pode é confundir a proteção aos menores com uma certa volúpia do miúdo,
nas mentes e na nação.
3) A regulação para se inscrever no programa foi
fixada em dinheiro e tempo de fornecimento (R$ 1,30 para leite de cabra e R$
0,82 para leite de vaca; o que corresponde hoje – no início era ainda menor – a
19 litros e 27 litros/dia), sendo automaticamente afastado o produtor que
atinja esses limites e admitidas novas pessoas, sem indagar se tinham ou sabiam
de cabras e vacas.
Na prática o que é que acontece: a) a
improvisação súbita de “criadores” em tempos de competência técnica, de manejo
alimentar e ordenha, de fazer (ou poder fazer) instalações apropriadas para
obter um leite qualificado; b) percorrer novas rotas de coleta de leite,
Como se existissem ramais de estrada em qualquer direção; c) sugerir que desses
pobres se queira apenas que se mantivessem em equilíbrio termodinâmico com a
Natureza, pouco interessando que, uma vez dada a partida, pudessem progredir na
vida, se fixar à terra e criar dignamente suas famílias. Conviria que olhassem
os programas análogos, como o do Paraná e São Paulo e até de outros países.
4) O Laticínio Grupiara,, por si e à sua custa,
promoveu, valendo-se da Escola de Veterinária, vários cursos e reuniões para
informar e esclarecer produtores e para examinar clinicamente cabras e vacas.
Numa postura construtiva e saudável, além dessa assistência direta aos modestos
e muitas vezes improvisados tiradores de leite, cedia, a preços mínimos, para
descontos sucessivos igualmente mínimos, em cada fatura, sementes e animais
selecionados harmonicamente na Fazenda Carnaúba e seus pastos formados, para
protegê-los dos modismos frequentes e alienados em matéria de raças animais ou
raças de plantas, rotuladas com ênfase e enfiadas sem aprofundar estudos
prévios, goela abaixo dos indefesos nordestinos das secas.
Assim, de pronto, sou capaz de citar nesse sentido
torto: a invasora e tóxica Algaroba, a ideia de mandioca para fazer álcool,
vaca holandesa do Canadá, raça Boer ruim de leite e o carneiro Dorper com lã no
lombo, comedores de grãos e, até mesmo Leucena, que gosta de água e também é
tóxica.
Paralelamente a essa crônica pobre (e culturamente
ainda mais pobre), desprezam tudo o que for nativo ou nativizado como nós:
vacas de leite rico dos desertos asiáticos, cabras pirenaicas de carne e pele
superiores, palma forrageira para todo o sertão seco; as plantas nativas
(favela, licuri e umbuzeiro) sugeridas como lavouras alternativas por Guimarães
Duque em 1938, Faveira do Piauí, Feijão Brabo, Jureminha, Grama de burro, etc.
Reparem,
noutro plano, Dostoievski, o escritor que mais especulou sobre a alma humana
lembrava que quem se esquece do próprio chão não merece receber o nome de nação.
5) Vários núcleos criados pela estimulação do Grupiara
foram desfeitos quando exigiram dos criadores a opção mesquinha entre receber
do Programa do Leite ou do Bolsa Família, cruzando dados das contas bancárias
individuais, exigência baseada no pressuposto de que “todas” as Usinas
Pasteurizadoras seriam desonestas. Puro nivelamento por baixo, certamente
negativo, menor. Vários desses novos criadores venderam as cabras e preferiram
a semiestéril Bolsa, limitando seu horizonte de progredir, acomodando-se com a
mera sobrevivência biológica. Um retorno ao primitivismo de entanho, uma fuga
para trás.
É pancada demais no espírito de um velho sertanejo
que assumiu, com toda a coragem, andar pela contramão da rota clássica da
migração dos “Nordestinos da Seca” e largou uma bem firmada vida urbana de
Engenheiro e Professor Universitário para vir, por si e, depois, com os filhos,
pesquisar e construir o caminho produtivo decente da vida nesses mundos de
águas desarrumadas. Tudo inspirado no simbolismo revelador do Crucificado da
Galileia e sua manjedoura nos Cariris de Nazaré, a favor do Semiárido real.
Esse programa da maior relevância, teria que ser
apenas uma tentativa entre homens públicos intelectualmente ricos, técnicos
esclarecidos e a gente trabalhadora do sertão. Não podia desembocar num
“diálogo” entre essa gente e a eficiente Polícia Federal. Como a idade avança e
a paciência encolhe, que danem-se esses arautos da vista curta e da alma
contaminada pelos pecados veniais dos Evangelhos. Aqui na Carnaúba, preferimos
o Cristo. Lúcifer, com certeza, é patrono de outras causas.
Dr.
Manelito é
Engenheiro Civil e Pecuarista em Taperoá (PB).
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