Sistema
de distribuição de água não integrado
No início da década de 1960, as cidades brasileiras tinham
sistemas individualizados de energia, isto é, cada cidade tinha sua fonte de
energia, mas com o passar do tempo foi feita uma rede de distribuição de
energia integrada. O mesmo foi feito com as estradas, com a construção de
rodovias federais que integravam várias partes do país, e o mesmo foi feito nas
áreas de telecomunicações e internet, mas a distribuição de água continua não sendo integrada no Nordeste. Cada cidadezinha do interior do Nordeste, da Bahia, de Pernambuco, do Ceará, tem um sistema de abastecimento de água isolado. Assim, o
sistema capta água de um açude, o qual em geral foi construído para aquela função
específica de abastecer aquela cidade; é um sistema desintegrado. O caso
do Ceará é bem emblemático porque as pequenas e médias cidades do
estado não têm acesso à água das grandes barragens, elas ficam penduradas por
sistemas individualizados nos açudes médios. Logo, não precisa ter uma seca de
cinco anos para faltar água, basta a seca de um ano para começar a comprometer
o abastecimento
de água das cidades.
Qualidade da água
Isso também afeta a qualidade da água: há muito tempo
a água das cidades do interior não é potável. No Rio Grande do Norte existe um grande comércio não oficial de venda de água,
mesmo na época das chuvas, quando todos os reservatórios ficam cheios e a água
se renova e fica com boa qualidade. Os sistemas de abastecimento e tratamento
de água são adequados para água nova, mas quando a água vai ficando ruim, de
baixa qualidade, o sistema de tratamento não trata a água adequadamente, e
começa a haver um comércio paralelo de água. No Rio Grande do Norte existe o que chamamos de “água de Natal”, pois todas as
cidades do interior recebem essa “água de Natal” mesmo na época em que os
açudes têm água abundante. Isso vai criando um vício na população, o que faz
com que as pessoas não valorizem mais a água daCompanhia de Águas e Esgotos do Rio
Grande do Norte – CAERN. Então, cria-se
um círculo vicioso: A água da CAERNtorna-se de péssima
qualidade, o preço não é reajustado, e as pessoas se acostumam com essa
situação e ficam, cada vez mais, comprando água fora do sistema oficial.
Assim, uma vez que a seca vai se instalando, a qualidade da água vai piorando e
a necessidade de comprar água de melhor qualidade vai aumentando. Então a
situação chega a um ponto em que as pessoas só usam água da CAERN para os serviços de limpeza. Esse quadro leva à situação
em que estamos hoje.
IHU On-Line – Qual é a dificuldade de
desenvolver um sistema integrado de abastecimento de água no Nordeste?
João Abner Guimarães
Júnior — A questão que tem levado
esse sistema à falência é uma questão estrutural, que se deve à política
defasada do sistema
de abastecimento e saneamento de água,
principalmente por conta da falta de integração e também da falta de controle e
de regulação da qualidade da água. Em Natal existe uma agência reguladora que controla a qualidade da
água, mas no interior ninguém faz esse controle. Mais absurdo ainda é o fato de
que a tarifa da água do interior do estado é regulada pela agência reguladora
do município de Natal.
Mas o problema central é político. Por que o setor de abastecimento de água ficou para trás? Ao fazer essa pergunta, não estou falando
nem defendendo a privatização, porque se houvesse vontade política e
compromisso público com a qualidade dos serviços, a empresa pública teria
condições de realizar um bom trabalho. Entretanto, as empresas que prestam esse
serviço não procuram melhorias porque são administradas como repartições
públicas. E, ao contrário, como são empresas de economia mista, deveriam estar
prezando pelo mercado e pela qualidade dos serviços, mas isso não existe.
O que favoreceu para que esses setores ficassem para trás e não
buscassem a modernização gerencial do setor foi a dependência que os estados da
região têm com a política do governo federal. Então, é incrível que uma
companhia de água como a CAERN fique aguardando
decisões do governo federal porque ela não tem autonomia para resolver seus
problemas. Quando os problemas aparecem, ela procura uma solução através do
governo federal. Essa dependência com o governo federal está hoje atrelada,
justamente, à política da transposição do Rio São Francisco. Dessa forma, o
próprio Ministério da Integração é solapado pelos interesses econômicos que
estão atrelados à transposição e às grandes obras, e isso influencia as
decisões a serem tomadas nas pequenas e médias cidades.
IHU On-Line — Por que
a situação dos reservatórios e da distribuição de água do Rio Grande do Norte é
melhor e diferente em relação à situação dos outros estados do Nordeste? Essa
situação é explicada por conta da existência das adutoras?
João Abner Guimarães
Júnior — Porque o Rio Grande do
Norte tem uma experiência bem-sucedida, que começou com o maior programa
de adutoras do Nordeste, inclusive com adutoras de caráter regional. Esse programa foi
desenhado no final do século passado, no governo de Garibaldi Alves, em que se elaborou esse programa de integração.
O Rio
Grande do Norte tem quatro mesorregiões: a
litoral leste, onde está a região metropolitana de Natal e a produção da
cana-de-açúcar; a região agreste, que é uma região intermediária; o sertão central;
e o alto oeste. A população do RN é pequena, somos três
milhões e 300 mil habitantes, e 60% da população é abastecida a partir do
litoral; esse sistema abastece Natal e tem o maior sistema
adutor do estado, que abastece a região agreste. Então, 60% da população
do Rio
Grande do Norte está atravessando essa seca
sem grandes problemas. O restante da população, 40% – que envolve a região
do Sertão Central, que engloba as regiões: Seridó, Sertão de Angicos e Baixo
Açu –, é a que mais tem água. Portanto, Seridó, que é classificada como uma
região extremamente seca, porque chove menos, está margeando uma das maiores
reservas de água do Nordeste, que é a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves.
A barragem tem 450 milhões de metros cúbicos de água, mas o
consumo de todas as adutoras que pegam água dessa barragem é de apenas 30
milhões de metros cúbicos por ano. Somente neste ano, a Barragem Armando
Ribeiro Gonçalves recebeu 120 milhões de metros cúbicos de água, mas essa mesma
barragem receberá, segundo as previsões, 60 milhões de metros cúbicos de água
por ano por conta da transposição do Rio São Francisco, nas condições mais otimistas. Ocorre que, hoje, do jeito que a
situação está, ela já recebeu o dobro disso em um mês.
A população da maior cidade do Seridó, Caicó, finalmente
enxergou que a solução é utilizar a água da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves,
então se construiu uma adutora em apenas três meses, que normalizou o
abastecimento de água, pelo menos em níveis de oferta emergencial. Essa
experiência de Caicó deverá ser copiada num plano para abastecer todas as
cidades do Seridó. Felizmente, o Rio Grande do Norte tem água suficiente para
atender toda a sua população.
É preciso ousar para sair do atoleiro da dependência financeira
das ações emergenciais do Governo Federal. A saída é buscar a
autossustentabilidade com os próprios recursos arrecadados, e no caso do RN é
possível, através da implantação de uma tarifa de água de contingenciamento,
que cobraria em média apenas dez reais mensais a mais, conseguir recursos
financeiros para resolver, pelo menos em caráter emergencial, o abastecimento
de água em todas as cidades do estado. É pouco dinheiro, já que as grandes
obras já estão feitas, são pouco mais de 200 milhões de reais, mas com esse
valor é possível fazer essa integração das cidades que estão com deficiência de
água com as adutoras maiores.
Agora, se você me perguntar por que isso não foi feito antes,
bom, não foi feito antes porque não tinha interesse político pelo Governo Federal. Há um exemplo na região que é gritante nesse sentido: existia
um projeto de construção de uma grande adutora de caráter regional, a Adutora
do Alto Oeste; quando esse projeto foi levado para o Governo Federal, para
liberação de recursos, o Ministério da Integração alegou que se essa adutora
fosse feita do modo como estava previsto, ela inviabilizaria qualquer
possibilidade de a água da transposição do Rio São Francisco chegar à bacia do
Rio Apodi. Logo, eles cortaram a linha tronco da adutora que levaria água à
cidade de Pau dos Ferros, que se encontra a 60 quilômetros da Barragem de Santa Cruz do Apodi e é a principal cidade da Região que era abastecida por
uma barragem que está seca há mais de três anos. Isso tudo, apesar de o trecho
quatro do Eixo
Norte da Transposição, que traria água para o Rio
Apodi/Mossoró, nem mesmo ter sido ainda licitado.
Entretanto, o RN finalmente parece estar tentando se libertar
dessa situação de dependência com o governo federal.
IHU On-Line — Com a construção das
adutoras seria possível manter a irrigação e ainda assim garantir o
abastecimento urbano?
João Abner Guimarães
Júnior — É preciso, em primeiro
lugar, separar essa questão do abastecimento humano da
irrigação. Abastecimento humano tem que ser analisado sob o ponto de vista dos
benefícios sociais, enquanto a irrigação tem que ser analisada pelo aspecto
econômico. O que ocorre na prática? A lei brasileira é bastante avançada e diz
o seguinte: deve haver uso mútuo da água, mas, em condições de escassez, o
consumo humano deve ser prioritário. Se colocarmos em prática essa lei, teremos
sustentabilidade. A questão é como fazer isso para assegurar que na época da
escassez o consumo humano seja prioritário. Já existem mecanismos para isso: as
outorgas de irrigação, as quais têm restrições, e são condicionadas pela
questão da criticidade da seca.
Depois dessa experiência da maior seca de 100 anos, espera-se que não se deva continuar oferecendo água em larga
escala para a irrigação em situações de seca prolongada como a atual. É
justamente isso que tem levado a uma situação de instabilidade em relação
ao consumo
humano. A questão é: como todas as
demais atividades econômicas que têm importância social podem estar submetidas
à política de irrigação? Hoje em dia existe seguro para tudo, mas por que não
existe um seguro para a falta de água na irrigação? Não se pode comprometer o
abastecimento urbano das cidades com a justificativa de que é preciso manter a
irrigação e os empregos relacionados à irrigação.
É possível trabalhar num ambiente onde se possa ter
desenvolvimento econômico a partir da agricultura sem gerar risco de abastecimento urbano
nas cidades. O setor urbano consegue cobrar
entre quatro e dez reais por um metro cúbico de água. Entretanto, a água que é
vendida em carro-pipa no Nordeste custa acima de vinte reais o metro cúbico. A
remuneração da água da irrigação, ao contrário, é baixíssima: custa entre
quatro e dez centavos o metro cúbico de água. Apesar disso, ainda se fala em
desenvolver o Nordeste com a água do Rio São Francisco que custará dez vezes
mais.
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