Mil Quatrocentos e Sessenta Dias no Império do Sol, por Roberto Malvezzi (Gogó)
Publicado em agosto 31, 2012 por HC
http://www.ecodebate.com.br/2012/08/31/mil-quatrocentos-e-sessenta-dias-no-imperio-do-sol-por-roberto-malvezzi-gogo/
Roberto Malvezzi (Gogó)
Estou lançando em forma digital o livro “MIL QUATROCENTOS E SESSENTA DIAS NO IMPÉRIO DO SOL” (4
anos na seca e nas CEBs do sertão) que escrevi de 1980 a 1984, vivido naquela
grande seca, no município de Campo Alegre de Lourdes, sertão da Bahia. É um
livro de crônicas, registrando os fatos do cotidiano há 30 anos. A segunda
parte é uma reflexão sobre o que vivíamos.
Era uma época fantástica na Igreja e na sociedade
e nós éramos uma equipe vinda do sudeste para o sertão. Portanto, uma visão de
quem chegava de fora. A grande ebulição das comunidades eclesiais de base, a
Teologia da Libertação, a Igreja encarnada, o fim do regime militar, as greves
do ABC, o surgimento do PT na Bahia a partir do sertão, o andamento das obras faraônicas
do regime militar (Barragem de Sobradinho), as lutas sindicais, o deslocamento
de 72 mil pessoas, área de segurança nacional, tudo faz parte de seu conteúdo.
Mas, principalmente, o registro da crueldade
humana, da sede, da fome, das migrações, das frentes de emergência, da
mortalidade infantil, da manipulação das pessoas em função do poder, enfim, da
reação do povo desesperado pela falta dos elementos básico da vida: água e
comida.
Esse livro teve apenas uma edição pelas Paulinas
em 1985 (Paulus) e nunca foi reeditado. Entretanto, nos últimos anos, vários
sites, sobretudo em inglês, colocam o livro como “Best buy” (indicação de um
bom produto a ser comprado), só que o livro não existe mais. Então, graças às
novas tecnologias e a boa vontade de um filho, foi digitalizado e convertido em
PDF.
Para quem está vivendo a seca atual, sobretudo
para os interessados na questão do semiárido, está aí o que vivemos naquela
época. Dá para entender o que superamos, o que ainda estamos longe de vencer.
Para ilustrar, transcrevo o registro de um saque na cidade de Campo Alegre, em
Dezembro de 1984.
Agora, em formato de PDF, o livro “MIL
QUATROCENTOS E SESSENTA DIAS NO IMPÉRIO DO SOL” ficará hospedado no site do
Portal EcoDebate. A divulgação e o uso são livres. Para acessar e/ou fazer o
download do livro, no formato PDF, com 1,45 Mb, clique aqui.
Roberto Malvezzi (Gogó), Articulista do Portal
EcoDebate, possui formação em Filosofia, Teologia e Estudos Sociais. Atua na
Equipe CPP/CPT do São Francisco.
Excerto do livro “MIL QUATROCENTOS E
SESSENTA DIAS NO IMPÉRIO DO SOL”
O SAQUE
As atitudes do homem do sertão parecem contraditórias, mas são extremamente lógicas. Como o sertanejo é capaz de votar massivamente no governo e um mês depois invadir a cidade, prensar seus políticos em suas casas e saquear seus armazéns? Mas é uma contradição apenas aparente, já que a lógica do sertanejo não é ideológica nem política, mas a lógica da sobrevivência. Ele vive da mão para a boca, do pão de cada dia. Não acumula e nem possui futuro. Não por deliberação própria, mas por imposição de sua condição humana. Ele vota em um partido para ganhar o pão daquele dia e depois saqueia seus armazéns para adquirir o pão desse novo dia. Ele vive de cada passo, pois o próximo pode ser a migração, a doença e a morte.
O SAQUE
As atitudes do homem do sertão parecem contraditórias, mas são extremamente lógicas. Como o sertanejo é capaz de votar massivamente no governo e um mês depois invadir a cidade, prensar seus políticos em suas casas e saquear seus armazéns? Mas é uma contradição apenas aparente, já que a lógica do sertanejo não é ideológica nem política, mas a lógica da sobrevivência. Ele vive da mão para a boca, do pão de cada dia. Não acumula e nem possui futuro. Não por deliberação própria, mas por imposição de sua condição humana. Ele vota em um partido para ganhar o pão daquele dia e depois saqueia seus armazéns para adquirir o pão desse novo dia. Ele vive de cada passo, pois o próximo pode ser a migração, a doença e a morte.
A fome vem se acumulando nos três últimos
anos. Estamos no pique da seca. Não resta mais água nem mantimentos. Não chove
e por isso desaparece qualquer perspectiva para o próximo ano. Mas ninguém
esperava pelo saque, pelo menos, no estilo em que se deu.
Havia uma reunião marcada para o sindicato,
às nove da manhã. Eu estranhara a viagem que fizera de Remanso a Campo Alegre
no dia anterior. É uma distância de 114 km. Os amigos de equipe haviam ficado
em Remanso. Ao entrar em Angico, primeiro povoado do município de Campo Alegre,
muitas mulheres começaram a entrar no ônibus. Assim foi durante todo percurso
de 36 km até a sede do município. O ônibus chegou abarrotado. Como eu conhecia
muitas pessoas, elas foram contando sua condição. Muitos familiares migrando
para S. Paulo, Brasília, arretirando-se para as margens do S. Francisco. Muitas
famílias estão se alimentando à base de coroatá, mucunã, calango assado, etc…
Uma das mulheres disse que todas iriam para a cidade e o atendimento das
autoridades sairia por bem ou por mal. Falou com firmeza, como quem não tem
nada a perder. Contou ainda que os homens marchariam a pé, saindo às 8 da noite
para chegar em Campo Alegre pela madrugada. Só daquele recanto de Campo Alegre
viriam mais de oitenta homens a pé.
Chegamos em Campo Alegre às 7 da noite. Não
havia nada em casa. Apenas alguns trabalhadores vieram pedir pousada.
Mas, por um acaso, cruzei com o prefeito
eleito do PDS na rua. Conversamos. O assunto foi o povo. Ele disse que estavam
se esforçando para conseguir frente de serviço. Ouvi o que ele disse e falei o
que tinha para falar. Foi uma conversa tranqüila. Fui dormir e, para o horário
do sertão, levantei tarde, às 7:30h. Quando olhei, vi que não havia mais um
trabalhador em casa. Saí na calçada e, para surpresa total, o saque já havia
acontecido. O primeiro foi às 6h da manhã e o segundo se realizava naquele
momento.
O saque foi surpreendente. Os trabalhadores
se reuniram cedo, chegando das caatingas. O pessoal dos arrabaldes da cidade
somou com os caatingueiros. E o saque teve uma conotação política, mas
legítima. Saquearam em primeiro lugar o armazém do prefeito da cidade. Pelo
sábado haviam chegado três caminhões de mantimentos e ele se recusara a
entregá-los ao povo. Seu armazém foi o primeiro a ser saqueado. Com alavancas
de madeira rompiam as barras de ferro das portas e atacavam feito loucos.
Arroz, feijão, carne granulada, bebida, enxada, enxadão, machado, junções de
bicicleta, papel higiênico, veneno, etc… O veneno caiu pelas ruas. Os bodes e
vacas lamberam e ali morreram. Algumas pessoas ficaram intoxicadas e precisaram
de socorros médicos. Alguns trabalhadores afirmaram que um dono de armazém
espalhou veneno sobre os alimentos para que o povo comesse e morresse. Outros
diziam que era apenas uma desculpa para amedrontar o povo. Mas no armazém
saqueado não sobrou uma agulha. Conta-se que mulheres fracas foram vistas
carregando dois sacos de açúcar nas costas. Outras com papel higiênico, caixas
de óleo, carne granulada, etc…
Depois foram à casa do prefeito. Queriam
saquear sua casa. Os trabalhadores disseram, posteriormente, que esse homem
chorou como uma criança. Por incrível que pareça, seus eleitores é que foram
saquear sua casa. Gritavam que o tinham eleito para cobrá-lo com mais
autoridade. No desespero, pediu que, ao contrário de saquear sua casa,
saqueassem o armazém do secretário da prefeitura. Não precisou segunda ordem. A
massa humana, a essas alturas mais de 3 mil pessoas, disparou na direção do
armazém. Parecia mais uma manada de animais famintos. Arrebentaram as portas e
saquearam absolutamente tudo. Teve aproveitadores da cidade no meio. Alguns
levaram demais, a maioria não adquiriu bem algum. Dirigiram-se a um terceiro
armazém, mas estava vazio.
Então ameaçaram saquear um armazém
particular. Os donos postaram-se nas portas e choravam como bebê de colo.
Alguns trabalhadores tomaram a frente e pediram aos demais para respeitar o que
era alheio. A consciência do sertanejo é mesmo delicada. Não saquearam. Os que
tinham bens saqueados dos armazéns anteriores, partiram para suas casas.
Enquanto alguns partiam pelas estradas com os sacos nas costas, outros
chegavam. Os políticos e comerciantes da cidade se rebolaram e contataram com
Juazeiro, Salvador, etc… Veio promessa de recursos. O povo cessou os saques.
Fizeram reunião no sindicato. A promessa era
que caminhões de mantimentos chegariam pela tarde. Numa demonstração
extremamente pacífica de suas ações, os trabalhadores decidiram esperar até às
4h da tarde. Nesse horário, pousou um avião de um deputado do PDS baiano, agora
eleito deputado federal por essa região. Estava muito pálido. Começou sem saber
o que falar.
Estava com medo. Então aconteceu uma cena extremamente trágica e emocionante. Milhares de flagelados ergueram silenciosamente os sacos vazios no ar. Eram milhares de pedintes, esmolecos governamentais. Ele começou a prometer. Mais uma vez a lógica do sertanejo se fez presente. Uma parte do povo aplaudiu freneticamente o deputado. Quando se viu apoiado, ganhou moral.
Estava com medo. Então aconteceu uma cena extremamente trágica e emocionante. Milhares de flagelados ergueram silenciosamente os sacos vazios no ar. Eram milhares de pedintes, esmolecos governamentais. Ele começou a prometer. Mais uma vez a lógica do sertanejo se fez presente. Uma parte do povo aplaudiu freneticamente o deputado. Quando se viu apoiado, ganhou moral.
Elogiou o povo, falou de sua fidelidade ao
povo, criticou os agitadores e subversivos. Nas ruas se comentava que o cabeça
era o bispo, a equipe paroquial, as comunidades, o PT. Alguém se trancou em uma
casa do centro da cidade, ergueu um alto-falante no volume máximo e acusava o
bispo sem que ninguém pudesse identificar quem gritava. Mas o deputado
continuou falando que os caminhões de alimentos viriam pela noite ou pela
madrugada. Ao mesmo tempo viriam as fichações para as frentes de serviço a
todos os necessitados. Mais uma vez o povo decidiu esperar.
Já era na boca da noite. Em nossa casa
secaram o poço e a caixa. Não havia alimento. Todos os armazéns fechados e era
impossível comprar um pão. Durante todo o dia não houve praticamente o que
comer. Os comerciantes decidiram distribuir ao povo todas as rapaduras e
bolachas da cidade. O povo comeu. Mas o estado era de necessidade. O povo não
partiu, decidiu passar a noite pelas ruas, esperando pelos caminhões. Em nossa
casa, no centro social, nos fundos, alpendres, havia pessoas esticadas no chão.
Nas ruas da cidade viam-se cenas inimagináveis. As pessoas deitadas nas
calçadas, umas ao lado das outras, com os pés esticados para a rua. Eram
milhares de flagelados estirados nas sarjetas. Foi impossível dormir. As portas
da casa do centro social ficaram abertas a noite toda. As pessoas entravam e
saíam a todo momento. Às 4h da manhã os trabalhadores que dormiram em nossa
casa foram para a rua. Pela madrugada chegou um ônibus com policiais de
Juazeiro. Os caminhões com alimentos chegaram tarde, às 10 h da manhã. A
fichação foi prometida para ser realizada nos povoados. Mas nesse dia havia
mais pessoas que no dia anterior. Cerca de 4 a 5 mil pessoas abarrotavam a
pequena cidade. Chegaram dois caminhões com emblemas da empresa do deputado, o
que é muito significativo. O povo fez as filas com ordem. Cada um recebia uma
ração de mantimentos suficiente para uma família passar um dia ou dois.
Obviamente era um álibi para dispersar os trabalhadores e evitar novos saques.
Então, por horas a fio, homens e mulheres tomavam as estradas da caatinga com
suas rações nas costas. Mas eles querem mesmo é a frente de serviços. Partiram
nessa esperança imediatista.
Por enquanto os ânimos serenaram. Não se pode
generalizar, é evidente, mas ninguém pode estar seguro em relação aos
famintos nordestinos, nem mesmo os políticos por eles eleitos. Aquele que é
tido como amigo, amanhã poderá ser considerado inimigo. Depende do momento,
assim como impõe a lei da sobrevivência
EcoDebate, 31/08/2012
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