ÁGUA NO BRASIL
Essa é a transcrição, na
íntegra, do item 5, da Terceira Parte do livro de Aldo Rebouças (“O Uso
Inteligente da Água” - Escrituras Editora - SP, 2004), que trata da Água no
Brasil. Nesse item, o leitor terá uma ideia precisa da localização, gestão,
quantidades e qualidades dos recursos hídricos do nosso país e, em especial,
das águas subterrâneas existentes na sua região Semiárida. Boa leitura. João
Suassuna.
O Brasil tem
uma área de 8.547.403,5 km² e uma população de 170 milhões de habitantes (IBGE,
2000). Ocupa 47,7% da área da América do Sul e é o quinto país do mundo, tanto
em extensão territorial quanto em população. Além disso, o Brasil é uma
república federativa, localizado entre as latitudes de 35° Norte e 34° Sul e
Longitudes de 35° e 74° Oeste, sendo cortado pelas linhas do Equador Terrestre
e do Trópico de Capricórnio.
Em termos
hidrológicos é um país-continente. Em termos pluviométricos, mais de 90% do
território brasileiro recebe chuvas entre 1.000 e mais de 3.000 mm/ano. Apenas nos
400.000 km² do contexto semiárido do Nordeste, onde as rochas de idade
pré-cambriana são praticamente subaflorantes e impermeáveis, as chuvas são mais
escassas (entre 400 e 800 mm/ano) e, relativamente, mais irregulares. Os rios
do Nordeste semiárido têm regime temporário, ou seja, secam praticamente
durante os períodos sem precipitações de águas atmosféricas nas respectivas
bacias hidrográficas.
Entretanto,
a interação do quadro pluviométrico mais abundante com as condições geológicas
dominantes engendra importantes excedentes hídricos que fluem pela superfície e
pelo subsolo, alimentando uma das mais extensas e densas redes hidrográficas
perenes do mundo, cuja descarga total média de longo período é de 182.633 m³/s
ou 5.753 km³/ano.
Em 1965,
teve lugar em Washington o 1° Simpósio Internacional sobre Dessalinização da
Água, quando os representantes dos países participantes, inclusive o Brasil,
verificaram que pouco se sabia sobre as águas dos respectivos territórios. Isso
representou o começo da cooperação internacional no setor de recursos hídricos
e foi iniciado o Decênio Hidrológico Internacional (1966-1975), sob a
coordenação da Organização das Nações Unidas para a Educação e Ciências -
UNESCO. Vale destacar que esse Decênio passou a se chamar Programa Hidrológico
Internacional - PHI, sempre com a participação do Brasil.
Em 1977, a
ONU realizou a 1° Conferência Internacional sobre a Água, em Mar del Plata
(Argentina), já buscando planejar maneiras mais eficientes de utilizar e
conservar as reservas de água do mundo, criando-se "O Decênio da Água
Potável".
A
distribuição, pela sua população, da quantidade de água que escoa pelos rios do
Brasil, representa uma oferta da ordem de 33.841 m³/ano per capita. Essa situação
coloca o Brasil na classe dos países ricos de água-doce das Nações Unidas. Além
disso, têm-se as éguas subterrâneas, cujo volume estocado até a profundidade de
1.000 m é estimado em 112.000 km³.
Os dados
fluviométricos disponíveis indicam que a contribuição dos fluxos subterrâneos
as descargas de base dos rios - valor seguro das taxas de recarga das éguas
subterrâneas que ocorrem no subsolo da bacia hidrográfica - varia entre 11
mm/ano nas bacias hidrográficas esculpidas nas rochas cristalinas subaflorantes
do Nordeste semiárido, de 100 a 200 mm/ano nos seus domínios sedimentares e
atinge mais de 600 mm/ano nas bacias sedimentares do Amazonas e Paraná, por
exemplo.
O valor
médio das recargas das águas subterrâneas, no Brasil, é estimado em 3.144
km³/ano. A extração de apenas 25% dessa taxa média de recarga já representaria
uma oferta de água-doce à população brasileira da ordem de 4.000 m³/ano per capita. Portanto,
mesmo no subsolo, o Brasil dispõe de muita égua, ainda que se considerando
1.000 m³/ano per capita
como a taxa abaixo da qual se caracteriza o estresse hídrico.
Essa
situação de abundância de água-doce no Brasil já era reportada por Pero Vaz de
Caminha ao rei de Portugal em 1500, na sua primeira carta sobre o
descobrimento. Ao tocar a zona úmida costeira do Nordeste semiárido assim declarava:
" em se plantando tudo dá, em função das águas que tem...".
MUITA
ÁGUA NOS RIOS: MÁ DISTRIBUIÇÃO E GRANDES DESPERDÍCIOS
Grandes
civilizações nasceram, floresceram e se desenvolveram onde havia muita água,
enquanto outras pereceram ou decaíram quando o suprimento de água deixou de ser
abundante. Muitas pessoas ainda se matam pela água lamacenta de um poço ou de
um rio, muitas ainda adoram os deuses da chuva, rezando para que a mandem por
ser ela a fonte da Vida.
Quando deixa
de chover por longos períodos, as plantações secam, a fome assola regiões muito
importantes e verifica-se, atualmente, racionamento de energia hidrelétrica.
Outras
vezes, as chuvas caem intensa e repentinamente, de tal forma que os rios
transbordam, cobrindo e afogando tudo e todos que se coloquem no caminho de
suas águas. Todavia, a ocorrência de secas ou chuvas onde não mora ninguém ou
não existe interesse econômico ou político não passa de um fenômeno
meteorológico.
Nossa
demanda de água cresce constantemente. À medida que cresce a população, as
fábricas e irrigações consomem sempre mais. Assim, uma coisa é certa:
precisa-se de quantidades cada vez maiores de água e a única fórmula que se
conhece, até agora, para se conseguir um equilíbrio entre oferta e demanda na
área considerada é transformar a ideia tradicional de que a solução é aumentar
sua oferta e passar a dar-lhe um uso cada vez mais eficiente.
Nas últimas
décadas, verifica-se a necessidade de evoluir do usufruto do capital - água em
abundância e demais recursos naturais, mão de obra barata, principalmente -
para cenários que visam a uma produtividade crescente. Em outros termos, a
palavra de ordem, atualmente, é produzir cada vez mais com o uso de cada vez
menos água.
Para fins de
gestão de recursos hídricos, o território brasileiro é dividido em 12 regiões
hidrográficas, conforme mostra a figura 8. Nessa divisão, deve-se atentar para
o fato de que se considerou as bacias dos rios temporários do Nordeste
Setentrional juntamente com as dos rios perenes do Nordeste Oriental.
Entretanto,
no Nordeste Setentrional, ou Sertão, o meio ecológico predominante é semiárido
e as bacias hidrográficas dos rios que drenam essa área foram esculpidas nas
rochas cristalinas praticamente impermeáveis e subaflorantes. Como decorrência,
a cobertura vegetal dominante é do tipo caatinga, ou seja, vegetação adaptada
aos longos períodos sem chuvas. Assim, os rios dessa área têm regime de fluxo
temporário.
Ao
contrário, a pluviometria nas bacias hidrográficas dos rios que drenam o
Nordeste Oriental e mais regular e abundante - entre 1.000 e 3.000 mm/ano. As
bacias hidrográficas foram esculpidas em rochas cristalinas cobertas por
espesso manto de rochas alteradas ou de sedimentos arenosos. Os rios que drenam
o Nordeste Oriental são perenes, ou seja, nunca secam, sobretudo nos seus
médios e baixos cursos, onde as densidades de população são maiores e a falta
de saneamento básico constitui um problema vexatório. Em consequência, a
esquistossomose predomina nessas áreas, como doença hídrica endêmica.
Portanto, os
problemas de abastecimento de água nessa área são muito mais de eficiência da
oferta e de usos. Logo, esses são muito diferentes daqueles engendrados pelas
secas periódicas que assolam o Nordeste semiárido. Basta lembrar que, regra
geral, as empresas estatais de abastecimento de água no Nordeste não coletam
sequer os esgotos que geram e apresentam índices de perdas totais - perdas
físicas em razão dos vazamentos de água nas redes de distribuição e perdas
financeiras, devido às ligações clandestinas e roubo de água - entre 40 e 70%,
isto é, da água que é captada, tratada e injetada nas redes de distribuição.
Além disso,
o Programa de Uso Racional da Água - PURA -, mostra que na Região Metropolitana
da Grande São Paulo (RMSP), por exemplo, os desperdícios atingem cerca de 70%
da vazão que chega na torneira do usuário. Considerando que se trata de cerca
de 63.000 litros por segundo em média, os quais são repartidos pela população
de 17 milhões de habitantes, resulta numa taxa per capita de 320 litros por dia.
Todavia, a vazão de projeto da rede de distribuição é de 250 litros por
habitante por dia. Dessa forma, a empresa de água está tratando mais do que a
população precisa. O problema não é, pois, de falta de água, mas de um uso mais
eficiente.
Quantos aos
desperdícios na agricultura, deve-se considerar que sobre cerca de 93% dos
quase três milhões de hectares irrigados no Brasil, ainda se utilizam os
métodos de irrigação menos eficientes do mundo, tais como o espalhamento
superficial (56%), aspersão convencional (18%) e pivô central (19%). Deve-se
considerar, ainda, que esses dois últimos métodos, além de serem pouco
eficientes em termos de consumo de água, são de uso intensivo de energia
elétrica, cuja produção no Brasil depende de água.
A descarga
média de longo período dos rios que drenam o território brasileiro é,
atualmente, de 182.633 m³/s, ou cerca de 34.000 m³/ano per capta. Entretanto,
levando-se em consideração a descarga média gerada na região hidrográfica do
Amazonas, situada em território estrangeiro, estimada em 89.000 m³/s, o
potencial total de água-doce que flui pelos rios do Brasil é da ordem de
272.000 m³/s (ANA, 2002).
A relação
entre as demandas - para consumo humano de 384 m³/s, irrigação de 1.344 m³/s,
consumo animal de 115 m³/s, industrial de 299 m³/s e média total de 2.141 m³/s
- e a descarga total média de longo período dos rios de 182.633 m³/s mostra que
a escassez de água ainda não ocorre no Brasil. A relação demandas versus potenciais é de
apenas 0,2 % na bacia do Amazonas, 0,6% na do Tocantins, 3,6% na do Parnaíba,
7,9% na do São Francisco, a mais elevada de 8,9% no Nordeste e de 1,2% apenas
no Brasil, por exemplo. Entretanto, essas demandas são crescentes, assim como
os desperdícios e a degradação da qualidade ambiental.
Desse modo,
o Brasil tem muita água, mesmo no Nordeste. Porém, o seu uso cada vez mais
eficiente desempenhará, certamente, um papel vital na saúde atual e futura da
nossa sociedade e na produção de alimentos, principalmente. O uso eficiente da
água nos rios do Brasil significa a possibilidade de suprir as necessidades
humanas básicas, sem destruir o meio ambiente, a qualidade da água, garantir o
crescimento econômico e social com proteção ambiental.
Verifica-se
que o Brasil tem água mais do que suficiente nos rios em qualquer das suas
regiões geográficas. Logo, nada justifica o Brasil permanecer na vala comum dos
países com escassez de água, para proporcionar o desenvolvimento essencial,
para melhorar os meios de vida da sua população, para sustentar o seu crescimento
e, eventualmente, estabilizá-lo em nível adequado.
Basta
considerar que, virtualmente, em todas as zonas áridas do mundo a umidade do
solo é inferior a 300 mm/ano, a vegetação é escassa e a produtividade de
biomassa é inferior a 3 t/hectare/ano. Entretanto, técnicas de irrigação tem
tornado possível uma maior produtividade, aliadas ao uso mais eficiente da água
e dos recursos naturais.
No outro
extremo tem-se a zona de clima equatorial, onde a umidade do solo atinge mais
de 1.500 mm/ano e os potenciais naturais de biomassa no Brasil são superiores a
40 t/hectare/ano Entretanto, o Brasil corre grande risco de perder a honrosa
posição de maior produtor mundial de alimentos (mais de 100 milhões/t) se não
der uma maior atenção aos seus recursos hídricos e aos seus solos, porque para
cada quilo de grão produzido nos Estados de São Paulo e Paraná, por exemplo,
estima-se que se perde 10 vezes mais solo por erosão (Telles, 2002). Por sua
vez, no meio temperado, tradicional produtor de alimentos, a umidade do solo é
de apenas 550 mm/ano e a produtividade de biomassa é de apenas de 10-12
t/hectare/ano (WRl, 1990).
Portanto,
mercados abertos e competitivos, dentro e entre os países, deverão fomentar a
inovação de tecnologias que engendram o uso eficiente cada vez maior da água,
além de proporcionarem oportunidades a todos para melhorar suas condições de
vida. No entanto, esses mercados devem dar os sinais corretos, os preços dos
bens e serviços devem ser os mais baixos possíveis, de tal forma que os custos
de sua produção, usos, reciclagem e disposição final dos resíduos líquidos e
sólidos atendam às perspectivas do desenvolvimento sustentado. Isso é
fundamental e mais fácil de alcançar mediante uma síntese dos instrumentos
econômicos destinados a corrigir as distorções e estimular a inovação, o
contínuo aprimoramento, com padrões reguladores para orientar o desempenho de
iniciativas voluntárias por parte do setor privado.
OS
TRÊS SETORES DO MUNDO ATUAL
Atualmente,
o mundo é visto como formado de três setores distintos, interdependentes e
indissociáveis: o governo ou o primeiro setor, as empresas ou o segundo setor e
a sociedade civil organizada, o terceiro setor. Nesse quadro, as empresas são,
certamente, a espinha dorsal que dá suporte ao corpo formado pelo governo e a
sociedade civil organizada. Assim, espera-se que as empresas e a sociedade
civil, que elegem os governos, tornem-se parceiros efetivos e definam as
necessidades de políticas públicas. Essas políticas regionais, estaduais ou
nacionais, deverão ser ajustadas às diferentes situações locais.
As novas
regulamentações e instrumentos econômicos devem estar harmonizados entre os
parceiros comerciais, ao mesmo tempo reconhecendo que os níveis e condições do
desenvolvimento variam de um lugar para outro, o que resulta em diferentes
necessidades e capacidades. O governo central deve fazer surgir as mudanças
gradualmente e por um período razoável de tempo, para possibilitar um
planejamento realista e ciclos de investimento.
Por sua vez,
as empresas deverão atuar segundo os princípios do desenvolvimento sustentável,
avançando, valorizando e encorajando os investimentos e poupanças a longo
prazo, orientados pela disponibilidade de água-doce e de informações adequadas.
As políticas
e práticas do comércio global devem ser abertas, oferecendo oportunidades a
todas as regiões hidrológicas. Essas práticas deverão levar ao uso e
conservação da água e dos recursos naturais, de tal forma que será mais
importante o uso cada vez mais eficiente da água do que continuar ostentando
sua abundância. Em outras palavras, será sempre mais efetivo embasar o
desenvolvimento sobre o rendimento ou a produtividade do capital água ou dos
recursos naturais, do que sobre sua abundância ou com a visão tradicional
extrativista.
Uma visão
clara de um futuro sustentável mobiliza as energias humanas na execução das
transformações necessárias, rompendo com os padrões estabelecidos de que a
única solução dos problemas de escassez da oferta d'água é o aumento da sua
oferta. À medida que os líderes de todos os segmentos da sociedade integrarem
forças para transformar a visão das empresas, a inércia será superada e a
cooperação tomará o lugar do confronto.
AS
ÁGUAS SUBTERRÂNEAS
Durante as
últimas décadas do século passado era crescente o número de exemplos positivos
da utilização racional do manancial subterrâneo, como a alternativa de solução
mais barata para abastecimento humano nos países mais desenvolvidos. Essa
situação decorre, fundamentalmente, do fato da água subterrânea ocorrer de
forma extensiva no meio e se achar, relativamente aos rios e açudes, protegida
dos agentes de poluição –tanto nas cidades quanto no meio rural.
Tendo em
vista que a captação da água subterrânea é feita, em geral, pelo próprio
usuário, a percepção da necessidade de um uso mais eficiente da água é mais
fácil do que extraí-la de um rio, com dinheiro público.
Efetivamente,
como as obras para utilização da água dos mananciais de superfície são
construídas com grandes investimentos públicos, a percepção da necessidade de
se fazer um uso cada vez mais eficiente da água disponível é quase sempre mais
difícil, principalmente, quando o seu uso mais importante é para irrigação.
Devido à
falta de controle - federal, estadual ou similares - na extração, recarga ou
monitoramento da água subterrânea, não se tem uma avaliação segura do número de
poços já perfurados, tanto no mundo, quanto no Brasil, A UNESCO estima que
cerca de 250 milhões de poços estão em operação no mundo e talvez 10% no
Brasil. Somente no Estado de São Paulo, a Associação Brasileira de Águas
Subterrâneas - ABAS, 2003 - estima que cerca de 15 mil poços sejam perfurados
por ano, atualmente.
As águas
subterrâneas no Brasil continuam sendo extraídas livremente por meio de poços
de qualidade técnica duvidosa, para abastecimento de hotéis de luxo, hospitais,
indústrias e condomínios privados. Dessa forma, tem-se, com grande frequência,
casos de contaminação das águas extraídas: por esgotos domésticos, vazamento de
combustíveis e de estoques de produtos químicos, percolação de líquidos vários
de depósitos de resíduos sólidos domésticos e industriais etc. Ainda é muito
comum o poço que recebe filtros em toda a extensão arenosa do seu perfil
geológico, sobretudo quando a camada aquífera fica acima do seu nível estático
(NE). Essa prática tem dois agravantes principais: (i) significa desperdício de
recursos financeiros, já que se coloca uma coluna de filtros na camada aquífera
freática, por exemplo - cujo custo pode ser o dobro do tubo de revestimento
simples e, possivelmente, fica sem produzir água - e (ii) a colação de filtro
na camada aquífera freática, que significa um aumento dos riscos de
contaminação cruzada das águas extraídas, mormente, quando os poços estão
localizados nas cidades, nos terrenos das próprias fábricas ou nos perímetros
irrigados. Por sua vez, ainda é frequente a colocação de bomba cujo setor de
sucção fica posicionado em frente ao intervalo de filtros, causando a produção
de areia, o que tem ensejado à construção de "desareiadores" junto
aos poços, numa prova eloquente de que não apresentam uma boa qualidade técnica
construtiva.
Também é
habitual a colocação de pré-filtros ou de cascalho em todo o espaço anular
entre o revestimento e a parede do furo do poço, até sua boca. Essa prática
enseja a penetração de poluentes superficiais nos poços, tais como: esgotos
sanitários, vazamento de postos de gasolina, de tanques superficiais ou
semienterrados de produtos químicos, principalmente, ocasionando a contaminação
cruzada da água que é produzida.
Outra
constatação normalmente observada e muito danosa consiste na instalação de
bombas não convenientemente dimensionadas nos poços. Quando os registros de
descarga dos poços trabalham estrangulados, significa que as bombas instaladas
estão superdimensionadas. Como resultado, têm-se grandes consumos de energia
elétrica para bombeamento, rápida incrustação ou entupimento dos filtros, queda
da eficiência hidráulica do poço e produção de areia. Além disso, a
refrigeração do motor e prejudicada, pelo fato de a água circular em alta
velocidade. Ao contrário, quando se coloca uma bomba subdimensionada no poço,
tem-se que sua vida útil também é sensivelmente reduzida, por que as baixas
velocidades de fluxo não proporcionam condições adequadas de resfriamento do
respectivo motor. O mesmo se observa em poços com bombas situadas abaixo de
seções de filtros, tendo em vista que a maior produção do referido poço poderá
ser proporcionada pelos aquíferos situados acima.
Em geral, é
da cultura do povo não fazer manutenção ou limpeza periódica dos poços.
Consequentemente, muitas vezes o nível da água se aprofunda, levando a
interpretação de que o poço secou. Nesses casos, usuários e perfuradores
concordam que a solução seria perfurar novo poço. Ledo engano: o que se
verifica com frequência é uma perda da capacidade de produção do referido poço,
uma vez que a nova perfuração chega a lograr maior produção que a anterior.
Considerando-se
as precárias condições naturais de estocagem de água subterrânea nos terrenos
cristalinos do Nordeste - manchas aluviais e zonas de rochas fraturadas -, os
rios que drenam as bacias hidrográficas esculpidas no seu contexto semiárido
têm regime de fluxo temporário, ou seja, secam, praticamente, durante os
períodos sem chuvas nas respectivas bacias hidrográficas. A ideia dominante no
Brasil é que a extração da água subterrânea não constitui uma alternativa
segura de abastecimento da população.
Entretanto,
deve-se levar em conta que o problema hidrológico verdadeiro do Nordeste
semiárido não é que chove pouco - entre 300 e 800 mm/ano -, mas que evapora
muito - entre 1.000 e mais de 3.000 mm/ano. Assim, não há condições de recarga
artificial de aquíferos na área, seja para proteger a água da evaporação
intensa que ocorre na região, seja da poluição que é engendrada pelo lançamento
dos esgotos domésticos não tratados nos rios secos e pela não coleta da maior
parte do lixo que se produz.
A empresa
que se instala numa bacia hidrográfica onde a sociedade civil é falida, cedo ou
tarde atingirá a falência, sobretudo, quando o governo ou o setor primário não
tem uma política pública que vise, prioritariamente, ao interesse da sociedade
civil organizada.
Já dissemos
mais de uma vez que os rios que drenam mais de 90% do território nacional são
perenes, ou seja, nunca secam, revelando uma grande abundância de água-doce no
seu território. Certamente essa condição muito contribui para que o Brasil
ostente a grande exuberância da sua cobertura vegetal e maior biodiversidade do
planeta, além da posição de grande produtor mundial de alimentos. Contudo, se o
Brasil não se empenhar em obter uma produtividade crescente com essa abundância
de capital - riqueza em recursos naturais, mão de obra, energia abundante e
barata - e continuar deslumbrado com a abundância de água que é dada pela visão
de rios perenes, muito em breve estaremos amargando a situação de país rico em
água-doce que não produz nem para comer.
O vexatório
quadro sanitário das nossas cidades já assinala a baixa eficiência do
fornecimento da água, por exemplo, onde os índices de perdas totais - vazamento
físico de água nas redes de distribuição e perdas de faturamento devido aos
roubos de água e tráfico de influência, principalmente - variam entre cerca de
40% e mais de 60%.
Com base nos
resultados dos poços produtores de água considerados mais consistentes,
elaborou-se o mapa apresentado na fig. 9, onde o território brasileiro foi
dividido em termos de potenciais de produção de água subterrânea, ou de vazão
especifica m³/h por metro de rebaixamento do nível de água no respectivo poço.
Esse cenário
mostra que a única região relativamente pobre de água subterrânea no Brasil é o
domínio de rochas cristalinas subaflorantes do semiárido do Nordeste. Nessa
área, a capacidade específica dos poços é inferior a um m³/h por metro de
rebaixamento de seu nível d'água.
A análise
estatística do Resíduo Seco (RS) ou dos Sólidos Totais Dissolvidos (STD) mostra
que 75% das amostras de água da zona semiárida do Nordeste provêm dos seus
terrenos sedimentares e são classificadas como água potável, salvo casos locais
e ocasionais de poços que são contaminados pela infiltração de águas rasas,
especialmente, nas zonas urbanas onde não se tem sequer coleta de esgotos
sanitários da maior parte do lixo que se produz, vazamento de tanques diversos
e a ocupação do solo é, regra geral, desordenada. Nas zonas fraturadas
aquíferas do embasamento geológico de idade pré-cambriana e praticamente
impermeável do Nordeste semiárido, somente 37% das amostras analisadas de água
apresentaram teores de sólidos totais dissolvidos (STD) inferiores ao limite de
potabilidade da região, que é de 2.000 mg/l (Rebouças, 1973).
Entretanto,
deve-se considerar a possibilidade, conforme mostra a experiência local e
internacional, de que a extração das águas estocadas nas planícies aluviais e
zonas de rochas fraturadas aquíferas subjacentes, durante o período de chuvas,
principalmente, induz uma maior dinâmica de renovação dessas águas. Decorre que
as águas subterrâneas salobras do cristalino do Nordeste semiárido tendem a
melhorar de qualidade à medida que são utilizadas e, dessa forma, podem
abastecer as populações ou dessedentar os animais. Porém, para tanto, torna-se
necessário proceder ao seu monitoramento.
De qualquer
forma, a extração de 1 m³/h por metro de rebaixamento num poço com potencial de
rebaixamento de nível de 10 metros, por exemplo, durante 16 horas por dia,
significa a oferta de um volume diário de 160 m³ de água ou 160.000 litros. Com
essa quantidade seria possível abastecer uma população entre 1.500 e 2.000
pessoas com uma taxa de consumo diário de 100 l/hab/dia.
Vale
ressaltar que a necessidade mínima de água para o consumo no semiárido do
Nordeste foi estimada pelo instituto Regional da Pequena Agropecuária
Apropriada - IRPAA, 2001. Dessa forma, verifica-se que o gado consome 53 litros
por dia; cavalo e jumento, 41; cabra, ovelha e porco, 6; galinha 0,2; criança,
homem e mulher, 14 litros por dia. Assim, a família mais o rebanho precisam em
oito meses de cerca da metade da capacidade de produção de um poço construído numa
zona de rochas fraturada aquífera praticamente impermeável do cristalino
pré-cambriano do Nordeste semiárido.
Além disso,
os estudos desenvolvidos pela EMBRAPA/CPATSA, 2000, em convênio com o Banco do
Nordeste, indicam que a salmoura produzida pelos dessalinizadores, porventura
instalados em poços com égua salgada no Nordeste semiárido, tem um grande
alcance econômico e social, porque pode ser aplicada na aquicultura e/ou na
irrigação de plantas halófitas forrageiras para caprinos e ovinos, principalmente.
No extenso
domínio de rochas cristalinas com espesso manto de alteração ou recobertas por
terrenos sedimentares diversos, a capacidade específica dos poços pode variar
de mais de um m³/h por metro até 5 m³/h.m, ou cerca de 3 m³/h.m em média.
Considerando-se que o regime de produção de cada poço compreenda 16 horas por
dia e que se verifique 30 metros de rebaixamento do nível da água, a oferta
seria de um milhão e quinhentos mil litros/dia de água, suficiente para
abastecer cerca de 15 mil pessoas, com uma taxa de consumo de 100 litros/dia per capita. Porém, à
medida que "quem tem um poço não tem nenhum", espera-se que o serviço
público de abastecimento de água tenha mais de um poço produtor. Assim, cerca
de 3.500 cidades do Brasil com população inferior a 20.000 habitantes poderiam
ser abastecida por dois ou mais poços.
Nos domínios
hidrogeológicos de borda das principais bacias sedimentares do Brasil, a
capacidade específica dos poços varia entre 5 e 10 m³/h.m, ou 7,5 m³/h.m, em
média. Considerando que os poços produtores nessa área funcionem cerca de 16
horas por dia e que o rebaixamento do nível de água seja de 40 metros, a oferta
por poço seria da ordem de 4,8 milhões de litros de égua por dia, ou o
suficiente para abastecer cerca de 30 mil pessoas por poço, com uma taxa de
consumo de 150 l/dia per
capita. Nessas áreas, as condições de abastecimento da população
das Cidades, principalmente, seriam viáveis para abastecer populações em torno
de 20.000 pessoas.
Finalmente,
têm-se os domínios hidrogeológicos mais promissores. Nesses domínios, a
capacidade especifica de cada poço pode atingir mais de 20 m³/h.m, porém, de
forma conservadora, considerou-se valor superior a 10 m³/h.m. Esses aquíferos
artesianos são confinados por camadas relativamente pouco permeáveis e
basálticas, inseridos nas bacias sedimentares do Amazonas (1,3 milhão km²); a
bacia do Maranhão-Piauí (700 mil km²) e do Paraná no Brasil (l milhão km²).
Nessas bacias sedimentares os sistemas aquíferos artesianos destacam-se pela
importância econômica e social. Nesse quadro, tem-se o aquífero Guarani que
representa a maior reserva de água-doce subterrânea do mundo (50.000 km³ e
cerca de 166 km³/ano de recarga), o qual compreende cerca de 839.800 km² no
Brasil, 225.300 krn² na Argentina, 71.700 km² no Paraguai e 58.400 km² no
Uruguai.
Considerando
que o regime de produção de cada poço compreenda um funcionamento de 16 horas
por dia e que se verifique uma queda do nível de água no respectivo poço de 50
m, a oferta seria de 8.000 m³/dia ou 8 milhões de litros de água por dia,
suficiente para abastecer cerca de 40.000 pessoas por poço, com uma taxa de
consumo de 200 litros/dia per
capita.
Assim, além
das águas que fluem pelos rios, a alternativa de abastecimento humano com água
subterrânea precisa ser considerada. Pelo fato da água subterrânea poder ser
captada no próprio lote do condomínio, da indústria ou no perímetro irrigado e
ter, em geral, qualidade adequada ao consumo humano, não tem os custos de
transporte ou de tratamento. Por sua vez, a sua extração desordenada atual
poderá produzir sérios impactos nas descargas de base dos rios, nos níveis
mínimos dos reservatórios, e recalques nos terrenos.
Até a última
década do século passado, os indicadores mais seguros de estabilidade e riqueza
de uma nação eram suas reservas de petróleo e dos recursos minerais não
renováveis. Atualmente, esses indicadores são questionados por estrategistas de
mercado, em relação à água, recurso natural renovável no mundo, mas não
inesgotável e de valor econômico em muitas partes da Terra.
A partir da
última década, principalmente, considera-se que a cobrança pelo direito de uso
da água é uma forma de se conseguir um uso cada vez mais eficiente. No Brasil,
em particular, embora se ostente a maior descarga de água-doce do mundo nos
seus rios, lutar pelo uso cada vez mais eficiente da gota d'água disponível é
lutar contra a pobreza, pela vida, pela saúde e pela comida para todos
(Rebouças, 2002C).
No Brasil, o
comprometimento da renda per capita com a conta d'água e esgoto já representa
cerca de 1%, considerando-se as tarifas e os níveis de atendimento atuais.
Supondo-se a extensão para toda a população brasileira do serviço de coleta e
tratamento de esgotos, e cobrando-se as tarifas atuais, a conta d'água e esgoto
chegaria a 2% da renda per
capta, Enquanto isso, nos países desenvolvidos, o comprometimento
da renda per capita
com a conta d'água e esgotos varia entre 0,3 e 0,8% do seu valor (SEDU/PR,
2002).
A
TRANSPOSIÇÃO DE BACIAS HIDROGRÁFICAS NO BRASIL
A
alternativa de transporte de água entre bacias hidrográficas diferentes, como a
realizada entre as bacias do Rio Piracicaba e Alto Tietê, para abastecimento da
cidade de São Paulo ou, no Nordeste, como o Rio São Francisco - Jaguaribe, ou
entre as bacias dos rios Tocantins e São Francisco, por exemplo, precisa ser
avaliada à luz do arcabouço - legal e institucional - vigente, em especial a
Lei Federal n° 9.433/97, que impõe viabilidade ambiental e social, dentre
outras, além do simples equacionamento hidrológico-técnico ou hidráulico.
Deve-se levar em conta, também, os novos conhecimentos hidrológicos
disponíveis.
Assim,
caberá aos comitês de bacia hidrográfica a decisão sobre o que se vai fazer com
a água disponível no respectivo setor geográfico. Dessa forma, tendo em vista
as grandes perdas de água por evaporação, no Nordeste semiárido, parece que a
alternativa mais viável seria transportar o excedente de energia hidrelétrica
gerada na bacia do Tocantins para a bacia do Rio São Francisco, e fazer um uso
múltiplo cada vez mais eficiente da água disponível na região, tal como para
abastecimento da população, saneamento básico, irrigação e produção
hidrelétrica.
A
experiência tem mostrado, por exemplo, que as perdas por evaporação de água no
reservatório de Sobradinho, no Rio São Francisco, são da ordem de 500 m³/s,
enquanto a vazão media do Rio Colorado, nos Estados Unidos, é de apenas 400
m³/s e base do uso múltiplo na Califórnia e Arizona, principalmente, há
aproximadamente 200 anos, pelo menos. Por sua vez, o método tradicional de espalhamento
superficial de água no Nordeste semiárido - 56% da área de perto e 3 milhões de
hectares irrigados no Brasil - é como derramar água no solo para evaporar
(Telles, 2002).
Portanto, no
Nordeste semiárido, a utilização desse método tem como decorrência uma
produtividade agrícola progressivamente mais baixa, porque a evaporação intensa
da água espalhada no solo forma a sua crescente salinização e consequente perda
de produtividade. Assim, em termos de eficiência da atividade, em USD por m³ de
água utilizado, a sua prática tem revelado ser, além de crime ambiental, uma
tolice econômica (PROCEAGRl, 2000).
No entanto,
a utilização do pivô central e da aspersão convencional, respectivamente 19% e
18% da área irrigada, de perto de 3 milhões de hectares no Brasil, tem se
revelado pouco recomendada, tanto em termos de eficiência econômica USD por m³
de água, quanto de uso intensivo de energia hidrelétrica para bombeamento,
recalque ou pressurização da água que é fornecida. Assim, sobre perto de 93%
dos quase 3 milhões de hectares irrigados no Brasil, utilizam-se os métodos
menos eficientes do mundo de uso da água (Telles, opr cit.).
A cobrança
da conta mensal referente ao consumo de energia elétrica pelas atividades de
irrigação em Iguatu, Ceará, por exemplo, serviu para mostrar ao usuário que,
mesmo quando a água pode ser bombeada livremente de poços, rios ou de açudes,
ela não é gratuita. A propósito, tanto no Nordeste quanto no Estado de São
Paulo, verificou-se que o mercado só remunera a produção das culturas irrigadas
quando a eficiência econômica da atividade é superior a 1,0 USD por m³ de água
fornecido. Isso significa produção de frutas e flores no Nordeste semiárido,
cuja eficiência econômica do cultivo pode atingir mais de 6,0 USD por m3 de
água utilizado (BN, 1999). Contudo, a irrigação tradicional de arroz, milho,
soja e feijão no Nordeste apresenta eficiências econômicas muito baixas, entre
0,01 e 0,20 USD por m3 de água utilizado, e consumos de água entre 8.000 e
21.000 m³/ano por hectare (BN, op. cit.). No Estado de São Paulo, a viabilidade
econômica fica restrita aos cultivos de café e frutas plantadas de forma mais
densa, isto é, menos espaçadas, e com consumo de água variando entre menos de
5.000 e 7.000 m³/ano por hectare, principalmente (Rebouças, 2002C).
Basta
lembrar que a Organização Mundial de Saúde - OMS - estima que cada USD
investido em saneamento básico, representa uma redução de 4 a 5 USD em despesas
com o tratamento das doenças de veiculação hídrica que afetam a maioria da
população do Terceiro Mundo, fundamentalmente. Não obstante, verifica-se que,
tanto os poderes da república e executivo, legislativo ou judiciário - quanto
os partidos políticos no Brasil, parecem não considerar esse aspecto como uma
prioridade e que sem água não se faz saneamento básico.
TRANSFORMAÇÃO
DEMOGRÁFICA E ÁGUA NO BRASIL
O mundo
experimentou uma inusitada transformação demográfica a partir da Revolução
Industrial, cujo início verificou-se na Grã-Bretanha durante o século XVIII e
começou a estender-se às outras partes da Europa e à América do Norte no início
do século XIX. No Brasil, essas transformações só aconteceram a partir de 1940
e, mais propriamente, na segunda metade do século XX (tabela 2).
A Revolução
Industrial gerou um grande aumento na produção de vários tipos de bens e
grandes mudanças na vida e no trabalho das pessoas, destacando-se o crescimento
desordenado da demanda localizada da água, grandes desperdícios e a degradação
da sua qualidade em níveis nunca imaginados nas cidades, indústria e agricultura.
Todos esses aspectos são, certamente, importantes fatores que engendraram a
"crise da água", que se anuncia como capaz de dar origem a guerras
entre nações, ainda neste século XXI.
O que
interessa em definitivo ao cliente ou usuário é que o fornecimento da água seja
regular e que o preço cobrado seja o justo. Em outras palavras, o que lhe
interessa é que o fornecimento seja feito sem racionamento ou operação rodízio,
sem grandes índices de perdas totais que, no Brasil, variam entre 40% e 60% da
água captada, tratada e injetada nas redes de distribuição. Que seja estimulada
a redução dos grandes desperdícios - tanto pela substituição de equipamentos
obsoletos, tais como bacias sanitárias que necessitam de 18-20 litros por
descarga, quando se tem no comércio tipos mais modernos que exigem apenas 6
litros de água, quanto pelo hábito de banhos muito longos, varrer calçadas,
pátios e carros com o jato da mangueira, por exemplo.
Entretanto,
chama a atenção a inércia política que faz com que, em nenhum momento, os
poderes constituídos da nação, bem como os partidos políticos, tenham
considerado como prioritários os problemas ocasionados pela falta de saneamento
básico nas cidades.
O fato é que
as estatísticas indicam que mais de 90% da população é servida pela rede de
distribuição de água. Porém, omite-se a precariedade dos serviços de saneamento
básico no Brasil - oferta irregular de água, falta de coleta e tratamento de
esgotos e de coleta e deposição adequada do lixo que se produz nas cidades.
Além disso, o vexatório saneamento básico nas cidades brasileiras é
significativo gerador das doenças que afetam, principalmente, a população mais
pobre e um dos mais fortes impedimentos ao desenvolvimento do País com justiça
social.
Como a
experiência nos países desenvolvidos tem mostrado que a parte mais sensível do
corpo humano e o bolso, uma das recomendações do Banco Mundial (BM) e da
Organização das Nações Unidas (ONU) para reduzir o desperdício e a degradação
da qualidade da água é considerá-la como um recurso natural de valor econômico,
ou seja, uma mercadoria com preço de mercado, como estabelece, aliás, o
terceiro princípio da Lei Federal brasileira n° 9.433/97.
Diferentemente
do petróleo, a água do Planeta Terra é um recurso natural renovável, mas que
precisa ser usado com eficiência cada vez maior, evitando-se a degradação da
sua qualidade. Em termos globais, não devera faltar água-doce no mundo(
Entretanto, a distribuição dessa água é muito irregular, é crescente o
desperdício e a degradação da sua qualidade atinge níveis alarmantes. Dessa
forma, muito embora não possa faltar água no mundo, poderá faltar água na sua
torneira, à medida que poderá faltar dinheiro para pagar a conta do
fornecimento da água limpa de beber.
O
PROBLEMA NO NORDESTE SEMIÁRIDO DO BRASIL
Ao se deixar
um copo d'água num aposento durante alguns dias, este poderá secar, à medida
que as moléculas de água situadas na superfície do líquido se liberem daquelas
mais abaixo e subam ã atmosfera na forma de vapor. Quando um líquido evapora de
uma superfície, esta se torna mais fria porque a sua transformação em vapor
consome calor. Dessa forma, um ventilador elétrico produz uma sensação de
esfriamento, porque a corrente de ar ocasiona uma rápida evaporação da água que
é engendrada pela nossa transpiração. O calor gasto na transpiração ou suor é
fornecido pelo nosso próprio corpo. Essa mesma regra é valida quando nos dias
quentes se borrifa água nas calçadas de uma rua, para se obter uma sensível
queda das temperaturas, já que a evaporação da água borrifada consome calor.
O ar pode
conter maior quantidade de vapor de água nos climas quentes do que nos frios.
Assim, a quantidade de vapor ou umidade pode ser muito alta nas regiões
tropicais, enquanto em clima mais frio decresce bastante. A 32°C pode haver o
dobro da quantidade de vapor de água na atmosfera do que a 21°C, por exemplo.
Assim, construir pequenos açudes no Nordeste semiárido do Brasil ou grandes
obras em locais inadequados, utilizar métodos de irrigação como espalhamento
superficial, aspersão convencional e pivô central, poderá significar espalhar
água para evaporar, enquanto esses métodos de irrigação são perfeitamente
eficientes noutras condições climáticas. Assim e que os baixos coeficientes de
utilização dos grandes açudes construídos no semiárido do Nordeste no Estado do
Ceará, ficando entre 1,6 e 39,4%, corroboram a assertiva de que pagamos,
efetivamente, à natureza um alto "preço" pela acumulação em açudes
mal dimensionados da água disponível no semiárido (Vieira, 2002).
Quanto aos
métodos de irrigação mais utilizados no Brasil - espalhamento superficial
(56%), pivô central (19%) e aspersão convencional (18%) e, são, certamente, os
mais fotogênicos, mas se inserem dentre os menos eficientes no mundo (Telles
2002) Todos esses aspectos precisam ser levados em consideração nos processos
de uso inteligente da água. No semiárido do Nordeste do Brasil, por exemplo, o
problema hidrológico não é que chove pouco - entre 400 e 800 mm/ano - mas que
evapora muito - entre 1.000 e mais de 3.000 mm/ano (Rebouças, 1973, 1997 &
Macedo, 1996).
As secas no
Nordeste semiárido do Brasil poderiam ser definidas como o processo que é
gerado pela ocorrência das chuvas em regime incompatível com as necessidades
das culturas de subsistência, tais como milho e feijão (Rebouças & Marinho,
1970, Rebouças, 1973, 1997). Durante os anos de seca, a ocorrência das chuvas é
particularmente irregular (Rebouças, 1997). Essa irregularidade é bem
dimensionada pelo coeficiente de variação - relação percentual entre o valor
médio da pluviometria e o seu desvio padrão - cujos valores nos anos de seca
situam-se entre 45% e 70%, enquanto no resto do Brasil o coeficiente de
variação das chuvas fica entre 15% e 20% todos os anos. Assim, se as chuvas
ocorressem de forma regular, não seriam suficientes para atender às altas taxas
de evaporação. Decorrente da irregularidade das chuvas na sua região semiárida,
principalmente, esta não é um deserto. Tem-se na região a "seca verde”, ou
seja, aquela em que as águas das chuvas intensas infiltram nos solos rasos da
região e dão suporte à explosão do verde da caatinga, embora não sejam
suficientes ou adequadas ao desenvolvimento das culturas de subsistência, tais
como o milho e o feijão.
Há anos em
que predomina o escoamento superficial do excedente hídrico criado pela grande
intensidade de ocorrência das chuvas, quando os rios, praticamente secos
durante a maior parte do ano, se transformam em caudalosos cursos de água que
enchem os açudes.
Durante os
últimos 150 anos, milhares de açudes rasos e dezenas de outros profundos foram
construídos pelo Governo Federal, pelos Governos estaduais, em cooperação ou
por particulares, no Nordeste semiárido do Brasil. Lamentavelmente, verifica-se
que muito investimento improdutivo e operacionalmente não sustentável foi
feito, seja porque os grandes e pequenos açudes mais servem para evaporar água
do que para regularizar a sua oferta, seja porque os grandes açudes, que
poderiam ser uma fonte confiável de água, não se integraram numa política
pública de uso racional da água, uma vez que os meios necessários nunca foram
sequer construídos - sistemas de adução, canais e adutoras, por exemplo - para
conduzir água para onde a maior parte da população da região vive e trabalha.
Assim, o açude de Orós, orgulho do Ceará, teve sua construção concluída em
1958, mas só recebeu uma tomada de água 20 anos depois.
Esse
problema está sendo parcialmente resolvido através da construção de adutoras,
pelo PROÁGUA, programa financiado pelo Banco Mundial. Uma dessas adutoras
deverá atender à cidade de São Raimundo Nonato, Piauí, que sempre sofreu
racionamento de água nos anos de seca, apesar de distar somente 43 km do açude
Petrônio Portela, cuja capacidade de armazenamento é de 181 milhões de m³, e
mais 10 localidades, beneficiando uma população de cerca de 60.000 pessoas.
Lamentavelmente, no caso da adutora Potiguar, verifica-se a preferência por uma
grande obra fotogênica para levar água do açude Armando Ribeiro Gonçalves de
Açu para abastecer a cidade de Mossoró, enquanto a solução mais barata de
abastecimento público é destinada a beneficiar o setor privado do cimento e da
agricultura irrigada.
Além dos
açudes públicos, em cooperação ou privados, cuja capacidade de estocagem é da
ordem de 30 bilhões de m³, outro tanto de água poderia ser ofertado pelos
milhares de poços inoperantes por razões diversas. Os poços foram perfurados ao
longo das últimas décadas, principalmente pelo Governo Federal, sem o devido
equacionamento institucional, isto é, sem que uma solução tenha sido sequer
cogitada para fazer a operação e manutenção do próprio poço, da bomba submersa,
do cata-vento ou compressor e, caso exista, do dessalinizador.
Os métodos
de irrigação tradicionais consomem muita água - arroz, 21.000 m³/ano por
hectare, milho 17.000 m³/ano por hectare e feijão 8.000 m³/ano por hectare -
enquanto para produzir uva o consumo de água é inferior a 5.000 m³/ano por
hectare, por exemplo. Por outro lado, a eficiência econômica da produção de
grãos é muito baixa - USD/m³ -, variando entre 0,01 para o arroz, 0,04 para o
milho e 0,20 para o feijão, enquanto a produção de frutas pode atingir USD/m³
de água ofertada de 6,10. Assim, o mercado da agricultura irrigada no Nordeste
semiárido verifica que o consumo de água inferior a 5.000 m³/ano por hectare é
ótimo, entre 5.000 e 7.000 m³/ano por hectare bom, entre 7.000 e 10.000 m³/ano
por hectare como valor limite e crítico, quando o consumo de água fica acima de
10.000 m³/ano por hectare (BN, 1999). Desse modo, o fato de a ANA considerar
para outorga taxas entre 1 e 2 l/s por hectare ou entre 31.500 e 63.000
m³/ano por hectare, parece que privilegia o desperdício ou não considera os
limites impostos pelo agronegócio de viabilidade econômica da agricultura
irrigada no Nordeste (BN, 1999).
Deve-se
atentar para o fato de que o reduzido grau de desenvolvimento do Nordeste tem a
ver, certamente, com a ocorrência de secas na sua região semiárida, mas não
tanto quanto se veicula costumeiramente ou faz crer o discurso oficial. Como o
Brasil ostenta uma pobreza endêmica no Nordeste semiárido, principalmente,
torna-se vulnerável à crise de água ou de outra qualquer. É evidente que, se os
habitantes do bairro dos Jardins, São Paulo, migrassem para Guariba, no Piauí,
a primeira providência seria estabelecer uma urbanização adequada, água
encanada, coleta de esgotos e de lixo, para qual não faltaria grupo econômico
interessado em investir, uma vez que a população poderia pagar. Assim, o
problema maior do Nordeste semiárido, cujo Índice de Exclusão Social é um dos
mais vexatórios (fig. 10), é a falta de condições para sua crescente população
superar os níveis de pobreza (Campos et al, 2003).
Basta
considerar que, se fosse a seca realmente a causa do atraso do Nordeste,
ter-se-ia um grande desenvolvimento a partir da sua Zona da Mata Litorânea, do
Agreste, dos Brejos de Altitude e do Piauí, cuja taxa de disponibilidade de
água nos seus rios é de perto de 9.000 m³/ano per capta, ou seja, a mesma de um
norte-americano, por exemplo. Nessas áreas não se têm maior falta de água do
que normalmente se tem no Brasil chuvoso ou no mundo em geral. A nosso ver, os
efeitos negativos, de natureza econômica e social, que são atribuídos às secas
periódicas que assolam a região, estão relacionados, mais propriamente, à
estrutura reguladora de mercado (Rebouças, 1997).
Assim, salvo
melhor juízo, na Grande Seca que assolou o Nordeste semiárido do Brasil no
período de 1876-79, a fome em massa foi uma tragédia política evitável, não um
desastre natural. Senão, como explicar o fato de que, no século em que a fome
em tempo de paz desapareceu para sempre da Europa Ocidental, esta tenha
aumentado de forma tão devastadora em grande parte do mundo colonial, e de modo
especial nas regiões assoladas pelas secas (Carvalho, 1988).
Do mesmo
modo, como pesar as presunçosas afirmações sobre os benefícios vitais das
estradas e dos modernos mercados de grãos, quando tantos milhões de pessoas,
sobretudo na Índia britânica, morreram ao lado dos trilhos das ferrovias ou nos
degraus dos depósitos de grãos, ao mesmo tempo em que a produção de grãos das
áreas assoladas pelas secas era vendida aos consumidores europeus, cujos preços
e formas de pagamento eram mais do interesse do mercado da época.
Quase sem
exceção, os historiadores modernos que escrevem sobre a história mundial do
século XIX, de um privilegiado ponto de vista europeu ou americano,
principalmente, têm ignorado as megassecas e fomes que assolaram o que agora
chamamos de Terceiro Mundo.
A UNESCO,
coordenadora do Decênio Hidrológico Internacional - 1965-1975, e a partir de
então Programa Hidrológico internacional (PHI), estima que, na pior das
hipóteses, sete bilhões de pessoas em 60 países estarão enfrentando falta de
água na metade deste século, Na melhor das hipóteses, serão dois bilhões de
pessoas em 48 países nessa situação. Isso vai depender do desenvolvimento de
políticas públicas de uso e conservação da água disponível e de uma drástica
mudança de mentalidades.
Os problemas
de atitude e comportamento - tanto dos governos, quanto das empresas e da
sociedade, em geral - são componentes essenciais da crise da água. Além disso,
a inércia dos dirigentes e o fato de a população mundial não ter consciência
total da dimensão do problema, indicam que se torna necessário tomar medidas
corretivas com urgência (UNESCO, 2003)
Dessa forma,
tanto o Banco Mundial quanto as Nações Unidas, consideram que o princípio da
cobrança pelo direito de uso da água, poderia ser uma medida indutora do seu
uso mais racional, de combate aos desperdícios e degradação da sua qualidade,
cujos níveis já alcançados nunca foram imaginados. Esses cenários vêm sendo
estudados desde a década de 1980 pelos estrategistas do mercado global, que
passaram a pressionar - por meio do FMI e Banco Mundial, principalmente - a
criação de mecanismos que possibilitassem a cobrança, nos termos do
usuário/pagador ou do poluidor/pagador, das águas dos rios, das nascentes, dos
poços, das águas de reciclagem ou de reúso das águas.
É evidente
que, nessa abordagem, as necessidades vitais de abastecimento do indivíduo
deverão ser, preliminarmente, consideradas. No plano nacional estabelece-se que
todo individuo terá direito a um consumo de 40 litros por dia per capita. Em termo
internacional, a tendência é considerar 50 litros por dia per capita. Entretanto, se
o indivíduo vai ter o benefício de uma rede coletora de esgotos, a experiência
mostra que não se pode pensar numa taxa de consumo diário interior a 100 litros
per capita
(Hespanhol, 2003).
De qualquer
forma, o conceito de água como dádiva inesgotável da natureza e um bem da
humanidade vem sendo modificado desde os anos 80. O bem comum passa, então, a
ser tratado como mercadoria para consumo, com preço de mercado. Isso vem
ocorrendo desde o momento em que os principais centros financeiros do mundo se
deram conta de que a importância de uma nação passaria pela utilização mais
eficiente da água, ou seja, como uma mercadoria.
O problema
de abastecimento de água no Brasil não é devido à falta de água, mas ao quadro
de pobreza endêmica que atinge a maior parte da sua população, a qual não pode
pagar pelo serviço de captação, transporte, tratamento e distribuição da água
limpa para beber. A mais importante arma contra a privatização dos serviços de
saneamento é a eficiência, tanto no mundo quanto no Brasil. Em outras palavras,
considerando que os investimentos públicos necessários foram realizados – tanto
para construção de obras de captação, adutoras de transporte, estações de
tratamento, quanto para implantação das redes de distribuição que atendem perto
de 90% da população – conseguir que a água chegue regularmente na torneira de
cada um e com qualidade garantida, são as metas que tanto atraem os grupos
financeiros nacionais ou internacionais. Na maioria dos países do mundo, onde
se trem a universalização da oferta de água – 90% da população são abastecidas
e o serviço de coleta de esgotos atende cerca de 80% - as perdas totais de
água, tais como vazamento físico das redes de distribuição e falta de
faturamento por causa do roubo de água, principalmente, atingem coeficientes
razoáveis de 5 a 15%. Por sua vez, pode-se beber a água que chega à torneira e
as empresas de saneamento – oferta d'água, coleta e tratamento de esgotos,
coleta e disposição adequada do lixo que se produz nas cidades, geralmente -
são públicas.
Anexos
(ÁGUA NO BRASIL.docx - 427.65 Kb)
por
João
Suassuna última modificação 19/02/2016 14:22