TRANSPOSIÇÃO DO RIO SÃO FRANCISCO É UM “ELEFANTE BRANCO”
CONSTRUÍDO A PARTIR DE UM ARGUMENTO FALACIOSO. ENTREVISTA ESPECIAL COM JOSÉ DO
PATROCÍNIO TOMAZ ALBUQUERQUE
Patrícia Fachin
Instituto
Humanitas Unisinos – IHU
28/05/2018
Apesar de o
projeto de transposição do Rio São Francisco ter sido justificado por “uma situação de exaustão dos recursos hídricos nas
bacias receptoras, os quais já não seriam mais suficientes para o atendimento
das demandas humanas, urbanas e rurais”, esse argumento foi uma “falácia”, diz
o geólogo José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque à IHU On-Line.
Na entrevista a
seguir, concedida por e-mail, Patrocínio explica
que os sistemas de abastecimento das cidades da região semiárida nordestina
“entram em colapso por uma ou pelo conjunto das razões seguintes: inexistência
de capacidade de regularização plurianual, 100% garantida, dos reservatórios utilizados
como fonte de abastecimento por sua baixa capacidade de acumulação (...); falta
de gerenciamento destes reservatórios, usando-os além de suas capacidades de regularização
100% garantida ou, ainda, obsolescência do sistema de abastecimento”. A razão
da crise de
abastecimento, insiste, “nunca” ocorreu “por falta de água nas
respectivas bacias hidrográficas locais”.
Segundo ele,
isso pode ser comprovado nas “respostas das Secretarias Estaduais de Recursos
Hídricos, respostas estas contidas no Ofício Nº 373/MI, datado
de 16/09/2005, do Ministério
da Integração Nacional dirigido à Agência Nacional de Águas - ANA,
no qual estas Secretarias informam as vazões 100% garantidas de reservatórios
localizados nas bacias receptoras que poderiam suprir as demandas estimadas
para o ano de 2025, com a segurança requerida, dos 12 milhões de habitantes
urbanos de cidades inseridas na região semiárida, inclusive Fortaleza/Ceará e Campina Grande, na Paraíba”.
Crítico à obra
de transposição do Rio São Francisco, Patrocínio avalia
que o melhor para a região seria investir em projetos de distribuição e
abastecimento a partir da adução
das águas do São Francisco. Essa proposta, diz, seria suficiente
para atender a demanda das grandes metrópoles nordestinas e alguns dos estados
da região Nordeste
Oriental.
Patrocínio frisa ainda que a revitalização do São Francisco e de sua bacia são necessárias, mas não serão
suficientes para garantir que o rio recupere sua antiga vazão média natural.
“Embora importantes e necessárias, estas medidas não são suficientes para
reverter a situação atual de disponibilidade hídrica do rio e de seus afluentes
e reservatórios superficiais. A razão é a mudança drástica do regime hidrológico de
seus cursos d’água e da vazão de suas fontes pela exploração incontrolada do
fluxo de base, alteradas de perenes para intermitentes e, mesmo, efêmeras”,
esclarece.
Após a conclusão
total da obra de transposição,
afirma, ela “poderá se transformar no que foi denominado de ‘elefante branco’, na medida em que, com a ocorrência de futuras secas,
tão prolongadas e agudas como foi esta última, pode acontecer o esvaziamento
total dos reservatórios fundamentais, já que a vazão de base não mais terá a
contribuição histórica, tornando-se insignificante ou nula”.
José do
Patrocínio | Foto: Arquivo Pessoal - Facebook
José do Patrocínio Tomaz
Albuquerque é graduado em Geologia
pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e mestre em Engenharia Civil
pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB. Tem experiência na área de
Geociências, com ênfase em Hidrogeologia. É professor aposentado da
Universidade Federal de Campina Grande – UFCG.
Confira a
entrevista.
IHU
On-Line - Qual seu diagnóstico sobre a transposição do Rio São Francisco?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Inicialmente,
foi vendida à população de todo o Brasil e,
não apenas do Nordeste,
uma situação de exaustão dos recursos hídricos nas bacias receptoras, os quais já não seriam mais
suficientes para o atendimento das demandas humanas, urbanas e rurais. Com base
em dados usados no próprio Projeto, elaborei um diagnóstico, ainda em junho de
2007 (portanto, quase 11 anos atrás) em que mostrava a falácia deste argumento,
como se pode ver no quadro a seguir, integrante daquele diagnóstico:
Obs.: *-
Demandas referidas ao ano 2003; **- Demandas referidas ao ano
2023; ***- A parcela do Potencial está acrescida das Reservas Exploráveis
do Sistema Aquífero Aluvial.
Esclareço que o
que se denomina de Potencial é
a vazão média de longo período, e Disponibilidades,
a vazão que se pode, com segurança (100% garantida, qualquer que seja o evento
hidrometeorológico posterior), dispor anualmente em reservatórios superficiais (maior
parte) e pela exploração, por poços, das águas armazenadas e em circulação nos
rios intermitentes de cada bacia.
Vulnerabilidade
do abastecimento urbano com os recursos hídricos locais.
Esta
vulnerabilidade existiria manifestada pelo colapso dos sistemas de abastecimento de
cidades inseridas na região semiárida nordestina.
É uma verdade parcial. Na realidade, os sistemas de abastecimento destas
cidades entram em colapso por uma ou pelo conjunto das razões seguintes:
inexistência de capacidade de regularização plurianual, 100% garantida,
dos reservatórios utilizados
como fonte de abastecimento por sua baixa capacidade de acumulação que, para
isso e, dependendo das demandas, devem ter capacidade de armazenamento de no
mínimo 20 milhões de metros cúbicos de água (há cidades supridas com açudes com
capacidade de acumulação máxima em torno de 3 milhões de metros cúbicos,
vulneráveis a secas de apenas um ano de duração); falta de gerenciamento destes reservatórios,
usando-os além de suas capacidades de regularização 100% garantida ou, ainda,
obsolescência do sistema de abastecimento. Nunca, porém, por falta de água nas
respectivas bacias
hidrográficas locais. É o que demonstram as respostas das Secretarias Estaduais de Recursos
Hídricos, respostas estas contidas no Ofício Nº 373/MI, datado
de 16/09/2005, do Ministério
da Integração Nacional dirigido à Agência Nacional de Águas - ANA,
no qual estas Secretarias informam as vazões 100% garantidas de reservatórios
localizados nas bacias receptoras que poderiam suprir as demandas estimadas
para o ano de 2025, com a segurança requerida, dos 12 milhões de habitantes
urbanos de cidades inseridas na região semiárida, inclusive Fortaleza/Ceará e Campina Grande, na Paraíba. O quadro abaixo
sintetiza as informações, contidas no referido Ofício.
Fonte: Estudos
de Inserção Regional, Relatório Geral, Tomo I, Março-2000 e Of.
373/2005-MI.
O Ceará é o
estado mais useiro e vezeiro em usar vazões de seus reservatórios superficiais
superiores àquelas 100% garantidas, conforme se pode verificar em seu
denominado Atlas de
Recursos Hídricos. Usam descargas com 90% de garantia e o que
eles chamam de volumes de alerta que ocorrem, exatamente, nos períodos de secas plurianuais,
quando os açudes atingem seus volumes mínimos ou, mesmo, entram em estado de
exaustão total, o que ocorreu na recente seca, até com o maior deles, o Castanhão. O quadro a
seguir mostra isso:
O uso,
evidentemente, não é só o abastecimento
humano, mas também, principalmente, a irrigação de seus
perímetros.
Fica evidente o
porquê de o Ceará ser
o principal protagonista e defensor do projeto da transposição que, de início, somente previa a construção
do Eixo Norte.
Foi preciso outro ministro, não por acaso, um paraibano, assumir a pasta da
Integração para que se acrescentasse o Eixo
Leste, que beneficiaria, justamente, a região menos pluviosa
do Nordeste,
a chamada Região dos
Cariris Velhos da Paraíba, onde ficam os Alto e Médio Cursos
do Rio Paraíba e
o açude denominado Epitácio
Pessoa, popularmente conhecido como Boqueirão, que abastece
a maior cidade do interior nordestino e mais 18 outras pequenas urbes no seu
entorno. Mesmo nos Alto e Médio Cursos do Rio Paraíba, conforme se pode ver no
primeiro quadro acima exposto, o confronto disponibilidades versus demandas
mostrava um saldo positivo que exigiria, para isso, uma gestão correta destas
bacias hidrográficas, com a operação conjunta de açudes existentes, reforçada
pelo reservatório
Acauã, então concluído, com o objetivo de suplementar o
Abastecimento de Campina
Grande. Seriam as disponibilidades aumentadas em 1,9 m3/s,
juntamente com os regularizados e 100% garantidos por Boqueirão, usando, por
questão de segurança, a menor vazão de regularização das avaliadas em diversos
estudos, conforme consta do quadro a seguir:
Perfazia exatos
3,12 m3/s superior à demanda de Campina
Grande e das 18 cidades vizinhas, da ordem de 1,5 m3/s,
ficando o resto para abastecer mais 11 cidades localizadas no Médio Paraíba,
comprometendo, no total, 0,95 m3/s da vazão firme garantida por Acauã. Mas nada disso
foi colocado em prática, exatamente porque todos os governos voltaram suas
vistas para o projeto da transposição. Em consequência, continuaram a prática
deletéria de uso excessivo das águas em irrigação, em razão de ser implantada
em período, com métodos e cultivos exóticos, estranhos às condições hidrometeorológicas da
região, do que resulta a exacerbação do consumo de seus recursos hídricos, inviabilizando os demais usos, mormente quando da
ocorrência de secas.
IHU
On-Line - Do ponto de vista dos recursos hídricos, por que o projeto da
transposição não seria viável?
José do Patrocínio
Tomaz Albuquerque - Bem, espero que esteja
se referindo à parte doadora, ou seja, à bacia do São Francisco e seus reservatórios fundamentais, Três Marias e Sobradinho, que controlam a oferta de todos os demais. Na época, já
havia, no trecho entre o alto e o médio São Francisco, justamente onde se situam os
citados reservatórios fundamentais, conflitos de uso de suas vazões
regularizadas com 100% de garantia. Embora a geração de energia não seja um uso
consuntivo, ele restringe o seu uso, na medida em que a vazão no trecho é usada
para gerar energia
hidrelétrica. Foi esta a causa do apagão que o Complexo da
CHESF [Companhia Hidrelétrica do São Francisco] sofreu nos idos de 2001, já que
usavam, para geração de energia, a vazão com 95% de garantia (2060 m3/s, em vez
dos 2044, calculados com base na série hidrológica 1931-1960 (“Que venha a
Seca”, Freitas, M. A. de Sousa, Rio de Janeiro, 2010). Não havia saldo para os
demais consumos, humanos, do gado e irrigação que já existiam e foram
aumentando com o tempo. Além disso, segundo o mesmo autor acima citado, nesta
vazão de 2060 m3/s havia a contribuição da defluência de Três Marias que
era, à época, 513 m3/s. Hoje praticam muito menos pelas mesmas e óbvias razões
de uso acima da vazão de
regularização destes reservatórios.
Mas a razão
maior desta redução
de vazão nos dias atuais, escancaradas com seca de seis
anos (2012-2017) recém-finda, não foi somente a dos fatores citados. Isto eu abordei
como debatedor do tema “Segurança
Hídrica para o Abastecimento Humano no Nordeste”, por ocasião
da realização do XII
Simpósio de Recursos hídricos do Nordeste, sediado em Natal/RN,
em nov./2014. A minha palestra teve o título “Segurança Hídrica para o Abastecimento Humano no Nordeste e
Água Subterrânea”. Além das considerações sobre a composição da vazão de um rio perene,
ilustradas com figuras, apresentei o caso de Sobradinho como
forma de comprovar as minhas considerações. Resumo o que disse sobre as vazões,
afluente média e mínima dos mínimos registrada no trabalho “Alocação de Água baseada nas Ofertas e
Demanda Hídricas” (Freitas, M. A. de Sousa & Gondim Filho, J.
G. C., in: Anais do VII Simpósio de Recursos Hídricos do Nordeste, 2004, São Luís/MA).
Para isso, estes autores usaram uma série hidrológica de dados muito maior, a
de vazões medidas no período 1931-2001.
Entretanto, eles
nada abordaram sobre a composição destas vazões, o que fiz na minha palestra.
A vazão média de
um rio de regime hidrológico
perene é composta de duas parcelas: o escoamento
superficial direto, viabilizado, imediatamente, com as chuvas caídas na bacia
hidrográfica; e o escoamento denominado de base, que provém do processo da
recarga, escoamento e descarga de água subterrânea que compõem um sistema de
aquífero. Esta segunda parcela constitui a vazão mínima de um rio perene,
responsável, mesmo na estação de estiagem, prolongada (secas) ou não por esse
regime hidrológico. No caso do rio
São Francisco, na bacia controlada por Sobradinho, dois são os
sistemas aquíferos que suprem a vazão de base ou vazões mínimas: o Sistema São Francisco contido
na bacia sedimentar homônima, situada a montante do mesmo, com seus aquíferos, dos quais o Urucuia,
o Areado e
o Bambuí são
os principais e o Sistema
Aluvial, armazenado e em circulação nos aluviões do rio e de
seus afluentes. A figura a seguir mostra isso, embora, por problemas de escala,
não seja possível mapear o Sistema Aluvial.
IHU
On-Line - Qual é a situação das bacias hidrográficas nordestinas e dos
aquíferos em torno do São Francisco?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Na bacia hidrográfica do São Francisco,
alimentando-a, existem cinco sistemas. O principal deles e o maior do Nordeste, por mais
armazenar água, produzir escoamento, é o sistema
São Francisco, contido na bacia sedimentar homônima, de idade
Fanerozoica, tendo como principais aquíferos as Formações Urucuia e Areado e
o Grupo de Formações
denominado Bambuí. Os demais sistemas são, na direção da
jusante do Rio, o Araripe,
representado pelos aquíferos
Exu e Tacaratu (pouco produtivos porque fracionados em sua
extensão, situados nos afluentes que nascem nos limites com o Estado do Ceará);
o sistema
Recôncavo-Tucano-Jatobá,representado pelos aquíferos Marizal, SãoSebastião e Inajá,sendoasfrações Tucano e Jatobá as que
afloram na bacia sanfranciscana; o Sistema Alagoas-Sergipe, ocorrente na foz do
rio e adentrando o Oceano
Atlântico; e, finalmente, o sistema Aluvial, ocorrendo em
manchas descontínuas e de litologias variadas de depósitos aluviais que
atapetam os vales do rio e de seus afluentes, sendo mais significativa a sua
ocorrência dentro dos cursos do Alto
e Médio São Francisco. Todos estes sistemas são embasados por
rochas do Cristalino,
regionalmente impermeáveis.
Fonte: Programa
de Ações Estratégicas para o Gerenciamento Integrado da Bacia do Rio São
Francisco e da sua Zona Costeira, Relatório Final, ANA/GEF/PNUMA/OEA, Brasília,
2004.
Toda esta água
subterrânea contribuía, em termos de vazão média anual, com 47,34% da vazão
total do rio que aflui à barragem Sobradinho.
A figura a seguir comprova esta afirmação. Nesta série de dados, verifica-se
que a vazão média anual é de 2706 m3/s e a média anual dos mínimos escoamentos
mensais verificados é de 1281 m3/s, com um mínimo dos mínimos registrado em
outubro/1999. Duas outras observações: as menores vazões mínimas ocorreram na
última década, sempre quando a vazão média do ano respectivo foi inferior à
descarga de 2706 m3/s, o que indica uma influência da seca na redução do
escoamento de base, mas sem nunca atingir os valores mínimos dos mínimos que
ocorreram nos meses posteriores a 2001, na estação de estiagem.
Outra observação
que deve ser feita é que a vazão média anual da série 1931-1960 foi reduzida.
Era de 2850 m3/s, tendo havido um decréscimo de 144 m3/s, provavelmente devido
à crescente exploração da vazão de base, induzida para poços tubulares
profundos que são perfurados de forma descontrolada e sem outorga de uso pelo
órgão competente, a ANA.
Os dados que se transcreve aqui sobre uso de água subterrânea, objeto de
outorgas por poços, estão contidos no seguinte trabalho: Usos Múltiplos
na Bacia Hidrográfica do Rio São
Francisco, Políticas e Prioridades, de
autoria do engenheiro hídrico Pedro
Antônio Molinas, para o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco - CBHSF –
AGB Peixe Vivo, em junho/2013. O quadro a seguir mostra, entre
outras outorgas, a de água
subterrânea.
Ela, como se
pode ver, é de apenas 22 m3/s. Longe da realidade praticada, como se verá
adiante.
Já no trabalho
seguinte, denominado “Concepção
de uma Estratégia Robusta para a Gestão dos usos Múltiplos das Águas na Bacia Hidrográfica
do Rio São Francisco – Cenários”, realizado pelo Dr. Rodolpho H. Ramina, em
dezembro de 2014, para o mesmo CBHSF - AGB Peixe Vivo, no capítulo 4.2 –
Expansão da Agroindústria nas Bacias hidrográficas Afluentes, está escrito o
seguinte: “Atualmente estão em elaboração os Planos de Recursos Hídricos das Bacias
dos rios Grande e Corrente, situados no cerrado baiano e
principalmente sobre o aquífero
Urucuia. Segundo os estudos destes Planos, ainda com resultados
preliminares, o total de demanda outorgado para o setor da agricultura,
pecuária, misto e agroindústria somam 201.108 L/s em 2013”. Os rios Grande e Corrente são
apenas dois dos mais de 10 afluentes que são (ou eram) perenes, antes da
exploração destes aquíferos para irrigação. Isto já mostra um conflito de uso
dos recursos hídricos que afluem a Sobradinho,
com maior participação, como não poderia deixar de ser, da agroindústria.
Posteriormente,
o mesmo Rodolpho
Ramina fez nova incursão de estudos sobre o Cerrado,
compreendendo as áreas limítrofes aos Estados de Minas Gerais, Goiás, Bahia e Tocantins, onde a
irrigação é extensiva e intensivamente praticada. A fotografia aérea, mostrada
a seguir, dá uma ideia da magnitude da área irrigada citada. Ela foi tirada
pelo engenheiro Dr. Rodolpho
Ramina, no final do ano de 2014, postada por ele no site de
debates da ABRH – Gestão, juntamente com
um relato sobre a sua incursão sobre o assunto, do qual destaco o seguinte comentário:
“Lá em cima dos chapadões, pivôs
de irrigação. Medimos. Com um diâmetro em torno de 1.250 m,
eles chegam a ter 125 hectares cada. Há centenas deles. Talvez mais de mil. As
imagens de satélite de 2012 mostram uns 320 mil hectares com eles em todo o
oeste baiano”.
Isto significa
um consumo de, pelo menos, uns 300 m3/s na irrigação. Como há outros poços destinados
a outros tipos de usos, pode-se conjecturar uma vazão ainda maior retirada
do Sistema Aquífero
São Francisco. Os reflexos disto se traduzem não somente nas
vazões afluentes e defluentes de Sobradinho, como na mudança do regime dos rios
da margem esquerda do São
Francisco. É o caso do rio Verde Grande, antes perene e, hoje,
efêmero, conforme se pode comprovar na figura a seguir:
Esta observação
de que, até o ano de 2003, o Verde
Grande não havia ficado completamente seco é a prova
definitiva de que outros eventos de estiagem prolongada não haviam alterado o
regime do rio, mesmo quando da ocorrência da menor vazão média anual registrada
em 1999 na bacia do
rio São Francisco, controlada por Sobradinho. E a grande e
inusitada seca somente viria a ocorrer nove anos depois, a partir de novembro
de 2012. Com a exploração desenfreada do Sistema Aquífero São Francisco, já no mês
de outubro de 2015, último do período chuvoso da bacia hidrográfica
sanfranciscana, a defluência de Três
Marias iguala a afluência de Sobradinho, do que se pode
inferir que o fluxo de base já estava zerado em 16/10/15 e que a defluência de
Sobradinho é toda ela suprida pelo volume útil, ainda acumulado em seu
reservatório (cerca de 2,25 bilhões de m3), conforme estimado da figura a
seguir, postada pelo ONS [Operador
Nacional do Sistema Elétrico].
Esta previsão de
nível zero nos dois reservatórios considerados no quadro acima, não se
concretizou porque reduziram as defluências, progressivamente, até atingir os
níveis de descarga para os 665 m3/s e 158 m3/s atuais, praticados em Sobradinho e Três Marias,
respectivamente, conforme dados do Boletim
da Sala de Situação do dia 23/05/2018, apresentado a
seguir:
Esta situação
também se deveu à liberação
de vazões superiores à de regularização e, mesmo, à vazão
mínima que deveria ser praticada quando da ocorrência de secas. A figura a
seguir evidencia esta operação esdrúxula no reservatório Sobradinho,
inclusive já no primeiro ano seco de 2012, estendendo-se até o mês de
maio/2014.
Esta água fez
falta nos anos seguintes, chegando a reduzir o volume útil de Sobradinhoa um
percentual mínimo de 1%. E não secou porque reduziram, antes e drasticamente, a
vazão defluente para abaixo do mínimo avaliado (1300 m3/s, representado pela
reta verde na figura acima). A figura a seguir mostra a situação ocorrida e
verificada em novembro de 2016 e quase repetida em novembro de 2017.
Os efeitos adversos
desta operação colocada em prática pela ANA, se evitam o pior (esvaziamento dos
reservatórios fundamentais e, consequentemente, de todas as demandas,
consuntivas ou não), resultam em situações indesejáveis a estas demandas e,
também, ao meio ambiente, na medida em que inviabilizam navegação, causam a
interiorização da interface água doce dos rios e aquíferos/água salgada da
costa marinha, prejudicando o abastecimento humano, das comunidades
ribeirinhas, rurais e urbanas, inclusive a da capital sergipana, Aracaju, já que estas
águas se tornaram impotáveis para o consumo humano, entre outros efeitos
deletérios às vidas
animal e vegetalsupridas pelo Rio São Francisco e
seus afluentes.
IHU
On-Line - Por que o semiárido não tem água subterrânea para grandes consumos? E
qual é a importância da água subterrânea no contexto da bacia hidrográfica do
Rio São Francisco?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Esta
região é pobre em águas
subterrâneas por duas razões complementares. A primeira é
que, regionalmente, ela é, predominantemente, constituída por rochas ígneas e
metamórficas (o chamado Cristalino)
que são, por suas origens, impermeáveis, não havendo condições de porosidade
eficaz e permeabilidade, indicadores de armazenamento e circulação de água subterrânea em seu interior, em quantidades significativas.
Quem tem estas propriedades são as rochas sedimentares detríticas de
granulometria compatível (as argilas são porosas, mas não são permeáveis) à
constituição de aquíferos. Localmente, o Cristalino pode se apresentar com
fraturas, desde que sejam formados por ação de forças tectônicas distensivas,
que permitem uma acumulação modesta das águas nele infiltradas que são poucas,
já que estes fraturamentos são dimensionalmente pequenos e descontínuos,
dificultando a sua recarga que somente é feita nos períodos chuvosos, através
de trechos da rede
hidrográfica neles encaixados.
A segunda razão
é de natureza meteorológica: as precipitações pluviométricas são irregulares,
de módulos pequenos, do que resultam os fenômenos das secas e a ocorrência dos
chamados “veranicos”, eventos que limitam o escoamento da rede hidrográfica,
tiram a umidade do solo e minimizam ou anulam a infiltração efetiva, aquela que
deveria alimentar o que eu denomino de “zona
aquífera cristalina!”. Os poços nela perfurados, salvo raras
exceções, têm vazão baixa e não suportam bombeamentos constantes e por longo
período de tempo. Já as rochas sedimentares embasam as bacias hidrográficas
situadas, em sua maioria, na região costeira do Nordeste, cujos rios são
perenes devido à aludida contribuição da vazão de base proveniente de seus
respectivos sistemas
aquíferos.
Sistemas
aquíferos
Mesmo os maiores sistemas aquíferos, aqui e em todo
o Planeta Terra, têm que ter uma exploração limitada pelas
demandas ambientais de seus ecossistemas vegetais e animais, que são associados
e não isolados e dependentes apenas das águas da estação chuvosa - José
Albuquerque
Mesmo os
maiores sistemas
aquíferos, aqui e em todo o Planeta Terra, têm que
ter uma exploração
limitada pelas demandas ambientais de seus ecossistemas
vegetais e animais, que são associados e não isolados e dependentes apenas das
águas da estação
chuvosa. É a água
subterrânea que assegura a continuidade da vida destes
ecossistemas no período entre eventos de chuvas. A Natureza usa de fenômenos
como o xerofitismo nos climas
semiáridos e áridos e a hibernação nos climas temperados para
manter estes ecossistemas, inclusive a vida humana. Transcrevo aqui, trechos de
um trabalho, com sua ilustração, sobre a superexploração de água subterrânea em
várias partes do mundo resultante de uma nova pesquisa desenvolvida pelaUniversidade de Utrecht,
na Holanda,
e a Escola de Minas
do Colorado, nos EUA,
e apresentada durante a Reunião
de Cúpula da União Geofísica Americana de 2016: “Maiores fontes de água doce acessível em
todo o mundo, os recursos hídricos subterrâneos são de importância crítica para
a irrigação e segurança alimentar global. Nas próximas três décadas, porém, a
superexploração para atender a indústria e a agricultura poderá levar à
exaustão esses recursos em partes da Índia, do sul da Europa e nos Estados Unidos.
E quando isso acontecer, cerca de 1,8 bilhão de pessoas no mundo poderão viver
em áreas onde os níveis de água subterrâneos estarão totalmente esgotados ou
próximos disso”.
As reservas
de água subterrânea são permanentes ou não? A sua exploração causa
algum tipo de implicação em outros recursos hídricos? Em hidrogeologia, a vazão
de base é um dos componentes da denominada Reserva Renovável de Sistemas Aquíferos,
que fica logo acima das chamadas Reservas permanentes as quais,
inadvertidamente, alguns autores acham que também devem ser objeto de
bombeamento. O outro componente é o escoamento sub-superficial que sai no
Oceano, se o Sistema tem ligação com o estuário marinho. Não é este o caso dos
sistemas controlados por Sobradinho,
totalmente interiorano. Mas, pelo que se pode inferir do texto até aqui
escrito, as reservas de água
subterrâneas não são, em sua totalidade, permanentes. Existem,
como vimos, uma parte anualmente renovável pelo ciclo hidrológico natural das
águas, relacionadas com a precipitação e sua repartição com os demais
componentes do ciclo, do que se destacam as trocas entre os escoamentos
superficiais e subterrâneos. A figura a seguir esclarece como se processam
estas relações.
Fonte: Água
Subterrânea no Planeta Água (Albuquerque, J. do P. T. in Estudos Geológicos,
volume 17 (1), p. 23 a 39, DG/CTG/UFPE, Recife/PE, 2007).
A parcela dita
permanente é a que, no Subsistema
Livre, ocorre abaixo do talvegue dos cursos d’água superficiais.
Ao atingi-la, os rios perdem a sua vazão de base e, na parte costeira, provoca
a interiorização da cunha salina das águas marinhas. No caso do Subsistema sob
pressão (semiconfinado), a reserva é aquela que se estende para além do limite
superior do aquífero que o representa e que tem como limite superior a linha
piezométrica situada abaixo da linha hidrostática regional (resultante da troca
entre os dois subsistemas). Esta pressão é exercida pelo peso do contexto
sólido/água sobrejacente ao aquífero que
reage por suas propriedades elástico-compressivas, permitindo o acúmulo de mais
água, além daquela que armazena em função de sua porosidade eficaz. A pressão
do peso do pacote sobrejacente (pressão efetiva) é anulada pela pressão da água
(pressão neutra), exercida no domínio do espaço poroso. Ao ser retirada água
por poços perfurados neste aquífero, a pressão neutra é anulada totalmente,
provocando o fenômeno da subsidência dos terrenos superficiais (solos),
causando danos às edificações civis neles construídas. Portanto, nem a parcela
renovável, nem a sob pressão podem ser exploradas totalmente, não existindo,
consequentemente, reservas de águas
subterrâneas permanentes. Se estas forem assim exploradas, elas
entrarão em estágio definitivo de exaustão.
Conclui-se, de
tudo o que foi exposto até aqui, respondendo à sua pergunta sobre diagnóstico da transposição, em que abordei os problemas de oferta e de demanda
hídricas das bacias
hidrográficas receptoras e doadora, que a transposição do
mínimo de vazão projetada, os 26,4 m3/s, não teriam um impacto tão negativo se
a bacia do Rio São
Francisco, com seus reservatórios fundamentais e os sistemas
aquíferos por eles controlados, estivessem sendo corretamente geridos e
operados, embora essa transferência não fosse, absolutamente, necessária.
IHU
On-Line - Recentemente um relatório da Controladoria Geral da União – CGU
concluiu que a transposição do Rio São Francisco apresenta problemas de
planejamento capazes de impedir a operação, manutenção e sustentabilidade da transposição.
Esse diagnóstico já era previsto? Se sim, como se explica, na sua avaliação, o
fato de a obra ter ido adiante até sua conclusão?
A única explicação plausível [para a transposição] é que
o interesse político-eleitoreiro prevaleceu sobre os estudos técnicos
que deveriam ter sido aprofundados pelos que planejaram e executaram o Projeto
- José Albuquerque
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - A única
explicação plausível, embora muitos destes problemas tenham sido abordados
superficialmente nos estudos contidos no relatório do EIA/RIMA, é que
o interesse político-eleitoreiro prevaleceu sobre os estudos técnicos que deveriam
ter sido aprofundados pelos que planejaram e executaram o Projeto.
IHU
On-Line - Do ponto de vista técnico, quais são os problemas com a transposição
do Rio São Francisco?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Aqui vou
me referir ao problema de dimensionamento dos canais que conduzem as águas dos
pontos de captação dos Eixos
Norte e Leste e à opção por este tipo de obra. Em termos
dimensionais, os dois eixos foram planejados e construídos para transportarem
suas vazões máximas, respectivamente, 99 m3/s e 28 m3/s, perfazendo uma
retirada total de 127 m3/s da vazão defluente, o que seria possível
quando Sobradinho sangrasse
ou atingisse o seu “volume de espera”, o qual deveria ser esvaziado para evitar
problemas como, por exemplo, o decorrente da ocorrência de cheias catastróficas
a jusante do mesmo. Como eventos desses tipos têm um tempo de retorno ou
ocorrência grande (e ficou muito maior devido às secas, cada vez mais severas,
influenciadas pelo aquecimento global, e pela exploração descontrolada
dos sistemas
aquíferos, conforme aqui exposto), esse foi um erro crasso do
projeto, na medida em que não obedeceram ao que mandam os compêndios de
planejamento de canais. Eles são planejados para conduzir uma vazão constante e
não variável no tempo. Para isso, são dimensionados em função do que se
denomina de “perímetro molhado do canal”, que com suas águas deve saturar algo
da ordem de 75% do volume conduzido pelo mesmo.
Ora, planejado
para conduzir o máximo, como foi construído, e não preenchendo o espaço vazio
do perímetro molhado, o que está acontecendo é que as abas e fundo dos canais
ficam muito mais sujeitos a fraturamentos resultantes da contração e da
dilatação térmicas, que ocorrem durante as horas, estações, dias e anos frios e
quentes por onde os canais passam. Além de sofrerem outras intempéries,
inclusive qualitativas, causadas pelo lançamento de esgotos domésticos,
urbanos, principalmente. O Eixo
Leste é uma exteriorização precoce destes problemas.
Aliás, fraturamentos já ocorreram em outros trechos de canais, antes da
conclusão do Projeto. O caso do Eixo
Leste emMonteiro/PB é
emblemático.
Vamos às
respostas de suas outras perguntas, não relacionadas diretamente com a questão
da transposição, mas que, de alguma forma, subsidia as observações e
esclarecimentos adicionais ao diagnóstico até aqui realizado.
IHU
On-Line - Em que constitui o Inventário Hidrogeológico Básico do Nordeste,
editado pela antiga Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - Sudene no
fim dos anos 60 e início dos anos 70, do qual o senhor participou? Que
mapeamento hidrológico foi feito pelo inventário à época e o que esse
mapeamento já demonstrava sobre a situação do Rio São Francisco?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - O Inventário Hidrogeológico Básico do
Nordeste foi o primeiro trabalho técnico, específico e
sistemático sobre as águas
subterrâneas do Nordeste sudeniano. Foi uma iniciativa
do meu ilustre colega Aldo
da Cunha Rebouças, infelizmente já falecido. O inventário, além
de um levantamento dos diversos tipos de poços perfurados nesta área, reunidos
em um Cadastro, devidamente padronizado, teve a constituí-lo uma caracterização
hidrogeológica de todos os aquíferos que
ocorrem na Região. Esta caracterização compreendeu a parte geológica, devidamente
mapeada, sobre a qual se descreveram as condições de armazenamento das águas
subterrâneas em termos quantitativos e qualitativos. Foram levantados dados de
fichas de poços e, a partir daí, visitas de campo com o fim de serem locados no
mapa. A caracterização consistiu numa estimativa do volume armazenado em cada
aquífero, usando-se, para isso, os fatores que o determinam, a porosidade
eficaz ou o coeficiente de armazenamento, este para o caso de aquíferos
confinados. Devo dizer que, à época, as águas subterrâneas eram vistas (e ainda
hoje são, tanto por alguns hidrogeólogos como por hidrólogos) como um
compartimento isolado dos demais recursos hídricos acumulados e em circulação
em superfície, como rios e reservatórios naturais e artificiais erigidos sobre
o solo. Alguns autores do Inventário, sem que isso fosse regra a ser seguida,
também descreveram algumas características de bacias hidrográficas. Todos
trataram de outros aspectos importantes no contexto dos aspectos
hidrogeológicos, tais como as condições climáticas, sua distribuição espacial e
temporal, a influência do relevo etc.
Na parte
qualitativa foi realizada uma caracterização físico-química de suas águas, com
ênfase a uma determinação de sua salinidade total, inclusive com determinação,
em campo, do chamado Resíduo Seco, devidamente registrado no respectivo mapa
hidrogeológico. No caso da área sanfranciscana, composta de várias Folhas
mapeadas (eram assim chamadas as áreas divididas e responsabilizadas a cada
hidrogeólogo), com base na cartografia elaborada pelo IBGE na escala
1:500.000, foram apresentadas poucas informações, talvez porque, naquele tempo,
havia pouco uso das águas subterrâneas. Em algumas destas folhas constam mapas
piezométricos de águas subterrâneas, mas sem maiores informações sobre como
elas (as águas subterrâneas) se relacionavam, em termos quantitativos com as
águas fluviais adjacentes.
IHU
On-Line - A partir desse inventário, como foi feito o planejamento hídrico do
Nordeste?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Houve, ainda
na década de 1970, um trabalho com estudos mais detalhados das águas subterrâneas em áreas mais promissoras que resultaram da
elaboração do Inventário, denominado “Estudos
de Reconhecimento e Estudos Hidrogeológicos para Aproveitamento Integrado da
Região Centro-leste da Bacia Potiguar e Bacias Costeiras da Paraíba e
Pernambuco”, realizado, por contrato, pela empresa OESA, com relatórios
encaminhados em 1976. Depois, já nos idos de 1977, e, também em consequência de
tais estudos, a Sudene,
através do consórcio Geotecnica/BRGM da França, elaborou o
primeiro plano
regional de recursos hídricos elaborado no Brasil, o denominado “Plano de Aproveitamento Integrado dos
Recursos Hídricos do Nordeste - PLIRHINE”, do qual constam textos e
mapas ilustrativos na escala 1:2.500.000, entre eles um mapa com o título de “Rede Fluviométrica Utilizada no Estudo
das Potencialidades” — esclareço que são as potencialidades
hídricas, fluviais e subterrâneas, estas dadas pelo escoamento de base
participante da vazão média anual de curso d’água. Participei, como consultor
do Consórcio, da elaboração deste plano, em sua parte de recursos hídricos subterrâneos.
Foi esta a primeira vez em que se considerou a contribuição do fluxo de base no
potencial hídrico de bacias hidrográficas de rios perenes e intermitentes do Brasil. As da bacia do
Rio São Francisco estão lá. Devo dizer que o conceito e a definição de “fluxo
de base” havia sido, há pouco tempo, criado e divulgado no trabalho “The varying source area of streamflow
from upland basins” (In: Proceedings of the Symposium on
Interdisciplinary Aspects of Watershed Management. American Society of Civil
Engineers: New York; 65–83, Hewlet, J. D & Nutter, W. L. (1970), ASCE, New
York, EUA).
Este trabalho
mudou a minha visão sobre a hidrogeologia
das águas subterrâneas, até então voltada para as condições de
armazenamento e sem conexões hidráulicas com as águas fluviais. Vi que o
armazenamento continua importante, mas na medida em que ele cria o escoamento
que sai no leito de rede da potamográfica superficial (rios, lagos, lagoas
etc.) e nos oceanos. Se rebaixarmos os níveis dos aquíferos, rios secam e
a água não chega ao oceano, mantendo a interface água doce/água salgada em suas
posições naturais, normais e históricas.
IHU
On-Line - Existe um inventário hidrogeológico básico para todo o Brasil? Como
esse tipo de inventário contribui para fazer a gestão dos recursos hídricos?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Existe o
denominado Siagas (Sistema
de Informações de Águas Subterrâneas) pertencente ao Serviço Geológico do Brasil,
e alguns estados como São
Paulo, Rio
Grande do Norte, Ceará, Paraíba, e talvez
outros, têm, em suas agências estaduais de águas, um cadastro de poços,
outorgados ou não. Mas peca pela não atualização de todas as perfurações
encetadas clandestinamente em seus territórios, carentes que são de pessoal
técnico qualificado e de recursos financeiros. Além disso, estes cadastros não
são completos, nem uniformes. Alguns nem localização geográfica (coordenadas)
têm. Nem mesmo mencionam em que bacia hidrográfica se situa.
IHU
On-Line - Pode nos explicar em que consiste sua proposta de adução das águas do
São Francisco para atender a demanda das grandes metrópoles nordestinas? Quais
os ganhos em termos de abastecimento e eficiência hídrica desse modelo que
propõe em relação à transposição?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Bem, esta
proposta eu a fiz em um relatório elaborado para a Assembleia Legislativa do Estado da
Paraíba, por ocasião da ocorrência da seca que atingiu os
reservatórios paraibanos do seu Semiárido(todos dependentes de chuvas, já que os rios são
efêmeros) e os da zona litorânea que abastecem a grande João Pessoa, formada
pela capital e as cidades vizinhas de Bayeux, Santa Rita e Cabedelo. Esta região
entrou em forte racionamento de seu abastecimento e a disponibilidade de água
subterrânea, usada para abastecer outras cidades menores e a população rural,
já se afigurava insuficiente para o atendimento não só das demandas
socioeconômicas, mas, e principalmente, das ecológicas, uma vez que alteraria o
regime hidrológico do baixo curso dos rios litorâneos, entre eles o Gramame/Mamuaba e
o rio Paraíba,
onde se localizam os reservatórios que abastecem esta área metropolitana.
Estendi a
proposta para outras capitais
nordestinas, principalmente Recife, que já
apresentava rebaixamento excessivo do nível potenciométrico de seus aquíferos, permitindo a
interiorização da cunha salina marinha e, até, a ocorrência de alguma
subsidência de solos urbanos. Mas a captação proposta seria localizada após oreservatório Xingó,
depois de satisfeitas todas as demandas socioeconômicas do baixo curso do Rio São Francisco. Naquela época, a defluência de Xingó situava-se em
torno dos 1850 m3/s, sendo acrescida pela contribuição da chamada vazão
incremental, processada pelas chuvas e pelo escoamento de base dos sistemas
Aluvial e Alagoas-Sergipe,
podendo chegar aos 2000 m3/s ou mais. Descontada a vazão mínima ou de base
(1.300 m3/s), haveria um saldo que atenderia as demandas do baixo curso e ainda
havia sobras que permitiriam abastecer as grandes metrópoles nordestinas em
suas diversas atividades, com uma demanda total, projetada para 2020, de 176,53
m3/s (Projeto ÁRIDAS, SEPLAN, 1994, Brasília/DF/Brasil). Não se precisaria
aduzir toda esta vazão, mas apenas aquela necessária à complementação do
abastecimento já existente, realizado com as águas dos reservatórios locais.
Esta transposição seria
feita por meio de adutoras específicas, projetadas para conduzir as vazões
necessárias ao atendimento seguro das demandas socioeconômicas, mesmo em tempos
de secas inusitadas como foi a daquele período.
Não me detive em
detalhes, mesmo porque era preciso fazer estudos adicionais a esta proposta.
Mas pensava em algo como um total de 150 m3/s, distribuído entre as adutoras
específicas. Esta proposta incluía o atendimento do abastecimento das maiores
cidades interioranas de alguns dos Estados componentes da região Nordeste Oriental,
como Campina Grande/PB, Caruaru/PE, Mossoró/RN e Crateús/CE, uma vez que
os reservatórios que as abastecia situavam-se nas áreas mais vulneráveis aos
eventos hidroclimáticos adversos (seca)
do Semiárido
nordestino.
Os ganhos deste
modelo acima e outrora proposto foram e são a minimização das perdas hídricas por condução e evaporação e os menores custos de
operação e manutenção de sistemas adutores, muito inferiores àqueles
relacionados com a transposição por
canais, embora o investimento inicial fosse um pouco maior.
IHU
On-Line - O senhor já afirmou que a transposição não resolveria os problemas de
abastecimento hídrico no meio rural. Que tipo de medida garantiria esse abastecimento?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Claro, as
demandas do meio rural, humanas, do gado e de agricultura de subsistência, são
dispersas, pontuais e inviáveis para um atendimento por um projeto de
transposição, pelos custos muito altos, maiores que os benefícios. Para isto,
existe outra solução que se fundamenta do uso das águas subterrâneas contidas
em manchas do Sistema
Aluvial e das águas de pequenos e médios açudes existentes
em todas as bacias
hidrográficas do Semiárido, em número superior ao suportado por
cada bacia.
Confrontadas as
suas ofertas com as demandas, se estas não pudessem ser atendidas com
segurança, essas ofertas poderiam ser complementadas pela água armazenada em
reservatórios superficiais com capacidade de regularização plurianual 100%
garantida, situados próximos das demandas deficitárias. Estes açudes existem e
muitos são subutilizados ou mal utilizados, pelo consumo excessivo de suas
águas em projetos de irrigação consumista pelas razões já descritas nesta
entrevista. A irrigação que deveria ser praticada é a que usaria as águas
de reservatórios pequenos e médios e a água subterrânea de aquíferos aluviais
para corrigir as irregularidades pluviais (os chamados veranicos) que ocorrem
em anos considerados normais, de chuvas situadas dentro da média histórica, mas
que afetam a produtividade dos cultivos de subsistência, reduzindo-a. Ainda
assim, estes cultivos, impropriamente denominados de sequeiros, são
responsáveis, em média, pelo abastecimento de 70% ou mais dos alimentos
comercializados nas tais centrais de abastecimento.
Acrescento uma
informação que mostra que a irrigação praticada
em perímetros, pelo modelo atual, não resolve o problema e não atinge o fim que
propaga, pelo menos em toda a região
Semiárida do Nordeste,
incluindo a inserida na Bacia
Hidrográfica do São Francisco, o de aumentar a arrecadação dos
estados com a exportação de sua fruticultura. O exemplo vem do Ceará, onde já no
primeiro ano (2012) da seca recém-finda, verificou-se a seguinte situação: dos
539.531 hectares (ha) irrigados no Nordeste Oriental, 327.067 ha ficam no Ceará
(60,6%). Segundo notícias então veiculadas, a safra de grãos no Ceará teve uma
projeção de agravamento das perdas, confirmando que o estado teria, já em 2012,
a pior colheita dos últimos 17 anos. É o que aponta o último Levantamento Sistemático da Produção
Agrícola - LSPA, realizado no período de 16 de agosto a 15 de
setembro daquele ano. Conforme o relatório houve uma queda de 83,41% na
previsão da colheita de grãos, que despencou de 1,43 milhão de toneladas
(expectativa em janeiro de 2012) para 238,6 mil toneladas. A produção por
irrigação é de somente 235.807 toneladas, contra 1.200.000 toneladas de
cultivos de subsistência.
O modelo não
funciona: levantamento mostra que 160.000 ha dos perímetros estão sem produzir
nada, abandonados por motivos diversos, tais como salinização,
sodificação, operação e manutenção precárias etc. Vários perímetros nem existem
mais e outros funcionam parcial e precariamente.
IHU
On-Line - Quais serão as implicações da transposição a partir de agora? A obra
pode se transformar num “elefante branco”?
Mesmo com as medidas advogadas com o objetivo
de revitalização do Rio São Francisco e de sua bacia, como
reflorestamento, proteção de fontes, replantio da vegetação ciliar, o Rio
São Francisco não recuperará a sua antiga vazão média natural - José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Mesmo com
as medidas advogadas com o objetivo de revitalização do Rio São Franciscoe de sua bacia, como reflorestamento, proteção de fontes,
replantio da vegetação ciliar, o Rio
São Francisco não recuperará a sua antiga vazão média
natural. Embora importantes e necessárias, estas medidas não são suficientes
para reverter a situação atual de disponibilidade hídrica do rio e de seus
afluentes e reservatórios superficiais. A razão é a mudança drástica do regime hidrológico de
seus cursos d’água e da vazão de suas fontes pela exploração incontrolada do
fluxo de base, alteradas de perenes para intermitentes e, mesmo, efêmeras. As
fontes são áreas naturais de descarga de água subterrânea em todo ano
hidrológico. A exploração destas águas em poços situados a montante das mesmas inviabiliza
e seca este escoamento verificado, inclusive, nas veredas, denominação aplicada
a trechos de rios, consagrada no livro do grande escritor mineiro Guimarães Rosa, “Grande Sertão, Veredas”.
Neste caso, a
obra da transposição,
quando totalmente completa, poderá se transformar no que foi denominado de “elefante branco”, na
medida em que, com a ocorrência de futuras secas, tão prolongadas e agudas como
foi esta última, pode acontecer o esvaziamento total dos reservatórios
fundamentais, já que a vazão de base não mais terá a contribuição histórica,
tornando-se insignificante ou nula. As demandas prioritárias (abastecimento
humano, urbano e rural e do gado, além do PISF [Projeto de Integração do São
Francisco]) poderão, pelo menos, sofrer solução de continuidade, provocando
problemas agudos de ofertas que não mais serão suficientes ao atendimento
destas demandas da própria bacia
do São Francisco, que dirá as de fora dela. Será um conflito de
uso que se tornará de difícil solução!
Há, no meu
modesto entender, que se controlar o uso das águas em irrigação, a atividade de
maior consumo hídrico, nesta bacia e em todos os lugares do Planeta Terra.
Isto, sem falar no problema de aumento de perdas por evaporação, causado pelo
aquecimento global (a época geológica que estamos vivendo, denominada de Holoceno, é um tempo de aquecimento natural, componente do
período Quaternário da Era
Cenozoica) que, ainda, não atingiu o seu paroxismo térmico.
Este aquecimento está sendo exacerbado pelas atividades antrópicas como o desmatamento e
a queima de
combustíveis fósseis. Para mim, o desmatamento exerce
uma ação mais significativa neste aquecimento, na medida em que isto reduz o
fenômeno à fotossíntese, deixando de retirar da atmosfera os seus principais
componentes dos gases quentes, o CO2 e o H2O, na mesma proporção em que se
retirava antes. Ficando na atmosfera, eles absorvem o calor irradiado pelo Sol
e refletido pelo solo e sua umidade por evaporação (albedo), deixando o ar e o
clima mais quentes.
IHU
On-Line - Deseja acrescentar algo?
José do
Patrocínio Tomaz Albuquerque - Apenas,
para encerrar, abordo a proposta do senador do Ceará Tasso Jereissati, de privatizar a Eletrobras, da qual faz parte a CHESF. Em um quadro de
insuficiência energética por que passa o Brasil e a região Nordeste, o preço que se
pagará pelo consumo desta energia será, inexoravelmente, ditado pela lei da
oferta e da procura. Adivinhe quem vai pagar a conta? Claro, os consumidores
domésticos, a parte fraca do contexto!
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Transposição do São Francisco: o elefante branco
nordestino? Entrevista especial com João Suassuna
Postado há 9 hours ago por João
Suassuna
COMENTÁRIOS
João Suassuna - Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco
É inaceitável esse
posicionamento da Chesf, em não lutar pelos volumes do São Francisco, capazes
de assegurar a geração elétrica no complexo gerador, por ela instalado no Velho
Chico. Afinal são 10 mil MW de potência, que custaram aos cofres públicos cerca
de US$ 13 bilhões (treze bilhões de dólares). Para a solução definitiva do
problema de geração elétrica, o poder público tem apostado todas as suas fichas
na interligação do sistema gerador do País. Essa decisão traz consigo um risco
demasiadamente grande, tendo em vista a expansão das secas no território
nacional. As secas, antes restritas à região Nordeste, passaram, na atualidade,
a ter âmbito nacional. A capacidade dos reservatórios das hidrelétricas do
Sudeste, por exemplo, as mais importantes em termos de geração do País, está em
cerca de 17%, apenas, valor muito baixo, portanto, para assegurar uma geração
firme no atendimento às demandas da nação brasileira. Energia é sinônimo de
desenvolvimento e não podemos está brincando com isso!
Aspectos negativos da restrição
hídrica na produtividade. A capacidade do volume morto é de 20% do volume útil
do reservatório, projetado para receber 28 bilhões de metros cúbicos por
segundo de água.
O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Anivaldo Miranda, diz que o setor elétrico trabalha com três cenários: o mais crítico indicaria a possibilidade de captação de água do volume morto em Sobradinho já a partir de agosto.
Em cenário mediano, essa prática começaria em setembro e, por fim, o menos crítico, a partir de outubro. "As atenções estão voltadas para a situação hidrológica a partir de agora", revela. Na próxima segunda-feira, a ANA realiza encontro para discutir a temática.
O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), Anivaldo Miranda, diz que o setor elétrico trabalha com três cenários: o mais crítico indicaria a possibilidade de captação de água do volume morto em Sobradinho já a partir de agosto.
Em cenário mediano, essa prática começaria em setembro e, por fim, o menos crítico, a partir de outubro. "As atenções estão voltadas para a situação hidrológica a partir de agora", revela. Na próxima segunda-feira, a ANA realiza encontro para discutir a temática.
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