TECNOLOGIAS DE
CONVIVÊNCIA COM AS SECAS: SEMIÁRIDO ABRIGA QUASE METADE DAS PESSOAS QUE
PASSAM FOME NO NORDESTE
Estimativa
cruza dados da Vigisan com os do Ministério da Integração Nacional com base no
Censo do IBGE (2010) e prevê que, no mínimo 3 milhões e 674 mil pessoas passem
fome na região.
https://www.asabrasil.org.br/noticias?artigo_id=11149
ASA Brasil
23/04/2021
Sem renda,
famílias do Semiárido se desesperam em busca de alimentos - Foto: João Zinclar
Depois dos
óbitos, a fome é outra evidência cruel da forma como a pandemia da Covid-19 vem
atingindo o Brasil. No Semiárido, esta é a expressão mais dura da pandemia nas
vidas de, no mínimo, cerca de 3 milhões e 674 mil pessoas que se encontram em
situação de insegurança alimentar grave. Ou seja: no Semiárido estão, no
mínimo, quase metade das 7,7 milhões de pessoas em situação de fome no
Nordeste, segundo o Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no Contexto
da Pandemia da Covid-19 no Brasil, divulgados no início deste mês.
Na avaliação
da Médica Epidemiologista, Professora Aposentada do Departamento de Saúde
Coletiva-FCM-UNICAMP, Pesquisadora associada/Fiocruz Brasília e da Rede
Penssan, Ana Maria Segall-Corrêa, “provavelmente estes dados podem ser bem
maiores, caso fosse aplicada uma pesquisa especificamente na região semiárida,
que possui indicadores sociais específicos e historicamente bem
preocupantes”.
A estimativa
dos mais de 3 milhões de pessoas com fome na região semiárida resulta da
aplicação do percentual de 13,08% - que corresponde ao índice de pessoas
nesta situação no Nordeste - ao total de habitantes do Semiárido, que é de
26.620.000, segundo dados do Ministério da Integração Nacional com base no Censo
do IBGE 2010, divulgados no artigo “É no Semiárido que a
vida pulsa”, publicado no portal da Fundação Nacional
Joaquim Nabuco (Fundaj), no dia 17 de julho de 2018.
Na pesquisa da
Rede Penssan, outros dados chamam atenção, pois traduzem questões históricas e
sensíveis ao Semiárido. Na relação acesso à água e insegurança alimentar, a
pesquisa constata que o número de pessoas em situação de fome praticamente
dobrou nas casas onde há insegurança hídrica. Os números saíram de 21,8% para
44,2%. Do universo de pessoas em situação de fome, 12% dos domicílios são
rurais, formados por famílias agricultoras, quilombolas, indígenas ou
ribeirinhas.
Os lares
chefiados por mulheres que possuem pessoas passando fome correspondem a 11,1%
.Já os lares na mesma situação chefiados por homens chegam a 7,7%. Além de
localização geográfica e gênero, a fome também tem raça. O mal está presente em
10,7% das casas habitadas por pessoas pretas ou pardas e em 7,5% dos lares onde
moram pessoas brancas.
Fome, falta de
água e retrocesso - O aumento da fome atrelado à insegurança hídrica é uma
prova de retrocesso. Bem antes da pandemia, em 1999, a Articulação Semiárido
Brasileiro (ASA), no início das suas atividades, estimou que ao menos 1 milhão
de famílias necessitam de água de beber para ter a condição mínima de conviver
com o Semiárido. Na época, a rede também identificou que a falta de água e,
consequentemente, de comida eram a principal causa das mortes de famílias
rurais em regiões remotas do Semiárido.
A primeira
grande política pública direcionada ao combate deste problema, junto às
famílias de regiões remotas do Semiárido e em situação de extrema
vulnerabilidade, foi o Programa Um Milhão de Cisternas Rurais para o
Semiárido (P1MC), que este ano celebra 21 anos, tendo erguido no
Semiárido 1 milhão e 200 mil cisternas de 16 mil litros, beneficiando
aproximadamente seis milhões de pessoas. Este dado refere-se a todas
as tecnologias implementadas, independente dos projetos realizados pela
ASA Brasil.
O Impacto do
P1MC em outros números - No âmbito apenas dos projetos executados pela
Associação Programa Um Milhão de Cisternas Rurais (AP1MC) - organização que faz
a gestão física e financeira dos projetos da ASA - desde 2000, foram
implementadas cerca de 629 mil tecnologias, beneficiando diretamente uma média
de 629 mil famílias, o equivalente a quase 3,2 milhões de pessoas, multiplicando
o número por cinco, que é a média de pessoas que uma família possui, segundo o
IBGE. Esta política exerce um impacto de gênero, pois do total de pessoas
beneficiadas, 68,7% são mulheres, enquanto 31,3% são do sexo masculino; e
abrange 1.157 dos 1.262 municípios do Semiárido brasileiro. As
informações são do banco de dados da ASA Brasil e correspondem apenas às
tecnologias implementadas pela Articulação com financiamento dos diversos
projetos.
A
iniciativa rompe com as tecnologias hídricas de armazenamento de água em
grandes represas, muitas vezes localizadas em terras particulares, que era a
lógica da Indústria da Seca, e leva água com qualidade de consumo humano
para o terreiro das casas das famílias. “O programa [P1MC] teve um resultado,
que todos e todas conhecemos. Um resultado maravilhoso, que trouxe água ao pé
da casa para mais de um milhão e 200 mil famílias, ou seja, para mais
de 5 milhões de pessoas! Então isso fez uma diferença. Essa diferença foi
somada com a cisterna de produção ou com implementos de água para produção, que
criaram oportunidades para as famílias que moravam nos espaços que nós
costumamos ver como chão rachado, pudessem produzir, consumir, vender, criar
espaços de vida”, comenta o membro da Coordenação Estadual da ASA Brasil,
Naidison Baptista.
Água que mata
a fome - Mais tarde, em 2007, a ASA criou o Programa Uma Terra e Duas
Águas (P1+2). O programa trazia, além do acesso a tecnologias como cisterna de
52 mil litros, barragem subterrânea e tanque de pedra, capacitações
técnicas em gestão de água e produção agroecológica. Em todo o Semiárido, mais
de 200 mil tecnologias foram construídas, beneficiando cerca de 535.910
pessoas, ou seja, mais de meio milhão de pessoas direta e indiretamente,
considerando algumas implementações comunitárias. Neste universo,
aproximadamente 68,2% são mulheres e 31,8% são homens. Em todo Semiárido,
foram beneficiados 741 municípios. Os dados correspondem apenas às tecnologias
implementadas no âmbito dos projetos executados pela ASA Brasil .
“O acesso à
água é um elemento da convivência com o Semiárido. Ao lado disso, tem o
Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), tem o Programa da Alimentação Escolar
( Pnae). Então tem toda uma gama de políticas, que somadas à dimensão da água,
criaram condições para que as pessoas vivessem bem no Semiárido. Agora, o que é
que acontece especialmente nos dois últimos anos: todas essas políticas estão
paradas. Elas foram mantidas dentro do orçamento, mas dentro da rubrica, não
tem dinheiro. Nós já temos no mínimo três anos que essas políticas não
funcionam. Não temos uma cisterna nova de produção. Temos uma aqui ou ali por
restos de projetos que se executam. O resultado disso é a fome que volta ao
Brasil: 19 milhões de pessoas passando fome. Não é um número pequeno, é um
número assombroso. E dessas [pessoas], boa parte estão no Norte e no Semiárido
brasileiro”, explica Naidison.
É preciso
cobrar dos políticos - “A ASA tem um projeto de convivência com o
Semiárido e não pode abrir mão dele”, defende Naidison Baptista. Segundo ele,
esta deve ser a filosofia das organizações que, há décadas, defendem, propagam,
criam e realizam políticas de convivência com o Semiárido. Cumprindo esta
premissa, a organização enviou, no último dia 13 de abril, uma carta aos congressistas, (hiperlink
de acesso à carta) na qual cobra medidas objetivas para erradicar a fome
no país. Dentre as reivindicações, pede que sejam viabilizadas as seguintes
medidas: “garantir auxílio emergencial de no mínimo R$ 600 para enquanto durar
a pandemia” e a “retomada do Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA)”.
“A ASA está no
coletivo que prepara a Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional, que
vai ser realizada pela sociedade civil, e esse coletivo, junto com o coletivo
de pesquisadores em segurança alimentar, acabou de fazer este inquérito, que
tem tido ampla repercussão no país. Foi assim que a gente construiu o Programa
Um Milhão de Cisternas, foi assim que nós chegamos a 1 milhão e 200 mil
cisternas, chegamos a vários bancos de sementes, a 200 mil cisternas de
produção de alimentos. Então, nós temos uma história, um knowhow, um
processo metodológico de trabalhar essas políticas públicas. Apesar do momento
difícil, o negócio é não desistir, não baixar a cabeça. (...) embora o governo
queira matar, não estamos de acordo em morrer”, conclui Naidison.
Mais água,
mais alimento - A agricultora agroecológica e integrante da coordenação da
Associação de Comercialização de Produtos Agroecológicos Ecoborborema, Marlene
Pereira, tem muita clareza sobre o que era a sua vida antes e depois do acesso
à água. Ela tem 51 anos, é mãe de dois filhos e tem dois netinhos. Ela mora no
Sítio Floriano, região do Brejo paraibano desde 2012. Antes disso, a
agricultora morava em uma casa que contava apenas com uma cisterna de 16 mil
litros. Naquela época, plantava-se apenas mandioca, feijão e milho, as
conhecidas culturas de sequeiro. A produção era usada essencialmente para o
alimento da família.
No ano de
2012, com a morte da tia, Marlene herdou uma pequena área no Sítio Floriano,
que possuía, além da cisterna de 16 mil litros, uma cisterna calçadão, um poço
amazonas e uma cacimba. Com mais água, Marlene ampliou e diversificou a
produção de alimentos. De quatro culturas, ela passou a produzir 100 produtos
diferentes. Hoje, conta ela, a plantação tem banana, laranja, passando
pelo alho poró, abacate, cenoura e abóbora.
“Sem água, não
dava nem para produzir para a nossa alimentação. Juntando essas águas e mais o
conhecimento técnico agroecológico e as outras políticas, Pnae, PAA e a DAP
[Declaração de Aptidão ao Pronaf] que eu tirei, a gente passou a ter mais
alimento na mesa e deu pra vender também. Mesmo com a pandemia, a gente
conseguiu manter a produção e as vendas. A gente vende no delivery, pelo
Instagram da Feira Agroecológica de Lagoa Seca e pelo da Feira Agroecológica da
UEPB em Campina Grande. Se não fosse o conhecimento agroecológico, eu não
conseguiria continuar plantando mesmo na pandemia”, conta Marlene, cheia de
orgulho.
A fome
aumenta, o auxílio diminui - Se por um lado a experiência da agricultora
Marlene Pereira reforça o papel do acesso à água no combate à fome e a
eficiência dos conhecimentos agroecológicos, por outro lado milhares de
outras mulheres, que ainda não tiveram acesso a tais políticas sentem o peso da
pandemia nos pratos vazios sobre a mesa. As mulheres do Semiárido já
vinham sentindo o esvaziamento das políticas de convivência com o Semiárido,
voltando a sofrer com as inseguranças hídrica e alimentar. Com a pandemia,
muitas delas foram impedidas de vender os seus produtos na feira devido à queda
no movimento. Para completar, a jornada de trabalho doméstico aumentou
com as crianças em casa e a necessidade de proteger a vida de familiares
do grupo de risco da Covid-19, a exemplo de pessoas idosas e que convivem com
algum tipo de deficiência.
Diante disso,
o auxílio emergencial se tornou a única esperança de comida e água para as
mulheres do Semiárido. Nesta segunda rodada, o programa está sendo garantido
por meio da PEC 186, a chamada PEC Emergencial. Os valores do benefício, que já
haviam sido reduzidos de R$ 600 para R$ 300, agora, transitam entre R$ 150 e R$
375. A redução vai na contramão do aumento da fome no Brasil. O auxílio tem
sido a única renda para muitas famílias empobrecidas do Brasil, e, segundo
dados do Programa “A casa é sua” da Campanha em Defesa da Renda Básica, foi
usado para comprar comida por 53% das pessoas que acessaram este benefício
social.
Esta
matemática tem tirado o sono da agricultora agroecológica Maria Aparecida
Vieira, do município de Igaci, região Agreste de Alagoas. Os 600 reais e depois
os 300 reais deu pra tapear . Mas, depois, as coisas foi aumentando. Aqui tem o
botijão de gás, que é 90 reais, e se comprar para um mês, sai por 100
reais. Olhe, aqui em casa eram seis pessoas, mesmo o meu filho tirando o dele,
o dinheiro acabava antes do mês. Eu acho, minha irmã, que não dá pra fazer
quase nada [refere-se ao novo valor]! Você chega no supermercado, compra duas,
três coisas, acaba o dinheiro. É uma situação muito difícil, viu!” desabafa a
agricultora.
Maria
Aparecida vivia, até antes da pandemia, da venda dos produtos agroecológicos na
Feira da Agricultura Familiar. Ao lado do marido, ela produzia batata doce,
macaxeira, goiaba e pinha. Com a pandemia, o apurado que chegava a R$ 150 por
feira, caiu para R$ 80, depois para R$ 30, até que ela e o marido deixaram de
frequentar o espaço. “Não compensava mais ir a feira, pois a gente tava ganhando
menos do que uma diária de campo, que pagando bem é de 50 reais”, complementa.
Durante a primeira rodada do auxílio, viviam na casa de Aparecida, ela o
marido, o filho e a esposa, e mais dois netos.
Postado há 3 hours ago por João Suassuna
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