"DO REMA
Caos e medo em Caetité: a violação dos direitos humanos.
Entrevista especial com Marijane Lisboa
08/10/2011
A Unidade de Concentrado de Urânio das Indústrias Nucleares do Brasil – URA-INB, “que minera e transforma urânio mineral em licor de urânio e este em concentrado de urânio, a principal matéria-prima do combustível nuclear”, entrou em funcionamento há uma década no município de Caetité, na Bahia e desde então aumentam as denúncias de crimes ambientais e violação dos direitos humanos. Nesses dez anos de atuação, “registraram-se muitos acidentes, objeto de autuações e multas dos órgãos federais e estaduais”, diz Marijane Lisboa, autora do relatório sobre o vazamento de urânio na cidade baiana. Entre os desastres ambientais, a pesquisadora menciona que já “transbordaram cinco milhões de litros de licor de urânio das bacias de sedimentação para o meio ambiente. (...) Entre janeiro e junho de 2004, a bacia de barramento de ‘finos’ transbordou sete vezes, liberando efluentes líquidos no Riacho da Vaca. O último vazamento de substância oleosa (solvente com urânio) custou à INB uma multa de um milhão de reais, em setembro de 2010”.
Ao visitar as comunidades que residem proximamente à mina de urânio, Marijane Lisboa ouviu diversas queixas em relação à falta de informações sobre os impactos ambientais e sociais. “Essas populações temem estarem sendo envenenadas devido à proximidade da mina e se alarmam com a grande frequência de mortes por câncer na região. (...) Todas as comunidades se queixaram de uma súbita falta de água, que inviabiliza suas atividades agrícolas e domésticas, como lavar roupa e cozinhar. Eles relacionam essa diminuição súbita da água com a abertura da mina dez anos atrás, pois foi aí quando começou o problema. Quando a INB se implantou no local, ela assinou contratos com vários agricultores para perfurar poços em suas propriedades e dividir o uso da água. Desde então muitos desses poços estão secos”, relata.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a IHU On-Line, Marijane Lisboa enfatiza que ainda não há uma solução segura para as milhares de toneladas de rejeitos radioativos gerados em todo o mundo. “Todas as usinas nucleares podem falhar e há um número enorme de acidentes menores, que não chegam às páginas dos jornais, mas que mostram os riscos intrínsecos à geração de energia nuclear. Em resumo, a energia nuclear é perigosa, cara e pouco eficiente e provavelmente só foi desenvolvida no mundo porque servia de biombo aos programas militares paralelos”.
Marijane Lisboa é uma das fundadoras do Greenpeace Brasil, onde coordenou campanhas nas áreas de transgênicos, resíduos sólidos e poluição do ar, e é ex-secretária de Qualidade Ambiental de Assentamentos Humanos – SQA do Ministério do Meio Ambiente. É graduada em Sociologia, pela Freie Universität Berlin, e doutora na mesma área pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, instituição na qual leciona. É membro do Conselho Deliberativo da Associação de Agricultura Orgânica – AAO, da Rede Brasil Ecológico Livre de Transgênicos e Agrotóxicos e da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Autora do livro Ética e cidadania planetárias na era tecnológica (Civilização Brasileira), também realiza consultorias para órgãos europeus e traduções de literatura científica e ficção alemã para o português.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as principais informações apresentadas pela Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente em relação à exploração de urânio na cidade de Caetité?
Marijane Lisboa – Em primeiro lugar, preciso explicar o que é esse relatório. A Relatoria de Direito Humano Ambiental é parte do Projeto "Relatorias", da Plataforma DhESCA (Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais), um conjunto formado por entidades que buscam fomentar a cultura dos direitos humanos no Brasil. Há “relatorias” para várias áreas, como Educação, Direito a Cidade, Saúde Reprodutiva, Direito a Terra, Território e Alimentação Adequada e Meio Ambiente. Junto com o Dr. Guilherme Zagallo, respondo pela Relatoria de Direito Humano Ambiental.
Funcionamos ao modo das relatorias da ONU. Realizamos missões investigativas a lugares onde populações locais nos enviam denúncias de violação dos seus direitos humanos e, após realizarmos as missões, elaboramos relatórios com conclusões e recomendações às autoridades responsáveis. O relatório da Missão Caetité foi o resultado de uma visita à cidade de Caetité, Bahia, em fins de julho de 2010, para averiguar denúncias sobre violações de direitos humanos ambientais da população local, ocasionadas pela Unidade de Concentrado de Urânio das Indústrias Nucleares Brasileiras – URA-INB, que minera e transforma urânio mineral em licor de urânio e este em concentrado de urânio, a principal matéria-prima do combustível nuclear, nas cercanias da cidade de Caetité. A denúncia foi encaminhada pela Associação Movimento Paulo Jackson: Ética, Justiça, Cidadania, entidade que é membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, rede de referência da nossa Relatoria. A Comissão Paroquial de Meio Ambiente de Caetité também prestou seu apoio à Associação e esse apoio custou ao seu dirigente, o Pe. Osvaldino Barbosa, ameaças anônimas à sua vida e à sua família.
Queixas da comunidade
A entidade nos trouxe as diversas queixas das comunidades rurais que vivem no entorno da mina. Elas temiam por sua saúde, pois vários poços que abasteciam seus lugarejos haviam sido fechados em novembro de 2009 pelos órgãos estaduais de saúde e de água, em virtude de testes haverem revelado altos teores de substâncias radioativas. Sem água, acabaram sendo abastecidos com carros-pipa por ordem judicial durante longo tempo. Meses depois – com a exceção de um deles – os poços foram reabertos, sem que houvesse explicações satisfatórias do porquê foram fechados e depois reabertos. Essas populações temem estarem sendo envenenadas devido à proximidade da mina e se alarmam com a grande frequência de mortes por câncer na região.
Todas as comunidades se queixaram de uma súbita falta de água, que inviabiliza suas atividades agrícolas e domésticas, como lavar roupa e cozinhar. Eles relacionam essa diminuição súbita da água com a abertura da mina dez anos atrás, pois foi aí quando começou o problema. Quando a INB se implantou no local, ela assinou contratos com vários agricultores para perfurar poços nas suas propriedades e dividir o uso da água. Desde então muitos desses poços estão secos.
Outra grande queixa dos vizinhos da INB são as explosões frequentes para extração do minério, que provocam rachaduras em suas casas e os assustam. As explosões e rachaduras, a falta de água e a dificuldade em vender seus produtos nos mercados locais, pois contra eles pesa o estigma de que estejam contaminados com urânio, tem inviabilizado a vida desses agricultores. Muitos gostariam de vender suas casas e terrenos, mas não encontram compradores e o que a empresa tem oferecido em casos particulares é muito pouco. Há muitas casas fechadas, cujos moradores abandonaram a agricultura e foram tentar a vida nas cidades mais próximas.
Uma queixa das comunidades vizinhas que engloba todas essas anteriores é a falta de informações e de atendimento às suas preocupações e reclamações por parte das autoridades. Os moradores dizem que não têm a quem se queixar ou reclamar, pois nem a empresa, a INB, nem a prefeitura, tampouco os órgãos estaduais lhes dão ouvidos. Isso ficou patente no Seminário sobre Segurança, Saúde e Meio Ambiente, que organizamos juntamente com a Fundacentro e na Audiência Pública que se seguiu, coordenada pela promotora Luciana Khoury, do Ministério Público Estadual/núcleo São Francisco.
O auditório da Universidade Estadual da Bahia – Uneb ficou repleto de moradores que vieram das várias comunidades vizinhas e que demonstraram às autoridades presentes a sua grande insatisfação com a falta de informação e atendimento às suas reclamações e pedidos de esclarecimento. A rádio comunitária da paróquia local também acusou uma audiência de 20 mil pessoas! Todos estavam sedentos por informação nas redondezas. Enquanto estivemos em Caetité, visitamos várias comunidades atingidas, como Juazeiro, Riacho da Vaca e Gameleira, bem como o Quilombo da Malhada. Visitamos também o juiz da Comarca de Caetité, Dr. José Eduardo Brito, o prefeito, José Barreira de Alencar Filho e a Secretária da Saúde, Cíntia Lopes Abreu Marques.
Antes de concluir o relatório, decidimos voltar à Bahia para entrevistar as autoridades estaduais e tentar esclarecer vários dos problemas apontados pela população. Em abril de 2011, estivemos em Salvador e tivemos entrevistas com os ministérios públicos estadual e federal que entraram com ações civis públicas em virtude das denúncias recebidas, com a Superintendência da Vigilância Sanitária e Proteção à Saúde, da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia, com o Instituto de Gestão das Águas e Clima do Estado da Bahia e com a Superintendência do Ibama no Estado. Muitos desses órgãos nos prometeram enviar documentações solicitadas, promessas que só em parte foram cumpridas, apesar de nossas insistentes solicitações.
IHU On-Line – Como foi a audiência pública e a repercussão do relatório sobre a exploração de urânio em Caetité?
Marijane Lisboa – A Audiência Pública foi muito concorrida. Pelo que pude perceber, metade da sala estava ocupada por representantes de movimentos sociais e ONGs, que lutam contra os riscos das atividades nucleares – moradores de Caetité, vítimas do acidente do césio em Goiânia, moradores de Santa Quitéria, no Ceará, onde o governo quer abrir uma nova mina de urânio, o Greenpeace e várias entidades da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. A outra metade era composta pela “comunidade nuclear”, que na maior parte não se identificou, a não ser pelos bilhetinhos aflitos que passavam entre si.
A grande surpresa da audiência, contudo, não foi o relatório que apresentei, nem o testemunho do Pe. Osvaldino e representantes da população local, mas os depoimentos de dois líderes sindicais presentes. Em greve devido à tentativa da empresa de lhes cortar as horas extras, os dois líderes relataram com abundância de detalhes as condições lamentáveis, perigosas e improvisadas em que funciona a empresa. Denunciaram o emprego de funcionários terceirizados nas operações mais perigosas, a falta de equipamentos adequados, a lavagem e uso renovado de macacões descartáveis, a não divulgação dos resultados dos exames médicos a que são periodicamente submetidos e as ameaças constantes de demissão, caso reclamem das condições de trabalho perigosas.
Quanto à repercussão, foram o deputado José Pena, que presidiu a sessão, e uma deputada do PSB, que veio fazer um misterioso voto de fé cega na seriedade das nossas autoridades nucleares – e saiu sem ouvir nenhuma linha do relatório –; nenhum deputado ou senador. A grande mídia tampouco compareceu, embora fartamente convidada. No entanto, no dia anterior, um seminário chapa-branca, organizado pelo TCU no Rio de Janeiro para discutir “segurança nuclear”, onde se teceram muitos comentários elogiosos sobre o alto nível de segurança das nossas atividades nucleares mereceu boa cobertura. Apenas a TV Câmara cobriu a audiência.
IHU On-Line – Há quanto tempo acontece exploração de urânio em Caetité? Há registros de vazamento de urânio ou de acidentes por causa da exposição?
Marijane Lisboa – A Unidade de Concentrado de Urânio das Indústrias Nucleares do Brasil – URA-INB entrou em funcionamento em janeiro de 2000. Desde que começou a funcionar, registraram-se muitos acidentes, objeto de autuações e multas dos órgãos federais e estaduais. Alguns exemplos eu trago: logo que começou a funcionar, transbordaram cinco milhões de litros de licor de urânio das bacias de sedimentação para o meio ambiente. O órgão ambiental estadual de então, o CRA, aplicou multa máxima, o Ministério Público Estadual abriu uma Ação Civil Pública, e o Ibama suspendeu a licença de instalação. Entre janeiro e junho de 2004, a bacia de barramento de “finos” transbordou sete vezes, liberando efluentes líquidos no Riacho da Vaca. Outros acidentes se repetiram nos anos que se seguiram, como o comprovam a nota técnica que obtivemos da superintendência do Ibama, a duras penas, e que lista diversos “eventos não usuais na URA-Caetité”, além de multar a empresa por deixar de comunicar acidentes e entregar relatórios de atividades sobre procedimentos de controle ambiental desde 2006 até 2009. O último vazamento de substância oleosa (solvente com urânio) custou à INB uma multa de um milhão de reais, em setembro de 2010. Pelo visto os “eventos não usuais” são a norma de funcionamento da empresa.
IHU On-Line – Quais são os impactos ambientais do vazamento de urânio? Há registros de contaminação dos lençóis freáticos?
Marijane Lisboa – Este é justamente o problema: não sabemos quais foram os impactos, não sabemos se há contaminação dos lençóis freáticos. Não sabemos, porque o órgão encarregado de fiscalizar e garantir a segurança das operações da UR-INB, a Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN, diz que faz estudos sistemáticos, que não há impactos e que tudo funciona às mil maravilhas. Mas não mostra os exames e seus resultados. O problema é que a CNEN é a acionista majoritária (99,9% das ações) da INB, ou seja, da empresa cujo funcionamento ela mesma deveria fiscalizar. Esse desenho institucional em que a empresa que fomenta é a mesma que fiscaliza contraria todo o bom-senso em matéria de gestão, como também desobedece à Convenção Internacional de Segurança Nuclear, da qual o Brasil é signatário, que recomenda a “efetiva separação” entre as funções regulatórias e as de fomento.
A CNEN proíbe seus fiscais de divulgarem os resultados de suas fiscalizações e tampouco divulga laudos de exames realizados. Por exemplo, os laudos dos testes das águas dos poços interditados em Caetité nunca foram divulgados. A CNEN simplesmente lançou uma nota dizendo que tudo estava bem. Ela exige a fé cega nas suas palavras. A secretividade, aliás, não é característica das atividades nucleares somente no Brasil. Porque a exploração da energia nuclear sempre teve interfaces muito íntimas com programas nucleares militares, esse ramo industrial é bem menos acessível à fiscalização e controles públicos e sociais. No Brasil, também, ele surge ligado a um programa militar paralelo, que ambicionava fabricar bombas atômicas. Mas, se nossa Constituição proíbe a fabricação de armas nucleares, temos que acabar com essa secretividade que apenas põe em risco o país. Essa é uma verdadeira “herança maldita da ditadura” que ainda precisa ser eliminada.
IHU On-Line – A senhora visitou o hospital da cidade de Caetité. Qual sua impressão sobre o local? Como a população de Caetité reage diante da exploração de urânio na cidade?
Marijane Lisboa – A cidade tem dois hospitais grandes, mas só em parte utilizados. O hospital público tem apenas o pronto socorro funcionando e o hospital particular só tem algumas unidades abertas. Houve emendas parlamentares para construir hospitais, que custam caro, mas não para equipá-los e contratar profissionais. Não há nenhuma unidade de oncologia na cidade. Não há nenhum programa de saúde preventiva para câncer e outras enfermidades que podem ser provocadas pela presença de material radioativo, nem para trabalhadores, nem para a população. Nunca se fez um estudo de base sobre a incidência de cânceres antes do estabelecimento da empresa em Caetité, de modo que fica fácil alegar que um maior índice de cânceres já fosse o “normal” anteriormente, por ser uma região uranífera. Quem contrai câncer precisa viajar para Vitória da Conquista, Salvador ou São Paulo para se tratar. Muitos morrem fora, ou voltam apenas para morrer em casa.
O que vi na Audiência Pública realizada em junho de 2010 em Caetité foi o medo. A população do entorno da mina, em Caetité, tem medo, pois sabe que o urânio é radioativo e que pode contaminar água e alimentos. Além disso, teme as explosões provocadas pela mina, as rachaduras e possíveis acidentes. A secretividade que cerca a INB, pois a empresa sempre nega que tenha havido acidentes, ou trata de minimizá-los, embora tais assertivas contrariem o que contam os trabalhadores da mina aos seus parentes e amigos, faz com que a empresa tenha perdido toda a credibilidade.
IHU On-Line – Quais são os riscos da exploração de urânio para a saúde humana? Há informações sobre casos de doenças em Caetité por causa da exploração de urânio ou contaminação radioativa?
Marijane Lisboa – A exploração de urânio é sempre perigosa para a saúde humana, particularmente para os seus trabalhadores, que sofrem uma exposição crônica e ainda podem sofrer exposições agudas em decorrência de acidentes. Pessoas que vivem nas imediações de uma mina de urânio podem também sofrer uma contaminação crônica em virtude da contaminação da água e do solo, decorrentes de vazamentos e a subsequente contaminação de alimentos e animais. Também são vítimas das explosões para extrair o minério, que liberam o gás radônio, inodoro e invisível, mas muito perigoso para a saúde.
Há farta literatura sobre as lamentáveis condições de saúde de populações vizinhas a antigas minas de urânio nos EUA e na ex-URSS: enorme incidência de cânceres, inutilização de grandes extensões de terras. Mesmo supondo que as minas de hoje em dia sejam exploradas com métodos mais seguros, elas sempre são perigosas. Um excelente exemplo é Caldas, em Poços de Caldas, onde vemos rejeitos radioativos abandonados ao ar livre nas piores condições.
IHU On-Line – Quais são as condições de trabalho dos funcionários da Indústrias Nucleares do Brasil – INB? Como eles se manifestam diante do trabalho praticado na empresa?
Marijane Lisboa – Quando realizamos a visita a Caetité, em julho de 2010, não tivemos contato oficiais com trabalhadores. Tínhamos informações sobre condições de trabalho precárias, mas por temerem retaliações, os poucos trabalhadores que nos procuraram não quiseram ser identificados. Na Audiência Pública, semana passada, no entanto, todos ficamos estarrecidos com o que os líderes sindicais relataram de viva voz. Entre outras coisas, impressionou-nos ouvir que eles nunca tiveram acesso aos seus exames. A auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego, Dra. Fernanda Gianazzi, já havia explicado que a empresa não estava realizando todos os testes necessários para acompanhar a saúde dos trabalhadores e que o Brasil não cumpria com legislação internacional da Organização Internacional do Trabalho para trabalhadores em atividades relacionadas com material radioativo.
IHU On-Line – Em que sentido pode-se falar em violação de direitos humanos e ambientais em Caetité?
Marijane Lisboa – O caso de Caetité é emblemático da tese que os direitos humanos devem ser entendidos sempre como um conjunto de direitos interligados e interdependentes. Ali a violação do direito humano a um meio ambiente equilibrado em decorrência das atividades da INB implica a violação do direito à saúde, à moradia, à água potável e à atividade econômica da população vizinha da empresa. Além disso, as dificuldades enfrentadas pela população em receber informação adequada, ser ouvida e atendida pelas autoridades configura um quadro de violações aos direitos políticos de acesso à informação, manifestação e participação nas decisões políticas que lhe afetam. A população de Caetité nunca foi ouvida pelas autoridades federais, quando elas decidiram ali localizar essa empresa. As licenças prévias de instalação e operação foram sucessivamente concedidas pelo Ibama/Brasília, apesar de todos os acidentes e do descumprimento das condicionantes, sem que nunca a população local tenha sido ouvida. Assim, quem mais sofre com a empresa é quem nunca teve direito de ser ouvido.
IHU On-Line – Como vê a postura do Brasil de investir em energia nuclear?
Marijane Lisboa – Acredito que o governo brasileiro deveria fomentar amplo debate nacional sobre a conveniência de se continuar a desenvolver o Programa Nuclear Brasileiro, dados os seus riscos e danos que vão muito além daqueles que podem originar-se de acidentes em usinas nucleares, como em Chernobyl ou Fukushima. Ao se considerar o ciclo do combustível nuclear como um todo, que se estende desde a mineração, processamento de urânio, transporte, uso como combustível e descarte final, mutliplica-se consideravelmente o número de vítimas que ele produz, vítimas que são objeto de uma contaminação crônica e invisível, mas wque nem por isso é menos irreversível ou grave, e que vivem sobre o terror de acidentes, aparecimento de doenças graves e morte.
Até hoje não há solução segura para os rejeitos radioativos e já são milhares de toneladas em depósitos provisórios pelo mundo afora. O transporte de material radioativo por terra e navios pode ser objeto de acidentes graves e de atentados terroristas. Todas as usinas nucleares podem falhar e há um número enorme de acidentes menores que não chegam às páginas dos jornais, mas que mostram os riscos intrínsecos à geração de energia nuclear. Os acidentes em usinas condenam gerações de pessoas à morte por câncer, inutilizam enormes extensões de terras, criam cidades fantasmas. Finalmente, o descomissionamento de usinas nucleares, ou seja, o seu desmantelamento findada a sua vida útil, é uma operação economicamente caríssima, caso se busque uma segurança adequada.
Em resumo, a energia nuclear é perigosa, cara e pouco eficiente e provavelmente só foi desenvolvida no mundo porque servia de biombo para programas militares paralelos. Com tantas fontes alternativas de energia e um bom programa de eficiência energética descentralizado, o Brasil pode passar muito bem sem energia nuclear e economizar recursos, que certamente serão bem-vindos na saúde pública, educação, moradia, reforma agrária e combate à miséria.
IHU On-Line – Após a divulgação do relatório sobre a exploração de urânio em Caetité, qual sua expectativa?
Marijane Lisboa – O relatório faz uma série de recomendações às autoridades envolvidas, principalmente aos ministérios de Ciência e Tecnologia, Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente, mas também aos órgãos estaduais da Bahia e aos ministérios públicos estaduais e federal. A mais urgente é a que se refere à água consumida pela população vizinha à empresa. É preciso garantir a essa população o consumo de água dentro dos parâmetros de normalidade. Para isso propomos que se forme uma comissão mista, composta de vários órgãos públicos, instituições acadêmicas e sociedade civil – e não só da CNEN –, que encomende exames em laboratórios independentes da CNEN e divulgue os seus resultados.
Ainda com referência à saúde da população, recomendamos que se monte um plano de monitoramento da saúde dos trabalhadores e da população vizinha, formando para isso também uma comissão mista com vários órgãos e, se necessário, convidando especialistas do exterior, e que se equipe o sistema de saúde da cidade com recursos e técnicos necessários para tal. A CNEN, a INB e o Brasil devem isso à população da cidade de Caetité.
Outra recomendação importante que fizemos foi a de que se faça uma auditoria independente na URA-INB para se averiguar as condições de funcionamento, acidentes passados, contaminação de corpos hídricos, solo, etc. Desta auditoria devem participar também representantes da sociedade civil e especialistas de entidades de pesquisa. Seus resultados devem ser publicizados, pois quem não deve não teme.
Também recomendamos que o Ministério Público Federal nomeie urgentemente um procurador para a região, que o Ingá investigue as razões da súbita falta de água no entorno da empresa, que se suspendam novas licenças de mineração de urânio no Brasil; também que se crie um órgão de fiscalização separado do (órgão) de fomento de atividades nucleares e que se indenizem de forma justa os moradores cujas casas e atividades econômicas tenham sido afetadas pelo funcionamento da INB.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Marijane Lisboa – Às visitas aos órgãos públicos estaduais e à superintendência do Ibama em Salvador indicaram um quadro de “falência múltipla” dos nossos órgãos públicos. Uma "dança das cadeiras" permitia com que uns atribuíssem a outros as responsabilidades, culminando o empurra-empurra na poderosa CNEN, que, por sua vez, não costuma dar satisfações a ninguém. O fato de que a superientendência do Ibama, que a Secretaria da Saúde do Estado e que o Ingá não tenham técnicos em radioatividade configura o que chamamos de “conspiração da ignorância”. Estes órgãos não podem dizer nada, porque não têm profissionais, equipamentos e laboratórios especializados. Volta-se ao começo do jogo, portanto, à CNEN. Isso não pode ter sido por acaso. Quem decidiu construir a URA-INB também decidiu não equipar os seus hospitais com unidades oncológicas, não contratar técnicos nos órgãos estaduais e municipais, não formar pessoal especializado. Se o Estado não é capaz de fiscalizar, não deveria permitir o estabelecimento de atividades intrinsicamente perigosas como a mineração e processamento de urânio.
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