terça-feira, 25 de julho de 2017


Sistema de distribuição de água não integrado


No início da década de 1960, as cidades brasileiras tinham sistemas individualizados de energia, isto é, cada cidade tinha sua fonte de energia, mas com o passar do tempo foi feita uma rede de distribuição de energia integrada. O mesmo foi feito com as estradas, com a construção de rodovias federais que integravam várias partes do país, e o mesmo foi feito nas áreas de telecomunicações e internet, mas a distribuição de água continua não sendo integrada no Nordeste. Cada cidadezinha do interior do Nordeste, da Bahia, de Pernambuco, do Ceará, tem um sistema de abastecimento de água isolado. Assim, o sistema capta água de um açude, o qual em geral foi construído para aquela função específica de abastecer aquela cidade; é um sistema desintegrado. O caso do Ceará é bem emblemático porque as pequenas e médias cidades do estado não têm acesso à água das grandes barragens, elas ficam penduradas por sistemas individualizados nos açudes médios. Logo, não precisa ter uma seca de cinco anos para faltar água, basta a seca de um ano para começar a comprometer o abastecimento de água das cidades.

Qualidade da água


Isso também afeta a qualidade da água: há muito tempo a água das cidades do interior não é potável. No Rio Grande do Norte existe um grande comércio não oficial de venda de água, mesmo na época das chuvas, quando todos os reservatórios ficam cheios e a água se renova e fica com boa qualidade. Os sistemas de abastecimento e tratamento de água são adequados para água nova, mas quando a água vai ficando ruim, de baixa qualidade, o sistema de tratamento não trata a água adequadamente, e começa a haver um comércio paralelo de água. No Rio Grande do Norte existe o que chamamos de “água de Natal”, pois todas as cidades do interior recebem essa “água de Natal” mesmo na época em que os açudes têm água abundante. Isso vai criando um vício na população, o que faz com que as pessoas não valorizem mais a água daCompanhia de Águas e Esgotos do Rio Grande do Norte – CAERN. Então, cria-se um círculo vicioso:  A água da CAERNtorna-se de péssima qualidade, o preço não é reajustado, e as pessoas se acostumam com essa situação e ficam, cada vez mais,  comprando água fora do sistema oficial. Assim, uma vez que a seca vai se instalando, a qualidade da água vai piorando e a necessidade de comprar água de melhor qualidade vai aumentando. Então a situação chega a um ponto em que as pessoas só usam água da CAERN para os serviços de limpeza. Esse quadro leva à situação em que estamos hoje.

IHU On-Line – Qual é a dificuldade de desenvolver um sistema integrado de abastecimento de água no Nordeste?

João Abner Guimarães Júnior — A questão que tem levado esse sistema à falência é uma questão estrutural, que se deve à política defasada do sistema de abastecimento e saneamento de água, principalmente por conta da falta de integração e também da falta de controle e de regulação da qualidade da água. Em Natal existe uma agência reguladora que controla a qualidade da água, mas no interior ninguém faz esse controle. Mais absurdo ainda é o fato de que a tarifa da água do interior do estado é regulada pela agência reguladora do município de Natal.

Mas o problema central é político. Por que o setor de abastecimento de água ficou para trás? Ao fazer essa pergunta, não estou falando nem defendendo a privatização, porque se houvesse vontade política e compromisso público com a qualidade dos serviços, a empresa pública teria condições de realizar um bom trabalho. Entretanto, as empresas que prestam esse serviço não procuram melhorias porque são administradas como repartições públicas. E, ao contrário, como são empresas de economia mista, deveriam estar prezando pelo mercado e pela qualidade dos serviços, mas isso não existe.

O que favoreceu para que esses setores ficassem para trás e não buscassem a modernização gerencial do setor foi a dependência que os estados da região têm com a política do governo federal. Então, é incrível que uma companhia de água como a CAERN fique aguardando decisões do governo federal porque ela não tem autonomia para resolver seus problemas. Quando os problemas aparecem, ela procura uma solução através do governo federal. Essa dependência com o governo federal está hoje atrelada, justamente, à política da transposição do Rio São Francisco. Dessa forma, o próprio Ministério da Integração é solapado pelos interesses econômicos que estão atrelados à transposição e às grandes obras, e isso influencia as decisões a serem tomadas nas pequenas e médias cidades.

IHU On-Line — Por que a situação dos reservatórios e da distribuição de água do Rio Grande do Norte é melhor e diferente em relação à situação dos outros estados do Nordeste? Essa situação é explicada por conta da existência das adutoras?

João Abner Guimarães Júnior — Porque o Rio Grande do Norte tem uma experiência bem-sucedida, que começou com o maior programa de adutoras do Nordeste, inclusive com adutoras de caráter regional. Esse programa foi desenhado no final do século passado, no governo de Garibaldi Alves, em que se elaborou esse programa de integração.

Rio Grande do Norte tem quatro mesorregiões: a litoral leste, onde está a região metropolitana de Natal e a produção da cana-de-açúcar; a região agreste, que é uma região intermediária; o sertão central; e o alto oeste. A população do RN é pequena, somos três milhões e 300 mil habitantes, e 60% da população é abastecida a partir do litoral; esse sistema abastece Natal e tem o maior sistema adutor do estado, que abastece a região agreste. Então, 60% da população do Rio Grande do Norte está atravessando essa seca sem grandes problemas. O restante da população, 40% – que envolve a região do Sertão Central, que engloba as regiões: Seridó, Sertão de Angicos e Baixo Açu –, é a que mais tem água. Portanto, Seridó, que é classificada como uma região extremamente seca, porque chove menos, está margeando uma das maiores reservas de água do Nordeste, que é a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves.

A barragem tem 450 milhões de metros cúbicos de água, mas o consumo de todas as adutoras que pegam água dessa barragem é de apenas 30 milhões de metros cúbicos por ano. Somente neste ano, a Barragem Armando Ribeiro Gonçalves recebeu 120 milhões de metros cúbicos de água, mas essa mesma barragem receberá, segundo as previsões, 60 milhões de metros cúbicos de água por ano por conta da transposição do Rio São Francisco, nas condições mais otimistas. Ocorre que, hoje, do jeito que a situação está, ela já recebeu o dobro disso em um mês.

A população da maior cidade do Seridó, Caicó, finalmente enxergou que a solução é utilizar a água da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves, então se construiu uma adutora em apenas três meses, que normalizou o abastecimento de água, pelo menos em níveis de oferta emergencial. Essa experiência de Caicó deverá ser copiada num plano para abastecer todas as cidades do Seridó. Felizmente, o Rio Grande do Norte tem água suficiente para atender toda a sua população.

É preciso ousar para sair do atoleiro da dependência financeira das ações emergenciais do Governo Federal. A saída é buscar a autossustentabilidade com os próprios recursos arrecadados, e no caso do RN é possível, através da implantação de uma tarifa de água de contingenciamento, que cobraria em média apenas dez reais mensais a mais, conseguir recursos financeiros para resolver, pelo menos em caráter emergencial, o abastecimento de água em todas as cidades do estado. É pouco dinheiro, já que as grandes obras já estão feitas, são pouco mais de 200 milhões de reais, mas com esse valor é possível fazer essa integração das cidades que estão com deficiência de água com as adutoras maiores.

Agora, se você me perguntar por que isso não foi feito antes, bom, não foi feito antes porque não tinha interesse político pelo Governo Federal. Há um exemplo na região que é gritante nesse sentido: existia um projeto de construção de uma grande adutora de caráter regional, a Adutora do Alto Oeste; quando esse projeto foi levado para o Governo Federal, para liberação de recursos, o Ministério da Integração alegou que se essa adutora fosse feita do modo como estava previsto, ela inviabilizaria qualquer possibilidade de a água da transposição do Rio São Francisco chegar à bacia do Rio Apodi. Logo, eles cortaram a linha tronco da adutora que levaria água à cidade de Pau dos Ferros, que se encontra a 60 quilômetros da Barragem de Santa Cruz do Apodi e é a principal cidade da Região que era abastecida por uma barragem que está seca há mais de três anos. Isso tudo, apesar de o trecho quatro do Eixo Norte da Transposição, que traria água para o Rio Apodi/Mossoró, nem mesmo ter sido ainda licitado.

Entretanto, o RN finalmente parece estar tentando se libertar dessa situação de dependência com o governo federal.

IHU On-Line — Com a construção das adutoras seria possível manter a irrigação e ainda assim garantir o abastecimento urbano?

João Abner Guimarães Júnior — É preciso, em primeiro lugar, separar essa questão do abastecimento humano da irrigação. Abastecimento humano tem que ser analisado sob o ponto de vista dos benefícios sociais, enquanto a irrigação tem que ser analisada pelo aspecto econômico. O que ocorre na prática? A lei brasileira é bastante avançada e diz o seguinte: deve haver uso mútuo da água, mas, em condições de escassez, o consumo humano deve ser prioritário. Se colocarmos em prática essa lei, teremos sustentabilidade. A questão é como fazer isso para assegurar que na época da escassez o consumo humano seja prioritário. Já existem mecanismos para isso: as outorgas de irrigação, as quais têm restrições, e são condicionadas pela questão da criticidade da seca.

Depois dessa experiência da maior seca de 100 anos, espera-se que não se deva continuar oferecendo água em larga escala para a irrigação em situações de seca prolongada como a atual. É justamente isso que tem levado a uma situação de instabilidade em relação ao consumo humano. A questão é: como todas as demais atividades econômicas que têm importância social podem estar submetidas à política de irrigação? Hoje em dia existe seguro para tudo, mas por que não existe um seguro para a falta de água na irrigação? Não se pode comprometer o abastecimento urbano das cidades com a justificativa de que é preciso manter a irrigação e os empregos relacionados à irrigação.

É possível trabalhar num ambiente onde se possa ter desenvolvimento econômico a partir da agricultura sem gerar risco de abastecimento urbano nas cidades. O setor urbano consegue cobrar entre quatro e dez reais por um metro cúbico de água. Entretanto, a água que é vendida em carro-pipa no Nordeste custa acima de vinte reais o metro cúbico. A remuneração da água da irrigação, ao contrário, é baixíssima: custa entre quatro e dez centavos o metro cúbico de água. Apesar disso, ainda se fala em desenvolver o Nordeste com a água do Rio São Francisco que custará dez vezes mais.

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