Conselhos Consultivos de unidades de conservação: concessão ou direito?
Celso Lago-Paiva
11 de junho de 2012
Republicado em 25 de junho de 2012 pela AMDA em http://www.sense8.com.br/clientes/amda/?string=interna-opiniao&cod=4982
“A criação do domínio mental da fantasia encontra um paralelo perfeito no estabelecimento de “reservas” ou “parques naturais” em lugares onde as exigências da agricultura, das comunicações e da indústria ameaçam ocasionar mudanças na face original da terra que logo a tornarão irreconhecível. Uma reserva natural conserva o estado original que em todas as outras partes foi, para nosso pesar, sacrificado à necessidade.”
Sigmund Freud, “Introductory lectures on Psycho-Analysis; apud Thomas, 1988:288: Thomas, Keith, 1988. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500–1800). São Paulo, Companhia das Letras, 454 p., il. Trad. João Roberto Martins Filho (1983. Man and the natural world: changing attitudes in England, 1500–1800. Harmondsworth, Midlesex, Penguin.
Quando o mulato genial André Rebouças preconizou a criação do primeiro Parque Nacional no Brasil, não deve ter imaginado que os frutos de seu sonho, finalmente tornados reais, passassem por tantas vicissitudes. Criados inicialmente para refúgio ou balneários para a burguesia entediada e para funcionários de alto escalão, ao alcance das grandes capitais, os Parques Nacionais em breve responderiam por preservar parcela significativa da biodiversidade, da água, das paisagens e do patrimônio histórico-arqueológico deste país. Logo a essas unidades se somariam outras modalidades de unidades de conservação da natureza, como as Estações Ecológicas, Reservas Biológicas, Monumentos Naturais e Refúgios da Vida Silvestre, além de muitas Reservas Particulares do Patrimônio Natural, que se multiplicaram e se fortaleceram no quadro de conservação da natureza.
Os Parques Nacionais já sofreram toda sorte de indignidades, que ferem a finalidade primordial das unidades de conservação: conservar. Parques Nacionais ocupados por edificações privadas (como hotéis), queimados, invadidos por plantas e animais exóticos (especialmente lebres, cães domésticos, abelhas africanizadas e javalis), rasgados por estradas, submersos por grandes represas, saqueados por exploradores de madeira, lenha, minérios, diamantes, afrontados por caçadores, reivindicados por quilombos criados há vinte anos, esquecidos nos processo de desapropriação, destituídos das obrigatórias zonas de amortecimento, invadidos por bairros informais, poluídos e contaminados, etc., etc., são ocorrências que devem continuar a ser saneadas.
Marcante é a reduzida destinação de verbas federais para a resolução desses problemas, bem como animosidades entre diversos órgãos federais, que deveriam se entender para sanar diversos desses problemas: INCRA, FUNAI, IBAMA, ICMBio, ANA, DNPM, sem falar nas administrações estaduais e municipais, detentoras de muitas unidades de conservação de importância destacada.
Com todos os problemas, as unidades de conservação de proteção integral tem tido a responsabilidade da proteção de áreas extremamente relevantes para a conservação de ecossistemas ricos em espécies endêmicas, raras e ameaçadas, para a proteção de patrimônio histórico-arqueológico diverso e precioso e para o fornecimento de serviços ambientes e sociais da maior importância para a humanidade.
Muito recentemente assistimos ao governo federal desafetando áreas de Parque Nacionais na Amazônia, por razões mal explicadas, apesar do clamor de membros de muitas organizações sérias de conservação da biodiversidade e até de profissionais do ICMBio.
O Parque Nacional das Sete Quedas, extinto como se fosse considerado sem valor, hoje embaixo da água, é tão vexatório, que nem é citado na lista dos Parques Nacionais brasileiros, como se, jogando a poeira para baixo do tapete, ela fosse esquecida e a vergonha atenuada. A sociedade nada podia fazer para obstar todo esse descalabro administrativo, não só pela violência de tempos “bicudos”, mas porque o gerenciamento das unidades de conservação era privilégio de pequeno grupo de políticos e administradores, ainda que muitos deles cheios de boas intenções e de conhecimento especializado.
Em 18 jul. 2000 a lei federal 9.985, que criou o Sistema nacional de Unidades de Conservação da Natureza (Lei do SNUC), criou também a figura do Conselho Consultivo, de forma que a sociedade organizada participasse da gerência das unidades de conservação.
Mesmo naquela época, ninguém vislumbrou os Conselhos Consultivos dos Parques Nacionais como possível porta livre de acesso da sociedade para influenciar e conduzir os rumos da conservação da natureza nas unidades de conservação, por dois motivos muito simples: 1. estávamos recém-saídos da ditadura, e ninguém sabia quais ramos da dita dura continuavam existindo sub-repticiamente, e conduzindo os destinos oficiais; 2. os conselhos eram consultivos, ou seja, qualquer discussão que não agradasse aos donos do poder podia ser imediatamente anulada, e o jogo dado por apitado.
Os técnicos da conservação lotados nas unidades de conservação, que apostaram suas carreiras em conhecer os mistérios da biodiversidade e aplicá-los a favor dos seres vivos, frequentemente olhavam os Conselhos Consultivos como reuniões pouco úteis. O crescente envolvimento das instituições de pesquisa e das organizações da sociedade organizada nos Conselhos, no entanto, reverteu favoravelmente esse conceito, passando os técnicos a co-agir com os representantes. Acredito, assim, que os Conselhos são a única salvação decente e honrosa para os Parques Nacionais, o que explico.
Como são constituídos os Conselhos Consultivos dos Parques Nacionais? Convidando-se amplamente setores diversos da sociedade organizada (órgãos do Estado nos três níveis, órgãos fiscalizadores, órgãos conservacionistas públicos, instituições públicas e privadas de ensino e pesquisa, associações de agricultores, usuários dos Parques Nacionais e de seus produtos, empreendedores, etc.) para nomearem representantes cativos dos Conselhos.
Ora, se os Conselheiros são representantes legítimos da sociedade (bem) organizada, por que os Conselhos nada decidem, ou, se decidem, não são ouvidos ou não conseguem impor suas deliberações? Novamente listo as razões, simples e óbvias: 1. os Conselhos são consultivos, e suas decisões, que não precisam ser respeitadas por ninguém, não chegam a ser propriamente decisões; 2. ser Conselheiro é honraria que vai bem num curriculum vitae, que nunca cita se o Conselheiro é combativo (como muitos são) ou mero espectador; 3. As entidades representadas são escolhidas pelo Chefe da unidade de conservação; 4. dado o pequeno número de Conselheiros, não existe nenhuma garantia de que as instituições mais combativas e independentes estejam representadas no Conselho; 5. em municípios onde impera ambiente social desequilibrado, eivado de violência e desigualdade, existe forte constrangimento para a participação de pessoas das comunidades nos Conselhos; 6. Os Conselheiros não participam da escolha das instituições que se agregam ao Conselho, quando deveriam ter voz ativa na seleção.
Isso tudo acontece e é verdade, como todos os que já participaram de Conselhos. Mas é verdade, também, que os Conselheiros não se impõem, não exigem seus direitos, não conduzem as reuniões como poderiam, e aceitam o que lhes é apresentado, sem se unir para merecerem força maior na administração. Essa força, é necessário ressaltar, quando conquistada e defendida pela sociedade, agrega muito mais valor do que a coisa concedida pelo poder público. É direito da sociedade influir na gestão pública!
O fato de os Conselhos serem, de direito, apenas consultivos, não significa que os Conselheiros não possam torná-lo, de fato, deliberativos, através de seus atos, suas discussões, suas deliberações, da discussão pública e da defesa livre de seus julgamentos perante a sociedade. Os Conselhos podem, também, recusarem concessões não referendadas pela participação da sociedade representada nos Conselhos das Unidades de conservação.
Um dos exemplos mais flagrantes é o da escolha dos Chefes das unidades de conservação. Os Chefes podem tanto representar força positiva, ao “vestir a camisa” da conservação, quanto travarem os Parques, por não concordarem com os objetivos conservacionistas das unidades. Eles podem se tornar membros proeminentes e agregadores no meio conservacionista, se forem dotados dos atributos essenciais: honestidade, empatia, facilidade no trato social, dinamismo, boa vontade, abnegação, doação, paciência, conhecimento técnico e científico e habilidade administrativa. A par das tarefas burocráticas e administrativas, que são, via de regra, pesadas e monótonas, o Chefe tem a tarefa de agregar os servidores da unidade em corpo coerente e ativo, com funções bem determinadas e dotados da necessária liberdade de ação e de delegação de poderes. O Chefe é, ainda mais, articulador social, procurando sempre apoiar e estimular a pesquisa científica e a conservação, pela mobilização constante da sociedade em prol das unidades de conservação, verdadeiros tesouros em suas mãos.
O Chefe deve, ainda, saber lidar com os questionamentos provindos de todos os meios sociais, realizar a autocrítica e, em reuniões efetivas, promover a síntese dos anseios dos meios sociais, quer sejam conservacionistas, científicos, políticos ou econômicos, sempre visando proteger, promover e aumentar a representatividade da unidade que dirigem.
Esse impacto potencial dos Chefes verdadeiros e vocacionados (felizmente são muitos!) faz com que a sociedade organizada dos cidadãos conscientes tenha o maior interesse em procurar influir em sua escolha, tanto quanto possível, através dos meios lícitos e moralmente válidos. No entanto, os Chefes são, sempre, nomeados sem consideração com os Conselhos Consultivos e com os funcionários das unidades de conservação; nesses casos, os Conselheiros não se manifestam, talvez para evitar ainda mais constrangimentos. Esse processo, desgastante para os Conselheiros, poderia ser evitado se a direção do órgão submetesse a priori a decisão à consideração do Conselho, oferecendo alternativas de nomes, informando curricula vitae e solicitando sugestões. Isso seria dar poder à sociedade e legitimar socialmente a escolha do Chefe. Chefe imposto tem seu cargo legalmente validado, mas carente da legitimidade que o processo participativo poderia conferir a ele. É preferível que o Conselho rejeite um nome indicado para Chefia, e indique outros em lista, do que trinta pessoas altamente responsáveis, líderes em suas áreas, trabalhando de boa vontade para o bem de todos, sejam tratadas com indiferença.
O oposto também acontece: Chefes atuantes e comprometidos com a conservação, dotados das qualidades que examinei acima, são exonerados sumariamente (muitas vezes por contrariarem poderes regionais ou orientações institucionais), sem nenhuma consideração com os Conselhos, que não são sequer oficiados da decapitação. Isso prova que, ao menos nesses casos, os Conselhos são considerados, pela administração central, como mera e incômoda formalidade.
Os membros dos Conselhos Cosultivos deveriam, ainda, promover a ampliação do próprio Conselho, de forma a torná-lo mais efetivo e representativo, aprovando seus pares de forma independente da Chefia da unidade. Nesses casos, e em muitos outros, os próprios Conselheiros poderiam convocar as reuniões e decidir a pauta de seu interesse.
Muitos outros processos técnicos e administrativos das unidades de conservação, citados na legislação pertinente (Lei federal 9.985, de 18 jul. 2000; Decreto federal 4.340, de 22 ago. 2002; Instrução Normativa ICMBio 11, de 8 jun. 2010), previstos na atividade dos Conselhos Consultivos, podem ser total ou parcialmente assumidos pelos Conselhos, de forma a cooperar com a Chefia e os técnicos das unidades de conservação, pelo bem das unidades.
Não existe uma federação nacional ou regional dos Conselheiros, que poderia ser criada como figura jurídica, sem tutela do poder público. Os Conselheiros podem ter páginas na internet, igualmente livres, nas quais poderiam relatar suas ações e expor suas questões e deliberações.
Não pensem os Conselheiros que estão sozinhos em suas ações e preocupações. Além das instituições que representam, os Conselhos têm parceiros fiéis e interessados entre muitos Analistas Ambientais das unidades, membros dos Ministérios Públicos Estadual e federal e muitas instituições da sociedade civil organizada, além de jornalistas, pesquisadores e educadores, todos desejosos em participar ativamente do processo de conservação.
Infelizmente existe resistência generalizada à participação da sociedade no processo administrativo das unidades de conservação. Essa resistência pode ser razoável em regiões nas quis a sociedade é fracamente mobilizada, e nas quais as forças organizadas são opostas à conservação. No Centro-Oeste do país a resistência vem dos exploradores de madeira, garimpeiros, caçadores e produtores rurais, estes muitas vezes atrelados a sistemas agropecuários tecnificados e altamente predatórios, dependentes da utilização massiva de agrotóxicos perigosos poluidores. No Sudeste situações equivalentes são marcadas por pressões desiguais por parte de empresas mineradoras, imobiliárias e agropecuárias. Que Conselho Consultivo se poderia ter em regiões assim, nas quais aviões despejam produtos agrotóxicos junto às divisas dos Parques Nacionais, e licenças de mineração são concedidas em áreas de mata atlântica, as quais, por definição, são legalmente protegidas?
Em situações assim, é preferível que a sociedade se organize, que as universidades se fortaleçam, que as organizações não-governamentais surjam e comecem a atuar, e que o ambiente político e de segurança pública se torne mais benigno, antes que os Conselhos sejam formados ou se tornem atuantes.
Em regiões em que a sociedade esteja estruturada fortemente, nada impede que os Conselhos Consultivos participem ativamente das decisões da conservação da biodiversidade nas unidades de conservação, como convém a uma sociedade madura e participativa, na qual os cidadãos conscientes tenham voz e ação.
As instituições responsáveis pelas unidades de conservação somente ganharão em repartir com a sociedade, pelos meios participativos já previstos na organização social e na legislação, o gerenciamento das unidades de conservação. As pessoas que participarem do processo poderão, assim, contribuir para o fortalecimento e a sanidade da natureza protegida.
Celso Lago-Paiva, paulista, pesquisador de Ecologia e Botânica, especialista em gerenciamento de invasão de ecossistemas naturais por plantas exóticas. Trabalha em Minas Gerais. celsodolago@hotmail.com.
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