Conselho Nacional da
Reserva da Biosfera da Caatinga: O ainda desconhecido Semiárido brasileiro
"É a
partir de seus limites e não de suas potencialidades e possibilidades que
o Semiárido é apresentado, sempre carente de políticas para o seu
“desenvolvimento”. O número dos que lá habitam desmentem a ideia de uma região
sem vida, pois são mais de 22 milhões de habitantes", escreve Flávio
José Rocha da Silva, doutor em Ciências Sociais, pela PUC-SP, em artigo
publicado por EcoDebate, 30-08-2019.
http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/592171-o-ainda-desconhecido-semiarido-brasileiro
IHU
31/08/2019
Eis o artigo
Para uma parte da população do Brasil,
o Nordeste e o Semiárido são sinônimos. Muitos brasileiros não sabem que não há
sequer um quilômetro de terra semiárida no estado nordestino
do Maranhão ou que há mais pessoas habitando o Semiárido mineiro do
que no seu similar no estado do Piauí. Minas Gerais tem quase
três vezes o número de pessoas habitando a sua região semiárida do que
o Semiárido sergipano. Outros desconhecem que parte daquela região está
localizada no litoral do Ceará e do Rio Grande do Norte,
ladeando praias paradisíacas, além de ter sido palco de um importante período
econômico para o país devido à produção e exportação de algodão para a Europa
durante a Revolução Industrial. Para muitos, é como se do Semiárido não
pudesse surgir algo que não sejam galhos secos, cactos e seres magros com os
rostos queimados do sol a vagar pelo país suplicando por comida e emprego ou
sempre prontos a receber ajuda governamental, por menor que seja. São imagens
petrificadas e resistentes a encontrar respostas que a contradigam, pois estão
por demais fixadas no imaginário brasileiro.
A chegada dos
não nativos ao Semiárido nordestino aconteceu antes de outras regiões do
interior do país e seguiu o curso dos rios (principalmente o Rio São
Francisco) e dos vales. Foram vários os fatores que contribuíram para que esta
nova população fixasse morada no sertão. A doação e premiação, por parte da Coroa Portuguesa, de terras
do sertão como agradecimento pelos serviços prestados àquele reino é um deles.
A entrada do rebanho bovino, primeiro para o agreste, já que o gado não
encontrava espaço no litoral em vista da tomada daquele espaço pelos canaviais,
e depois para o Semiárido, através das margens do Rio
São Francisco, foi sem dúvida a maior das
causas a contribuir para a fixação de não indígenas naquela parte do Brasil. O
gado solto na zona canavieira não era aceito, pois danificava
as plantações de cana-de-açúcar. Além disso, era parte da dieta e meio de
transporte de cargas nos engenhos e nas áreas de mineração.
Com o aumento
da população vinda do litoral, outros rios da região visitados pelos vaqueiros
que viajavam com os rebanhos em busca de água, assim como também as
serras que forneciam alimento para o gado nos meses secos do ano,
começaram a ser tomados. Foram estes vaqueiros que difundiram as novas formas
de agricultura na região, trazidas com os portugueses, até certo
ponto inadequadas para aquela geografia, pois não a conheciam em profundidade
como os nativos. As novas culturas por eles trazidas (milho, feijão, etc.) são
totalmente dependentes do regime
de chuvas, o que mantém a população em constante
alerta sobre a precipitação pluviométrica anualmente. Em anos de estiagem
prolongada, o fracasso da colheita é dado como certo.
O Semiárido foi
sendo tomado aos poucos, envolto por um processo de luta pela terra e pela água
entre nativos e invasores. Um processo que culminou em muitas batalhas de
resistência por parte dos povos indígenas, tendo como consequência a
dizimação de milhares de nativos depois de décadas de luta, sendo,
provavelmente, a mais famosa delas a Guerra dos Bárbaros.[1] Uma das
razões era que estes não colaboravam com a cultura da acumulação de riquezas trazida
com os europeus. A luta pela posse da terra e da água sempre esteve presente na
história do Semiárido.
Um outro
motivo para o aumento da população no sertão foi a ampliação do cultivo do
algodão, chamado no passado de ouro branco. Esta planta já era plantada no
Semiárido, pois lá encontrara um clima propício ao seu cultivo. Mas foi o
mercado internacional, motivado pela guerra civil estadunidense que impedia a
produção deste produto no Sul daquele país, o grande incentivo que faltava para
o aumento e a fixação de muitos moradores a partir do século XIX no sertão.
Monoculturas como
a do caroá[2] e do agave, por exemplo, foram importantes para
a economia sertaneja em alguns períodos do século XX, mas não com a
mesma dimensão que a bovinocultura e
a cotonicultura tiveram no passado. O caroá chegou a provocar o êxodo
do litoral para o Semiárido daqueles que procuravam por trabalho assalariado.
Não chegou a ser foco de pesquisas desenvolvidas para aprofundar o seu
melhoramento e sofreu com o impacto da chegada do nylon estadunidense no
mercado brasileiro (RIBEIRO, 2007). A maniçoba[3] é outra planta que teve
alguma importância para os sertanejos. Havia também alguns engenhos de açúcar
nas serras e nas terras úmidas dos vales localizados no Semiárido, mas nunca
chegaram a ter a importância dos seus similares no litoral.
A distância
das grandes cidades causada pela falta de estradas e o consequente isolamento
em relação ao litoral,[4] onde se encontram as capitais, culminaria com o
nascimento de uma “cultura sertaneja”. A distância dos centros urbanos criou
uma economia praticamente autossustentável com cultivares que eram muitas vezes
proibidos na região canavieira, onde a prioridade era a produção do
açúcar. Os vaqueiros e as suas famílias, por necessidade, tornaram-se também
agricultores e plantavam culturas para o próprio consumo. Uma realidade que
somente começaria a ser mudada na segunda metade do século XIX com a chegada da
estrada de ferro para o escoamento da produção agrícola.
A partir da
segunda metade do século XIX sugiram as primeiras propostas de transferência da
população sertaneja para a Amazônia para trabalhar na extração da borracha. O número de
sertanejos que lá pereceram por causa das epidemias, da fome e devido à não
adaptação ao clima amazônico nunca será conhecido. Não se sabe ao
certo quantas pessoas morreram nas viagens feitas nos barcos a vapor entre
o litoral nordestino e a Amazônia. Muitos dos que viajavam adoeciam
durante o trajeto e eram abandonados próximos aos portos para que não
contaminassem os outros viajantes. Há, neste fato, certa semelhança com os
navios que trouxeram os africanos escravizados para os canaviais
brasileiros quando os portugueses jogavam ao mar os africanos que
estivessem doentes.
Na primeira
metade do século XX, a ideia de relocar a população
do Semiárido foi transformada em
política de Estado. As propostas ganharam corpo e por décadas o governo federal
incentivou a ida dos sertanejos para a região da Amazônia ou para assentamentos
em regiões com pouca densidade populacional dentro da própria região
nordestina, como em áreas do Maranhão. É como se aquelas pessoas fossem
peças facilmente removíveis para centenas de quilômetros de distância dos
lugares onde estavam por gerações e como se tal ato não desencadeasse problema
algum.
É a partir de
seus limites e não de suas potencialidades e possibilidades que
o Semiárido é apresentado, sempre carente de políticas para o seu
“desenvolvimento”. O número dos que lá habitam desmentem a ideia de uma região
sem vida, pois são mais de 22 milhões de habitantes. Alguns dos estados
nordestinos chegam a ter mais de 50% de sua população total vivendo
no sertão, embora esta porcentagem venha diminuindo nos últimos anos por
razões diversas.
A caatinga é
o bioma que ocupa a maior área territorial do semiárido. Sua
vegetação predominante é também chamada caatinga, termo originário
da língua tupi-guarani que significa mata branca[5] ou mata rala.
Esta vegetação é típica do sertão brasileiro e não é encontrada em nenhuma
outra parte do planeta com as mesmas características. No entanto, a imagem que
foi propagada da caatinga é a de uma vegetação pobre em biodiversidade e
dominada por arbustos com galhos secos, o que está bem longe da verdade. Embora
estudos recentes comecem a desfazer certos mitos sobre aquele bioma, ainda há
muito o que se revelar sobre o mesmo, já que foi de pouca atração para os
estudiosos por décadas.[6]
O que
diferencia o Semiárido
brasileiro de seus similares no planeta é que a
maioria das regiões semiáridas em outras partes do mundo possuem uma
precipitação pluviométrica média anual de 80 a 250 mm e no sertão nordestino
esta média é de 300 a 800 mm/ano, com a característica de que acontecem entre
um período de três a cinco meses durante o ano, podendo variar de região para
região geográfica mesmo dentro do chamado “Polígono das Secas”. Esta variação e
imprevisibilidade podem, inclusive, causar enchentes em anos mais chuvosos. Seu
subsolo é 70% cristalino, o que faz com que grande parte da água não seja
armazenada e escoe pela superfície (REBOUÇAS, 1997). Com relação a água que é
depositada em reservatórios naturais ou artificiais como os açudes, há que se
levar em conta o grande índice de evapotranspiração decorrente das mais de
3.000 horas de sol a cada ano.
As políticas
governamentais para o Semiárido sempre foram pensadas, na sua grande maioria,
para os grandes proprietários da região. Sempre prevaleceu a ideia de “combate”
ao clima e uma negação do modo de viver do sertanejo. A autonomia e o
conhecimento dos habitantes do Semiárido sempre foram negados nos momentos de
decisão sobre como lidar com aquela região. Isto pode ser facilmente comprovado
com os megaprojetos vendidos como a melhor oferta de “desenvolvimento” para o
sertão ao longo do último século.
Embora a
distribuição e o acesso à água de qualidade seja o tópico central
quando o assunto é o Semiárido, e esta distribuição seja imprescindível
para mudar o quadro atual – como atesta o trabalho realizado por grupos com a
construção de cisternas de placa e o seu impacto positivo na melhoria
da saúde dos sertanejos –, ela por si só não resolverá problemas como
a concentração de renda. A ajuda governamental com sua visão tecnocrática e
negadora dos conhecimentos locais nunca buscou resolver as raízes das desigualdades
sociais do Semiárido e sempre culpou o clima
pela sua existência.
Para muitos
estudiosos, o grande problema daquela região já não é a quantidade
de recursos hídricos, presente nos milhares de açudes e barragens
construídos no último século, mas sim a qualidade do solo, vítima de
séculos de uso inadequado pela pecuária, pelo cultivo de monoculturas,
por projetos de irrigação mal gerenciados, entre outros. Sem confrontar estas
questões, e elas não têm sido combatidas nos últimos governos, dificilmente o
Semiárido poderá trazer à luz todos os seus potenciais socioeconômicos e
continuará a manter a imagem de região problema do Brasil.
Referências
bibliográficas:
BRANCO, Samuel
Murgel. Caatinga: a paisagem e o homem sertanejo. São Paulo. Moderna. 2003.
COSTA, José
Jonas Duarte da. Sobre a transposição do rio São Francisco. In: MENEZES, Ana
Célia Silva; ROCHA, Flávio. A Resistência à transposição do rio São Francisco
na Paraíba: histórias em defesa da terra das águas e dos povos do Nordeste.
João Pessoa: Sal da Terra. 2010. p. 35-43.
CUNHA.
Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Nova Cultural. 1992.
DUQUE, José
Guimarães. O Nordeste e as lavouras xerófilas. Mossoró: Esam. 1980.
LIRA NETO.
Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão. São Paulo: Companhia das Letras.
2009.
PÁDUA, José
Augusto. Um país e seis biomas: ferramenta conceitual para o desenvolvimento
sustentável e a educação e ambiental. In: PÁDUA, José Augusto (Org.).
Desenvolvimento, justiça e meio ambiente. Belo Horizonte: Editora UFMG:
Peirópolis. 2009. p. 117-150.
RAMOS,
Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Record. 1980.
REBOUÇAS,
Aldo. Água
na região Nordeste. In Revista de Estudos
Avançados. Vol. 11. n. 29. JanAbr. 1997. p. 127-154.
RIBEIRO,
Manoel Bomfim Dias. A potencialidade do Semi-Árido Brasileiro. Brasília:
Editora Qualidade. 2007.
Notas:
[1] Para os
gregos, Bárbaro era todo aquele que não fosse parte do seu povo. Esta
designação continuou a ser utilizada pelos romanos durante o período que
invadiu vários territórios na Europa e na Ásia e acabou sendo adotada pelos
portugueses quando da revolta indígena no Semiárido contra a invasão dos
europeus em suas terras. (ALBUQUERQUE JR., 2012).
[2] “O Caroá é
uma bromeliácea da caatinga, de folhas e fibras um pouco mais longas do que a
Macambira. No final dos anos trinta e principalmente durante os primeiros anos
da década de quarenta, durante a 2ª Guerra, essa fibra alcançou um ótimo preço
internacional por ser extremamente resistente. O Caroá brotava na terra
sertaneja como “praga”, e o seu beneficiamento passou a ser uma necessidade da
indústria de cordas e sacarias. O Caroá chegou a gerar entre 1942 e 1943
quinhentos mil empregos entre o Moxotó pernambucano e os Cariris Velhos da Paraíba.”
(COSTA, 2010, p. 38). Tamanha importância tinha para a economia sertaneja que
foi tema de música instrumental, em 1941, composta por Luiz Gonzaga, com o
título de Arrancando Caroá. Sua importância é citada várias vezes por Euclides
da Cunha em Os Sertões (1992).
[3] Segundo
Lira Neto (2009, p. 290), “Da maniçoba se extraía uma espécie de látex,
semelhante ao da seringueira, utilizado para a produção da borracha natural. O
produto constava da pauta de exportações do Brasil e era negociado no
estrangeiro, embora em menor escala e com preço mais baixo do que o da
Amazônia, com o nome de ceara rubber.”
[4] Este
distanciamento seria quebrado com a chegada das locomotivas movidas a vapor,
que foram responsáveis por um grande desmatamento da caatinga (DUQUE, 1982). No
entanto, foram elas também que salvaram muitas vidas nos períodos de grande
estiagem através do transporte de alimentos para a população sertaneja e da
locomoção para os que deixavam o sertão.
[5]
“Estudiosos da língua indígena afirmam que, na verdade, caa, não se refere,
nesse caso, ao mato propriamente dito, mas, sim, à composição de morros e
vegetação. Isso porque, tornando-se rala e despida de folhas na época da seca,
a vegetação que cobre os morros forma uma paisagem clara e desértica. Finalmente,
outros atribuem origem diferente ao termo. Alegam que ele surgiu da combinação
abreviada de caa (mato) e tininha (seco), isto é, “mato seco”. (BRANCO, 2003,
p. 9). O fato de que os europeus encontraram uma vegetação nomeada pelos
indígenas, demonstra que estes “[…] já realizavam exercícios de classificação e
diferenciação de grandes áreas florísticas, facilitando a apropriação e o uso
dos recursos da natureza local.” (PÁDUA, 2009, p. 119).
[6] A riqueza
das plantas da caatinga foi reconhecida como Reserva da Biosfera, em 2001, pela
UNESCO.
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Sobre o
assunto
Caatinga - o
semiárido brasileiro
http://www.suassuna.net.br/2021/04/conselhonacional-da-reserva-da-biosfera_29.html
Postado há 2 hours ago por João Suassuna
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