REVITALIZAÇÃO DE BACIAS: NO LIMITE,
SÃO FRANCISCO SOFRE COM PRESSÃO DO SETOR ELÉTRICO
Água acumulada em reservatórios para gerar energia compromete
população ribeirinha próxima à foz e ameaça ecossistemas. Problemas relatados
vão da redução da quantidade de peixes a acúmulo de lodo.
DW
26/05/2021
Morador retira algas do São Francisco em local onde há captação de água
para consumo: "O rio não tem mais força"
Às margens do rio São Francisco, um dos mais importantes do
país, a pescadora Jonilda Gomes Barbosa vê cada vez menos peixes em suas redes.
Moradora do povoado de Saramén, Sergipe, Dinha, como é conhecida, diz que o
sufoco se agravou na pandemia, com o aumento dos preços da comida e do combustível
para mover os barcos.
Na região onde Dinha vive, a 5 quilômetros da foz, o rio parece
estar virando mar. O fenômeno, chamado de intrusão salina, tem uma explicação:
a massa de água salgada avança sobre o continente com a força das marés porque
há menos água doce do São Francisco correndo. Segundo o monitoramento feito
pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), a água do mar chegou a
avançar 17 quilômetros adentro do rio.
Até chegar a Sergipe, o São Francisco, que nasce em Minas
Gerais, passa por 505 municípios em seis estados. Ele corta o semiárido, tem
parte da água desviada pelos canais da transposição e é represado para gerar
energia elétrica em nove usinas. A última delas é Xingó, que controla o quanto
de água chega para a população ribeirinha na área da foz, na divisa entre
Sergipe e Alagoas, estimada em 350 mil habitantes,.
Para várias fontes ouvidas pela DW Brasil, o lobby do sistema
elétrico tem forte influência sobre toda a gestão da água do São
Francisco. E para o Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, o rio
chegou ao limite quando se considera o seu potencial gerador de energia.
"Os reservatórios do rio são para atender os usos
múltiplos, e não prioritariamente, ou hegemonicamente, o setor elétrico",
critica Anivaldo Miranda, presidente do comitê, lembrando que a eletricidade
produzida na região não abastece apenas o Nordeste, mas também o Sul e
Sudeste.
Queda de braço com o setor elétrico
Uma cascata de usinas hidrelétricas interfere na quantidade de
água que chega para a população do baixo São Francisco, região que vai de Paulo
Afonso, na Bahia, até a foz, no Atlântico. O início é o reservatório de
Sobradinho, na Bahia, construído na década de 1970, e um dos maiores lagos
artificiais do mundo, com 320 quilômetros de extensão.
Desde maio de 2019, uma nova resolução (2081/17) da Agência
Nacional de Águas (ANA) alterou a vazão mínima nos reservatórios da região
depois de um longo período de seca. Para Xingó, ficou estabelecido que a vazão
só deve baixar de 1.100 metros cúbicos por segundo (m³/s) quando o nível de
água acumulado na barragem de Sobradinho, que regula todas as outras que vêm
depois, estiver abaixo de 60%.
Foi por isso que a notícia que chegou no último domingo (23/05)
revoltou a população ribeirinha, pesquisadores e o próprio comitê. A Companhia
Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) baixou a vazão de Xingó de 1.100 m³/s
para 800 m³/s com Sobradinho marcando um nível acima de 60% – precisamente
64,92%, segundo informações do próprio Operador Nacional do Sistema Elétrico
(ONS).
A indignação vem do fato de nem a resolução 2081/17, que foi
bastante criticada à época, ser respeitada. "É uma falta de respeito a
tudo o que é decidido, tudo o que é recomendado. Falta de respeito com a
população, meio ambiente, com a saúde do ecossistema e das comunidades
ribeirinhas", argumenta Emerson Carlos Soares, professor do
departamento de Zootecnia da Ufal e coordenador das expedições científicas
no São Francisco. "Não há rio que aguente uma coisa dessas", critica.
Questionada pela DW Brasil sobre a mudança em Xingó, a ANA
respondeu nesta segunda-feira que o "ONS poderá, excepcionalmente, operar
os reservatórios do Sistema Hídrico do Rio São Francisco para atendimento de
questões elétricas, posteriormente justificadas".
Horas depois, um novo comunicado da Chesf dizia que a vazão de
Xingó voltaria para 1.100 m³/s a partir desta terça-feira.
Pressão para "fechar a torneira"
Para que o rio mantivesse uma boa saúde, nem os 1.100 m³/s
seriam suficientes, aponta Soares. "A vazão ecológica mínima aceitável, na
verdade, é 1.300 m³/s. Essa é a vazão mínima a ser assegurada para garantir que
o ecossistema aquático continue se reciclando", afirma, com base
em estudos científicos.
A queda de braço com o ONS, que coordena a geração e transmissão
de energia elétrica no país, não é nova. No começo de janeiro, quando
Sobradinho estava com praticamente 100% de sua capacidade, a vazão de Xingó
caiu de 2.800 m³/s para 800 m³/s.
Com previsão de menos chuvas nos próximos meses, a pressão para
acumular água nos reservatórios das usinas e "fechar a torneira" para
o baixo São Francisco é grande, afirmam membros do comitê que participam do
debate.
Se a situação perdurar, os impactos negativos devem se agravar.
"Essa vazão mínima impacta todo o sistema aquático, os agricultores, a
foz, a intrusão salina", reforça Maria do Carmo Sobral, engenheira civil e
ambiental e professora da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe).
Questionado, o ONS não respondeu aos questionamentos da DW
Brasil até o fechamento desta reportagem.
A lista de problemas
É grande a lista de problemas apontada pelas comunidades do
baixo São Francisco. "É puro lodo no fundo do rio e muitas algas. O rio
não tem mais força para tirar as algas, fica como se fosse uma água parada, um
açude", diz José Antonio Silva Gonçalves, proprietário rural em Pão de
Açúcar, Alagoas. O cultivo de arroz, tradicional na família, teve que ser
abandonado pela falta das cheias.
A última expedição científica na região coordenada pela Ufal,
que contou com 53 pesquisadores de 18 instituições diferentes, trouxe detalhes
do cenário. O volume baixo do rio por longos períodos amplifica os
desequilíbrios.
Com menos água, existe possibilidade de aumento de enfermidades,
como casos de câncer decorrentes da má qualidade de água e acúmulo de
nutrientes vindos os uso de agroquímicos.
"As pessoas consomem a água e o pescado, que podem
bioacumular contaminantes", acrescenta Soares. Em algumas áreas mais
próximas à foz, o aumento de pacientes hipertensos jovens, sem histórico da
doença na família, é relacionado ao provável consumo da água salobra.
A pouca água doce que chega ao oceano também traz impactos
preocupantes na região de manguezal, onde a maior salinidade ameaça espécies
costeiras, que garantem renda para muitos pescadores.
Maria do Carmo Sobral, da Ufpe, pontua ainda outra disputa pela
água. "Cerca de 70% da água da bacia é usada para irrigação. Há grandes
usuários no oeste da Bahia, para agricultura de grãos e frutas para a
exportação", comenta. E para esses grandes consumidores, a permissão para
retirada de grandes volumes de água nem sempre é alterada quando o nível do rio
cai.
Falta de visão socioambiental
Para Carlos Eduardo Ribeiro Junior, fundador da organização não
governamental Canoa de Tolda, não existe elemento socioambiental no vocabulário
da ANA, das empresas do setor elétrico e do ONS.
"Eles falam que têm que usar a água do São Francisco para
ela não ser ‘perdida' no oceano. Um absurdo", lamenta. "Não se fala
em populações ribeirinhas, meio ambiente, ecossistema, ictiofauna (peixes). A
primeira coisa a ser definida, na verdade, teria que ser como o rio tem que
chegar à sua foz pra continuar vivo", argumenta, citando que muitas
comunidades bebem "água verde" e comem peixe contaminado.
Para munir a população com conhecimento, a ONG criou em 2019 o InfoSãoFrancisco,
um serviço que transforma dados, leis e resultados de reuniões em informações
numa linguagem acessível.
Viveiro de mudas na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN),
criada em 2014 à margens do São Francisco
Morador da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Mato
da Onça, em Pão de Açúcar, criada em 2014, Ribeiro Junior vê o poder da
restauração ambiental. O verde da reserva tem trazido de volta animais como
jaguatirica e onça parda.
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