quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016


ÁGUA NO BRASIL

 




Essa é a transcrição, na íntegra, do item 5, da Terceira Parte do livro de Aldo Rebouças (“O Uso Inteligente da Água” - Escrituras Editora - SP, 2004), que trata da Água no Brasil. Nesse item, o leitor terá uma ideia precisa da localização, gestão, quantidades e qualidades dos recursos hídricos do nosso país e, em especial, das águas subterrâneas existentes na sua região Semiárida. Boa leitura. João Suassuna.
O Brasil tem uma área de 8.547.403,5 km² e uma população de 170 milhões de habitantes (IBGE, 2000). Ocupa 47,7% da área da América do Sul e é o quinto país do mundo, tanto em extensão territorial quanto em população. Além disso, o Brasil é uma república federativa, localizado entre as latitudes de 35° Norte e 34° Sul e Longitudes de 35° e 74° Oeste, sendo cortado pelas linhas do Equador Terrestre e do Trópico de Capricórnio.
Em termos hidrológicos é um país-continente. Em termos pluviométricos, mais de 90% do território brasileiro recebe chuvas entre 1.000 e mais de 3.000 mm/ano. Apenas nos 400.000 km² do contexto semiárido do Nordeste, onde as rochas de idade pré-cambriana são praticamente subaflorantes e impermeáveis, as chuvas são mais escassas (entre 400 e 800 mm/ano) e, relativamente, mais irregulares. Os rios do Nordeste semiárido têm regime temporário, ou seja, secam praticamente durante os períodos sem precipitações de águas atmosféricas nas respectivas bacias hidrográficas.
Entretanto, a interação do quadro pluviométrico mais abundante com as condições geológicas dominantes engendra importantes excedentes hídricos que fluem pela superfície e pelo subsolo, alimentando uma das mais extensas e densas redes hidrográficas perenes do mundo, cuja descarga total média de longo período é de 182.633 m³/s ou 5.753 km³/ano.
Em 1965, teve lugar em Washington o 1° Simpósio Internacional sobre Dessalinização da Água, quando os representantes dos países participantes, inclusive o Brasil, verificaram que pouco se sabia sobre as águas dos respectivos territórios. Isso representou o começo da cooperação internacional no setor de recursos hídricos e foi iniciado o Decênio Hidrológico Internacional (1966-1975), sob a coordenação da Organização das Nações Unidas para a Educação e Ciências - UNESCO. Vale destacar que esse Decênio passou a se chamar Programa Hidrológico Internacional - PHI, sempre com a participação do Brasil.
Em 1977, a ONU realizou a 1° Conferência Internacional sobre a Água, em Mar del Plata (Argentina), já buscando planejar maneiras mais eficientes de utilizar e conservar as reservas de água do mundo, criando-se "O Decênio da Água Potável".
A distribuição, pela sua população, da quantidade de água que escoa pelos rios do Brasil, representa uma oferta da ordem de 33.841 m³/ano per capita. Essa situação coloca o Brasil na classe dos países ricos de água-doce das Nações Unidas. Além disso, têm-se as éguas subterrâneas, cujo volume estocado até a profundidade de 1.000 m é estimado em 112.000 km³.
Os dados fluviométricos disponíveis indicam que a contribuição dos fluxos subterrâneos as descargas de base dos rios - valor seguro das taxas de recarga das éguas subterrâneas que ocorrem no subsolo da bacia hidrográfica - varia entre 11 mm/ano nas bacias hidrográficas esculpidas nas rochas cristalinas subaflorantes do Nordeste semiárido, de 100 a 200 mm/ano nos seus domínios sedimentares e atinge mais de 600 mm/ano nas bacias sedimentares do Amazonas e Paraná, por exemplo.
O valor médio das recargas das águas subterrâneas, no Brasil, é estimado em 3.144 km³/ano. A extração de apenas 25% dessa taxa média de recarga já representaria uma oferta de água-doce à população brasileira da ordem de 4.000 m³/ano per capita. Portanto, mesmo no subsolo, o Brasil dispõe de muita égua, ainda que se considerando 1.000 m³/ano per capita como a taxa abaixo da qual se caracteriza o estresse hídrico.
Essa situação de abundância de água-doce no Brasil já era reportada por Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal em 1500, na sua primeira carta sobre o descobrimento. Ao tocar a zona úmida costeira do Nordeste semiárido assim declarava: " em se plantando tudo dá, em função das águas que tem...".
MUITA ÁGUA NOS RIOS: MÁ DISTRIBUIÇÃO E GRANDES DESPERDÍCIOS
Grandes civilizações nasceram, floresceram e se desenvolveram onde havia muita água, enquanto outras pereceram ou decaíram quando o suprimento de água deixou de ser abundante. Muitas pessoas ainda se matam pela água lamacenta de um poço ou de um rio, muitas ainda adoram os deuses da chuva, rezando para que a mandem por ser ela a fonte da Vida.
Quando deixa de chover por longos períodos, as plantações secam, a fome assola regiões muito importantes e verifica-se, atualmente, racionamento de energia hidrelétrica.
Outras vezes, as chuvas caem intensa e repentinamente, de tal forma que os rios transbordam, cobrindo e afogando tudo e todos que se coloquem no caminho de suas águas. Todavia, a ocorrência de secas ou chuvas onde não mora ninguém ou não existe interesse econômico ou político não passa de um fenômeno meteorológico.
Nossa demanda de água cresce constantemente. À medida que cresce a população, as fábricas e irrigações consomem sempre mais. Assim, uma coisa é certa: precisa-se de quantidades cada vez maiores de água e a única fórmula que se conhece, até agora, para se conseguir um equilíbrio entre oferta e demanda na área considerada é transformar a ideia tradicional de que a solução é aumentar sua oferta e passar a dar-lhe um uso cada vez mais eficiente.
Nas últimas décadas, verifica-se a necessidade de evoluir do usufruto do capital - água em abundância e demais recursos naturais, mão de obra barata, principalmente - para cenários que visam a uma produtividade crescente. Em outros termos, a palavra de ordem, atualmente, é produzir cada vez mais com o uso de cada vez menos água.
Para fins de gestão de recursos hídricos, o território brasileiro é dividido em 12 regiões hidrográficas, conforme mostra a figura 8. Nessa divisão, deve-se atentar para o fato de que se considerou as bacias dos rios temporários do Nordeste Setentrional juntamente com as dos rios perenes do Nordeste Oriental.
Entretanto, no Nordeste Setentrional, ou Sertão, o meio ecológico predominante é semiárido e as bacias hidrográficas dos rios que drenam essa área foram esculpidas nas rochas cristalinas praticamente impermeáveis e subaflorantes. Como decorrência, a cobertura vegetal dominante é do tipo caatinga, ou seja, vegetação adaptada aos longos períodos sem chuvas. Assim, os rios dessa área têm regime de fluxo temporário.
Ao contrário, a pluviometria nas bacias hidrográficas dos rios que drenam o Nordeste Oriental e mais regular e abundante - entre 1.000 e 3.000 mm/ano. As bacias hidrográficas foram esculpidas em rochas cristalinas cobertas por espesso manto de rochas alteradas ou de sedimentos arenosos. Os rios que drenam o Nordeste Oriental são perenes, ou seja, nunca secam, sobretudo nos seus médios e baixos cursos, onde as densidades de população são maiores e a falta de saneamento básico constitui um problema vexatório. Em consequência, a esquistossomose predomina nessas áreas, como doença hídrica endêmica.
Portanto, os problemas de abastecimento de água nessa área são muito mais de eficiência da oferta e de usos. Logo, esses são muito diferentes daqueles engendrados pelas secas periódicas que assolam o Nordeste semiárido. Basta lembrar que, regra geral, as empresas estatais de abastecimento de água no Nordeste não coletam sequer os esgotos que geram e apresentam índices de perdas totais - perdas físicas em razão dos vazamentos de água nas redes de distribuição e perdas financeiras, devido às ligações clandestinas e roubo de água - entre 40 e 70%, isto é, da água que é captada, tratada e injetada nas redes de distribuição.
Além disso, o Programa de Uso Racional da Água - PURA -, mostra que na Região Metropolitana da Grande São Paulo (RMSP), por exemplo, os desperdícios atingem cerca de 70% da vazão que chega na torneira do usuário. Considerando que se trata de cerca de 63.000 litros por segundo em média, os quais são repartidos pela população de 17 milhões de habitantes, resulta numa taxa per capita de 320 litros por dia. Todavia, a vazão de projeto da rede de distribuição é de 250 litros por habitante por dia. Dessa forma, a empresa de água está tratando mais do que a população precisa. O problema não é, pois, de falta de água, mas de um uso mais eficiente.
Quantos aos desperdícios na agricultura, deve-se considerar que sobre cerca de 93% dos quase três milhões de hectares irrigados no Brasil, ainda se utilizam os métodos de irrigação menos eficientes do mundo, tais como o espalhamento superficial (56%), aspersão convencional (18%) e pivô central (19%). Deve-se considerar, ainda, que esses dois últimos métodos, além de serem pouco eficientes em termos de consumo de água, são de uso intensivo de energia elétrica, cuja produção no Brasil depende de água.
A descarga média de longo período dos rios que drenam o território brasileiro é, atualmente, de 182.633 m³/s, ou cerca de 34.000 m³/ano per capta. Entretanto, levando-se em consideração a descarga média gerada na região hidrográfica do Amazonas, situada em território estrangeiro, estimada em 89.000 m³/s, o potencial total de água-doce que flui pelos rios do Brasil é da ordem de 272.000 m³/s (ANA, 2002).
A relação entre as demandas - para consumo humano de 384 m³/s, irrigação de 1.344 m³/s, consumo animal de 115 m³/s, industrial de 299 m³/s e média total de 2.141 m³/s - e a descarga total média de longo período dos rios de 182.633 m³/s mostra que a escassez de água ainda não ocorre no Brasil. A relação demandas versus potenciais é de apenas 0,2 % na bacia do Amazonas, 0,6% na do Tocantins, 3,6% na do Parnaíba, 7,9% na do São Francisco, a mais elevada de 8,9% no Nordeste e de 1,2% apenas no Brasil, por exemplo. Entretanto, essas demandas são crescentes, assim como os desperdícios e a degradação da qualidade ambiental.
Desse modo, o Brasil tem muita água, mesmo no Nordeste. Porém, o seu uso cada vez mais eficiente desempenhará, certamente, um papel vital na saúde atual e futura da nossa sociedade e na produção de alimentos, principalmente. O uso eficiente da água nos rios do Brasil significa a possibilidade de suprir as necessidades humanas básicas, sem destruir o meio ambiente, a qualidade da água, garantir o crescimento econômico e social com proteção ambiental.
Verifica-se que o Brasil tem água mais do que suficiente nos rios em qualquer das suas regiões geográficas. Logo, nada justifica o Brasil permanecer na vala comum dos países com escassez de água, para proporcionar o desenvolvimento essencial, para melhorar os meios de vida da sua população, para sustentar o seu crescimento e, eventualmente, estabilizá-lo em nível adequado.
Basta considerar que, virtualmente, em todas as zonas áridas do mundo a umidade do solo é inferior a 300 mm/ano, a vegetação é escassa e a produtividade de biomassa é inferior a 3 t/hectare/ano. Entretanto, técnicas de irrigação tem tornado possível uma maior produtividade, aliadas ao uso mais eficiente da água e dos recursos naturais.
No outro extremo tem-se a zona de clima equatorial, onde a umidade do solo atinge mais de 1.500 mm/ano e os potenciais naturais de biomassa no Brasil são superiores a 40 t/hectare/ano Entretanto, o Brasil corre grande risco de perder a honrosa posição de maior produtor mundial de alimentos (mais de 100 milhões/t) se não der uma maior atenção aos seus recursos hídricos e aos seus solos, porque para cada quilo de grão produzido nos Estados de São Paulo e Paraná, por exemplo, estima-se que se perde 10 vezes mais solo por erosão (Telles, 2002). Por sua vez, no meio temperado, tradicional produtor de alimentos, a umidade do solo é de apenas 550 mm/ano e a produtividade de biomassa é de apenas de 10-12 t/hectare/ano (WRl, 1990).
Portanto, mercados abertos e competitivos, dentro e entre os países, deverão fomentar a inovação de tecnologias que engendram o uso eficiente cada vez maior da água, além de proporcionarem oportunidades a todos para melhorar suas condições de vida. No entanto, esses mercados devem dar os sinais corretos, os preços dos bens e serviços devem ser os mais baixos possíveis, de tal forma que os custos de sua produção, usos, reciclagem e disposição final dos resíduos líquidos e sólidos atendam às perspectivas do desenvolvimento sustentado. Isso é fundamental e mais fácil de alcançar mediante uma síntese dos instrumentos econômicos destinados a corrigir as distorções e estimular a inovação, o contínuo aprimoramento, com padrões reguladores para orientar o desempenho de iniciativas voluntárias por parte do setor privado.
OS TRÊS SETORES DO MUNDO ATUAL
Atualmente, o mundo é visto como formado de três setores distintos, interdependentes e indissociáveis: o governo ou o primeiro setor, as empresas ou o segundo setor e a sociedade civil organizada, o terceiro setor. Nesse quadro, as empresas são, certamente, a espinha dorsal que dá suporte ao corpo formado pelo governo e a sociedade civil organizada. Assim, espera-se que as empresas e a sociedade civil, que elegem os governos, tornem-se parceiros efetivos e definam as necessidades de políticas públicas. Essas políticas regionais, estaduais ou nacionais, deverão ser ajustadas às diferentes situações locais.
As novas regulamentações e instrumentos econômicos devem estar harmonizados entre os parceiros comerciais, ao mesmo tempo reconhecendo que os níveis e condições do desenvolvimento variam de um lugar para outro, o que resulta em diferentes necessidades e capacidades. O governo central deve fazer surgir as mudanças gradualmente e por um período razoável de tempo, para possibilitar um planejamento realista e ciclos de investimento.
Por sua vez, as empresas deverão atuar segundo os princípios do desenvolvimento sustentável, avançando, valorizando e encorajando os investimentos e poupanças a longo prazo, orientados pela disponibilidade de água-doce e de informações adequadas.
As políticas e práticas do comércio global devem ser abertas, oferecendo oportunidades a todas as regiões hidrológicas. Essas práticas deverão levar ao uso e conservação da água e dos recursos naturais, de tal forma que será mais importante o uso cada vez mais eficiente da água do que continuar ostentando sua abundância. Em outras palavras, será sempre mais efetivo embasar o desenvolvimento sobre o rendimento ou a produtividade do capital água ou dos recursos naturais, do que sobre sua abundância ou com a visão tradicional extrativista.
Uma visão clara de um futuro sustentável mobiliza as energias humanas na execução das transformações necessárias, rompendo com os padrões estabelecidos de que a única solução dos problemas de escassez da oferta d'água é o aumento da sua oferta. À medida que os líderes de todos os segmentos da sociedade integrarem forças para transformar a visão das empresas, a inércia será superada e a cooperação tomará o lugar do confronto.
AS ÁGUAS SUBTERRÂNEAS
Durante as últimas décadas do século passado era crescente o número de exemplos positivos da utilização racional do manancial subterrâneo, como a alternativa de solução mais barata para abastecimento humano nos países mais desenvolvidos. Essa situação decorre, fundamentalmente, do fato da água subterrânea ocorrer de forma extensiva no meio e se achar, relativamente aos rios e açudes, protegida dos agentes de poluição –tanto nas cidades quanto no meio rural.
Tendo em vista que a captação da água subterrânea é feita, em geral, pelo próprio usuário, a percepção da necessidade de um uso mais eficiente da água é mais fácil do que extraí-la de um rio, com dinheiro público.
Efetivamente, como as obras para utilização da água dos mananciais de superfície são construídas com grandes investimentos públicos, a percepção da necessidade de se fazer um uso cada vez mais eficiente da água disponível é quase sempre mais difícil, principalmente, quando o seu uso mais importante é para irrigação.
Devido à falta de controle - federal, estadual ou similares - na extração, recarga ou monitoramento da água subterrânea, não se tem uma avaliação segura do número de poços já perfurados, tanto no mundo, quanto no Brasil, A UNESCO estima que cerca de 250 milhões de poços estão em operação no mundo e talvez 10% no Brasil. Somente no Estado de São Paulo, a Associação Brasileira de Águas Subterrâneas - ABAS, 2003 - estima que cerca de 15 mil poços sejam perfurados por ano, atualmente.
As águas subterrâneas no Brasil continuam sendo extraídas livremente por meio de poços de qualidade técnica duvidosa, para abastecimento de hotéis de luxo, hospitais, indústrias e condomínios privados. Dessa forma, tem-se, com grande frequência, casos de contaminação das águas extraídas: por esgotos domésticos, vazamento de combustíveis e de estoques de produtos químicos, percolação de líquidos vários de depósitos de resíduos sólidos domésticos e industriais etc. Ainda é muito comum o poço que recebe filtros em toda a extensão arenosa do seu perfil geológico, sobretudo quando a camada aquífera fica acima do seu nível estático (NE). Essa prática tem dois agravantes principais: (i) significa desperdício de recursos financeiros, já que se coloca uma coluna de filtros na camada aquífera freática, por exemplo - cujo custo pode ser o dobro do tubo de revestimento simples e, possivelmente, fica sem produzir água - e (ii) a colação de filtro na camada aquífera freática, que significa um aumento dos riscos de contaminação cruzada das águas extraídas, mormente, quando os poços estão localizados nas cidades, nos terrenos das próprias fábricas ou nos perímetros irrigados. Por sua vez, ainda é frequente a colocação de bomba cujo setor de sucção fica posicionado em frente ao intervalo de filtros, causando a produção de areia, o que tem ensejado à construção de "desareiadores" junto aos poços, numa prova eloquente de que não apresentam uma boa qualidade técnica construtiva.
Também é habitual a colocação de pré-filtros ou de cascalho em todo o espaço anular entre o revestimento e a parede do furo do poço, até sua boca. Essa prática enseja a penetração de poluentes superficiais nos poços, tais como: esgotos sanitários, vazamento de postos de gasolina, de tanques superficiais ou semienterrados de produtos químicos, principalmente, ocasionando a contaminação cruzada da água que é produzida.
Outra constatação normalmente observada e muito danosa consiste na instalação de bombas não convenientemente dimensionadas nos poços. Quando os registros de descarga dos poços trabalham estrangulados, significa que as bombas instaladas estão superdimensionadas. Como resultado, têm-se grandes consumos de energia elétrica para bombeamento, rápida incrustação ou entupimento dos filtros, queda da eficiência hidráulica do poço e produção de areia. Além disso, a refrigeração do motor e prejudicada, pelo fato de a água circular em alta velocidade. Ao contrário, quando se coloca uma bomba subdimensionada no poço, tem-se que sua vida útil também é sensivelmente reduzida, por que as baixas velocidades de fluxo não proporcionam condições adequadas de resfriamento do respectivo motor. O mesmo se observa em poços com bombas situadas abaixo de seções de filtros, tendo em vista que a maior produção do referido poço poderá ser proporcionada pelos aquíferos situados acima.
Em geral, é da cultura do povo não fazer manutenção ou limpeza periódica dos poços. Consequentemente, muitas vezes o nível da água se aprofunda, levando a interpretação de que o poço secou. Nesses casos, usuários e perfuradores concordam que a solução seria perfurar novo poço. Ledo engano: o que se verifica com frequência é uma perda da capacidade de produção do referido poço, uma vez que a nova perfuração chega a lograr maior produção que a anterior.
Considerando-se as precárias condições naturais de estocagem de água subterrânea nos terrenos cristalinos do Nordeste - manchas aluviais e zonas de rochas fraturadas -, os rios que drenam as bacias hidrográficas esculpidas no seu contexto semiárido têm regime de fluxo temporário, ou seja, secam, praticamente, durante os períodos sem chuvas nas respectivas bacias hidrográficas. A ideia dominante no Brasil é que a extração da água subterrânea não constitui uma alternativa segura de abastecimento da população.
Entretanto, deve-se levar em conta que o problema hidrológico verdadeiro do Nordeste semiárido não é que chove pouco - entre 300 e 800 mm/ano -, mas que evapora muito - entre 1.000 e mais de 3.000 mm/ano. Assim, não há condições de recarga artificial de aquíferos na área, seja para proteger a água da evaporação intensa que ocorre na região, seja da poluição que é engendrada pelo lançamento dos esgotos domésticos não tratados nos rios secos e pela não coleta da maior parte do lixo que se produz.
A empresa que se instala numa bacia hidrográfica onde a sociedade civil é falida, cedo ou tarde atingirá a falência, sobretudo, quando o governo ou o setor primário não tem uma política pública que vise, prioritariamente, ao interesse da sociedade civil organizada.
Já dissemos mais de uma vez que os rios que drenam mais de 90% do território nacional são perenes, ou seja, nunca secam, revelando uma grande abundância de água-doce no seu território. Certamente essa condição muito contribui para que o Brasil ostente a grande exuberância da sua cobertura vegetal e maior biodiversidade do planeta, além da posição de grande produtor mundial de alimentos. Contudo, se o Brasil não se empenhar em obter uma produtividade crescente com essa abundância de capital - riqueza em recursos naturais, mão de obra, energia abundante e barata - e continuar deslumbrado com a abundância de água que é dada pela visão de rios perenes, muito em breve estaremos amargando a situação de país rico em água-doce que não produz nem para comer.
O vexatório quadro sanitário das nossas cidades já assinala a baixa eficiência do fornecimento da água, por exemplo, onde os índices de perdas totais - vazamento físico de água nas redes de distribuição e perdas de faturamento devido aos roubos de água e tráfico de influência, principalmente - variam entre cerca de 40% e mais de 60%.
Com base nos resultados dos poços produtores de água considerados mais consistentes, elaborou-se o mapa apresentado na fig. 9, onde o território brasileiro foi dividido em termos de potenciais de produção de água subterrânea, ou de vazão especifica m³/h por metro de rebaixamento do nível de água no respectivo poço.
 
Esse cenário mostra que a única região relativamente pobre de água subterrânea no Brasil é o domínio de rochas cristalinas subaflorantes do semiárido do Nordeste. Nessa área, a capacidade específica dos poços é inferior a um m³/h por metro de rebaixamento de seu nível d'água.
A análise estatística do Resíduo Seco (RS) ou dos Sólidos Totais Dissolvidos (STD) mostra que 75% das amostras de água da zona semiárida do Nordeste provêm dos seus terrenos sedimentares e são classificadas como água potável, salvo casos locais e ocasionais de poços que são contaminados pela infiltração de águas rasas, especialmente, nas zonas urbanas onde não se tem sequer coleta de esgotos sanitários da maior parte do lixo que se produz, vazamento de tanques diversos e a ocupação do solo é, regra geral, desordenada. Nas zonas fraturadas aquíferas do embasamento geológico de idade pré-cambriana e praticamente impermeável do Nordeste semiárido, somente 37% das amostras analisadas de água apresentaram teores de sólidos totais dissolvidos (STD) inferiores ao limite de potabilidade da região, que é de 2.000 mg/l (Rebouças, 1973).
Entretanto, deve-se considerar a possibilidade, conforme mostra a experiência local e internacional, de que a extração das águas estocadas nas planícies aluviais e zonas de rochas fraturadas aquíferas subjacentes, durante o período de chuvas, principalmente, induz uma maior dinâmica de renovação dessas águas. Decorre que as águas subterrâneas salobras do cristalino do Nordeste semiárido tendem a melhorar de qualidade à medida que são utilizadas e, dessa forma, podem abastecer as populações ou dessedentar os animais. Porém, para tanto, torna-se necessário proceder ao seu monitoramento.
De qualquer forma, a extração de 1 m³/h por metro de rebaixamento num poço com potencial de rebaixamento de nível de 10 metros, por exemplo, durante 16 horas por dia, significa a oferta de um volume diário de 160 m³ de água ou 160.000 litros. Com essa quantidade seria possível abastecer uma população entre 1.500 e 2.000 pessoas com uma taxa de consumo diário de 100 l/hab/dia.
Vale ressaltar que a necessidade mínima de água para o consumo no semiárido do Nordeste foi estimada pelo instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada - IRPAA, 2001. Dessa forma, verifica-se que o gado consome 53 litros por dia; cavalo e jumento, 41; cabra, ovelha e porco, 6; galinha 0,2; criança, homem e mulher, 14 litros por dia. Assim, a família mais o rebanho precisam em oito meses de cerca da metade da capacidade de produção de um poço construído numa zona de rochas fraturada aquífera praticamente impermeável do cristalino pré-cambriano do Nordeste semiárido.
Além disso, os estudos desenvolvidos pela EMBRAPA/CPATSA, 2000, em convênio com o Banco do Nordeste, indicam que a salmoura produzida pelos dessalinizadores, porventura instalados em poços com égua salgada no Nordeste semiárido, tem um grande alcance econômico e social, porque pode ser aplicada na aquicultura e/ou na irrigação de plantas halófitas forrageiras para caprinos e ovinos, principalmente.
No extenso domínio de rochas cristalinas com espesso manto de alteração ou recobertas por terrenos sedimentares diversos, a capacidade específica dos poços pode variar de mais de um m³/h por metro até 5 m³/h.m, ou cerca de 3 m³/h.m em média. Considerando-se que o regime de produção de cada poço compreenda 16 horas por dia e que se verifique 30 metros de rebaixamento do nível da água, a oferta seria de um milhão e quinhentos mil litros/dia de água, suficiente para abastecer cerca de 15 mil pessoas, com uma taxa de consumo de 100 litros/dia per capita. Porém, à medida que "quem tem um poço não tem nenhum", espera-se que o serviço público de abastecimento de água tenha mais de um poço produtor. Assim, cerca de 3.500 cidades do Brasil com população inferior a 20.000 habitantes poderiam ser abastecida por dois ou mais poços.
Nos domínios hidrogeológicos de borda das principais bacias sedimentares do Brasil, a capacidade específica dos poços varia entre 5 e 10 m³/h.m, ou 7,5 m³/h.m, em média. Considerando que os poços produtores nessa área funcionem cerca de 16 horas por dia e que o rebaixamento do nível de água seja de 40 metros, a oferta por poço seria da ordem de 4,8 milhões de litros de égua por dia, ou o suficiente para abastecer cerca de 30 mil pessoas por poço, com uma taxa de consumo de 150 l/dia per capita. Nessas áreas, as condições de abastecimento da população das Cidades, principalmente, seriam viáveis para abastecer populações em torno de 20.000 pessoas.
Finalmente, têm-se os domínios hidrogeológicos mais promissores. Nesses domínios, a capacidade especifica de cada poço pode atingir mais de 20 m³/h.m, porém, de forma conservadora, considerou-se valor superior a 10 m³/h.m. Esses aquíferos artesianos são confinados por camadas relativamente pouco permeáveis e basálticas, inseridos nas bacias sedimentares do Amazonas (1,3 milhão km²); a bacia do Maranhão-Piauí (700 mil km²) e do Paraná no Brasil (l milhão km²). Nessas bacias sedimentares os sistemas aquíferos artesianos destacam-se pela importância econômica e social. Nesse quadro, tem-se o aquífero Guarani que representa a maior reserva de água-doce subterrânea do mundo (50.000 km³ e cerca de 166 km³/ano de recarga), o qual compreende cerca de 839.800 km² no Brasil, 225.300 krn² na Argentina, 71.700 km² no Paraguai e 58.400 km² no Uruguai.
Considerando que o regime de produção de cada poço compreenda um funcionamento de 16 horas por dia e que se verifique uma queda do nível de água no respectivo poço de 50 m, a oferta seria de 8.000 m³/dia ou 8 milhões de litros de água por dia, suficiente para abastecer cerca de 40.000 pessoas por poço, com uma taxa de consumo de 200 litros/dia per capita.
 
Assim, além das águas que fluem pelos rios, a alternativa de abastecimento humano com água subterrânea precisa ser considerada. Pelo fato da água subterrânea poder ser captada no próprio lote do condomínio, da indústria ou no perímetro irrigado e ter, em geral, qualidade adequada ao consumo humano, não tem os custos de transporte ou de tratamento. Por sua vez, a sua extração desordenada atual poderá produzir sérios impactos nas descargas de base dos rios, nos níveis mínimos dos reservatórios, e recalques nos terrenos.
Até a última década do século passado, os indicadores mais seguros de estabilidade e riqueza de uma nação eram suas reservas de petróleo e dos recursos minerais não renováveis. Atualmente, esses indicadores são questionados por estrategistas de mercado, em relação à água, recurso natural renovável no mundo, mas não inesgotável e de valor econômico em muitas partes da Terra.
A partir da última década, principalmente, considera-se que a cobrança pelo direito de uso da água é uma forma de se conseguir um uso cada vez mais eficiente. No Brasil, em particular, embora se ostente a maior descarga de água-doce do mundo nos seus rios, lutar pelo uso cada vez mais eficiente da gota d'água disponível é lutar contra a pobreza, pela vida, pela saúde e pela comida para todos (Rebouças, 2002C).
No Brasil, o comprometimento da renda per capita com a conta d'água e esgoto já representa cerca de 1%, considerando-se as tarifas e os níveis de atendimento atuais. Supondo-se a extensão para toda a população brasileira do serviço de coleta e tratamento de esgotos, e cobrando-se as tarifas atuais, a conta d'água e esgoto chegaria a 2% da renda per capta, Enquanto isso, nos países desenvolvidos, o comprometimento da renda per capita com a conta d'água e esgotos varia entre 0,3 e 0,8% do seu valor (SEDU/PR, 2002).
A TRANSPOSIÇÃO DE BACIAS HIDROGRÁFICAS NO BRASIL
A alternativa de transporte de água entre bacias hidrográficas diferentes, como a realizada entre as bacias do Rio Piracicaba e Alto Tietê, para abastecimento da cidade de São Paulo ou, no Nordeste, como o Rio São Francisco - Jaguaribe, ou entre as bacias dos rios Tocantins e São Francisco, por exemplo, precisa ser avaliada à luz do arcabouço - legal e institucional - vigente, em especial a Lei Federal n° 9.433/97, que impõe viabilidade ambiental e social, dentre outras, além do simples equacionamento hidrológico-técnico ou hidráulico. Deve-se levar em conta, também, os novos conhecimentos hidrológicos disponíveis.
Assim, caberá aos comitês de bacia hidrográfica a decisão sobre o que se vai fazer com a água disponível no respectivo setor geográfico. Dessa forma, tendo em vista as grandes perdas de água por evaporação, no Nordeste semiárido, parece que a alternativa mais viável seria transportar o excedente de energia hidrelétrica gerada na bacia do Tocantins para a bacia do Rio São Francisco, e fazer um uso múltiplo cada vez mais eficiente da água disponível na região, tal como para abastecimento da população, saneamento básico, irrigação e produção hidrelétrica.
A experiência tem mostrado, por exemplo, que as perdas por evaporação de água no reservatório de Sobradinho, no Rio São Francisco, são da ordem de 500 m³/s, enquanto a vazão media do Rio Colorado, nos Estados Unidos, é de apenas 400 m³/s e base do uso múltiplo na Califórnia e Arizona, principalmente, há aproximadamente 200 anos, pelo menos. Por sua vez, o método tradicional de espalhamento superficial de água no Nordeste semiárido - 56% da área de perto e 3 milhões de hectares irrigados no Brasil - é como derramar água no solo para evaporar (Telles, 2002).
Portanto, no Nordeste semiárido, a utilização desse método tem como decorrência uma produtividade agrícola progressivamente mais baixa, porque a evaporação intensa da água espalhada no solo forma a sua crescente salinização e consequente perda de produtividade. Assim, em termos de eficiência da atividade, em USD por m³ de água utilizado, a sua prática tem revelado ser, além de crime ambiental, uma tolice econômica (PROCEAGRl, 2000).
No entanto, a utilização do pivô central e da aspersão convencional, respectivamente 19% e 18% da área irrigada, de perto de 3 milhões de hectares no Brasil, tem se revelado pouco recomendada, tanto em termos de eficiência econômica USD por m³ de água, quanto de uso intensivo de energia hidrelétrica para bombeamento, recalque ou pressurização da água que é fornecida. Assim, sobre perto de 93% dos quase 3 milhões de hectares irrigados no Brasil, utilizam-se os métodos menos eficientes do mundo de uso da água (Telles, opr cit.).
A cobrança da conta mensal referente ao consumo de energia elétrica pelas atividades de irrigação em Iguatu, Ceará, por exemplo, serviu para mostrar ao usuário que, mesmo quando a água pode ser bombeada livremente de poços, rios ou de açudes, ela não é gratuita. A propósito, tanto no Nordeste quanto no Estado de São Paulo, verificou-se que o mercado só remunera a produção das culturas irrigadas quando a eficiência econômica da atividade é superior a 1,0 USD por m³ de água fornecido. Isso significa produção de frutas e flores no Nordeste semiárido, cuja eficiência econômica do cultivo pode atingir mais de 6,0 USD por m3 de água utilizado (BN, 1999). Contudo, a irrigação tradicional de arroz, milho, soja e feijão no Nordeste apresenta eficiências econômicas muito baixas, entre 0,01 e 0,20 USD por m3 de água utilizado, e consumos de água entre 8.000 e 21.000 m³/ano por hectare (BN, op. cit.). No Estado de São Paulo, a viabilidade econômica fica restrita aos cultivos de café e frutas plantadas de forma mais densa, isto é, menos espaçadas, e com consumo de água variando entre menos de 5.000 e 7.000 m³/ano por hectare, principalmente (Rebouças, 2002C).
Basta lembrar que a Organização Mundial de Saúde - OMS - estima que cada USD investido em saneamento básico, representa uma redução de 4 a 5 USD em despesas com o tratamento das doenças de veiculação hídrica que afetam a maioria da população do Terceiro Mundo, fundamentalmente. Não obstante, verifica-se que, tanto os poderes da república e executivo, legislativo ou judiciário - quanto os partidos políticos no Brasil, parecem não considerar esse aspecto como uma prioridade e que sem água não se faz saneamento básico.
TRANSFORMAÇÃO DEMOGRÁFICA E ÁGUA NO BRASIL
O mundo experimentou uma inusitada transformação demográfica a partir da Revolução Industrial, cujo início verificou-se na Grã-Bretanha durante o século XVIII e começou a estender-se às outras partes da Europa e à América do Norte no início do século XIX. No Brasil, essas transformações só aconteceram a partir de 1940 e, mais propriamente, na segunda metade do século XX (tabela 2).
 
A Revolução Industrial gerou um grande aumento na produção de vários tipos de bens e grandes mudanças na vida e no trabalho das pessoas, destacando-se o crescimento desordenado da demanda localizada da água, grandes desperdícios e a degradação da sua qualidade em níveis nunca imaginados nas cidades, indústria e agricultura. Todos esses aspectos são, certamente, importantes fatores que engendraram a "crise da água", que se anuncia como capaz de dar origem a guerras entre nações, ainda neste século XXI.
O que interessa em definitivo ao cliente ou usuário é que o fornecimento da água seja regular e que o preço cobrado seja o justo. Em outras palavras, o que lhe interessa é que o fornecimento seja feito sem racionamento ou operação rodízio, sem grandes índices de perdas totais que, no Brasil, variam entre 40% e 60% da água captada, tratada e injetada nas redes de distribuição. Que seja estimulada a redução dos grandes desperdícios - tanto pela substituição de equipamentos obsoletos, tais como bacias sanitárias que necessitam de 18-20 litros por descarga, quando se tem no comércio tipos mais modernos que exigem apenas 6 litros de água, quanto pelo hábito de banhos muito longos, varrer calçadas, pátios e carros com o jato da mangueira, por exemplo.
Entretanto, chama a atenção a inércia política que faz com que, em nenhum momento, os poderes constituídos da nação, bem como os partidos políticos, tenham considerado como prioritários os problemas ocasionados pela falta de saneamento básico nas cidades.
O fato é que as estatísticas indicam que mais de 90% da população é servida pela rede de distribuição de água. Porém, omite-se a precariedade dos serviços de saneamento básico no Brasil - oferta irregular de água, falta de coleta e tratamento de esgotos e de coleta e deposição adequada do lixo que se produz nas cidades. Além disso, o vexatório saneamento básico nas cidades brasileiras é significativo gerador das doenças que afetam, principalmente, a população mais pobre e um dos mais fortes impedimentos ao desenvolvimento do País com justiça social.
Como a experiência nos países desenvolvidos tem mostrado que a parte mais sensível do corpo humano e o bolso, uma das recomendações do Banco Mundial (BM) e da Organização das Nações Unidas (ONU) para reduzir o desperdício e a degradação da qualidade da água é considerá-la como um recurso natural de valor econômico, ou seja, uma mercadoria com preço de mercado, como estabelece, aliás, o terceiro princípio da Lei Federal brasileira n° 9.433/97.
Diferentemente do petróleo, a água do Planeta Terra é um recurso natural renovável, mas que precisa ser usado com eficiência cada vez maior, evitando-se a degradação da sua qualidade. Em termos globais, não devera faltar água-doce no mundo( Entretanto, a distribuição dessa água é muito irregular, é crescente o desperdício e a degradação da sua qualidade atinge níveis alarmantes. Dessa forma, muito embora não possa faltar água no mundo, poderá faltar água na sua torneira, à medida que poderá faltar dinheiro para pagar a conta do fornecimento da água limpa de beber.
O PROBLEMA NO NORDESTE SEMIÁRIDO DO BRASIL
Ao se deixar um copo d'água num aposento durante alguns dias, este poderá secar, à medida que as moléculas de água situadas na superfície do líquido se liberem daquelas mais abaixo e subam ã atmosfera na forma de vapor. Quando um líquido evapora de uma superfície, esta se torna mais fria porque a sua transformação em vapor consome calor. Dessa forma, um ventilador elétrico produz uma sensação de esfriamento, porque a corrente de ar ocasiona uma rápida evaporação da água que é engendrada pela nossa transpiração. O calor gasto na transpiração ou suor é fornecido pelo nosso próprio corpo. Essa mesma regra é valida quando nos dias quentes se borrifa água nas calçadas de uma rua, para se obter uma sensível queda das temperaturas, já que a evaporação da água borrifada consome calor.
O ar pode conter maior quantidade de vapor de água nos climas quentes do que nos frios. Assim, a quantidade de vapor ou umidade pode ser muito alta nas regiões tropicais, enquanto em clima mais frio decresce bastante. A 32°C pode haver o dobro da quantidade de vapor de água na atmosfera do que a 21°C, por exemplo. Assim, construir pequenos açudes no Nordeste semiárido do Brasil ou grandes obras em locais inadequados, utilizar métodos de irrigação como espalhamento superficial, aspersão convencional e pivô central, poderá significar espalhar água para evaporar, enquanto esses métodos de irrigação são perfeitamente eficientes noutras condições climáticas. Assim e que os baixos coeficientes de utilização dos grandes açudes construídos no semiárido do Nordeste no Estado do Ceará, ficando entre 1,6 e 39,4%, corroboram a assertiva de que pagamos, efetivamente, à natureza um alto "preço" pela acumulação em açudes mal dimensionados da água disponível no semiárido (Vieira, 2002).
Quanto aos métodos de irrigação mais utilizados no Brasil - espalhamento superficial (56%), pivô central (19%) e aspersão convencional (18%) e, são, certamente, os mais fotogênicos, mas se inserem dentre os menos eficientes no mundo (Telles 2002) Todos esses aspectos precisam ser levados em consideração nos processos de uso inteligente da água. No semiárido do Nordeste do Brasil, por exemplo, o problema hidrológico não é que chove pouco - entre 400 e 800 mm/ano - mas que evapora muito - entre 1.000 e mais de 3.000 mm/ano (Rebouças, 1973, 1997 & Macedo, 1996).
As secas no Nordeste semiárido do Brasil poderiam ser definidas como o processo que é gerado pela ocorrência das chuvas em regime incompatível com as necessidades das culturas de subsistência, tais como milho e feijão (Rebouças & Marinho, 1970, Rebouças, 1973, 1997). Durante os anos de seca, a ocorrência das chuvas é particularmente irregular (Rebouças, 1997). Essa irregularidade é bem dimensionada pelo coeficiente de variação - relação percentual entre o valor médio da pluviometria e o seu desvio padrão - cujos valores nos anos de seca situam-se entre 45% e 70%, enquanto no resto do Brasil o coeficiente de variação das chuvas fica entre 15% e 20% todos os anos. Assim, se as chuvas ocorressem de forma regular, não seriam suficientes para atender às altas taxas de evaporação. Decorrente da irregularidade das chuvas na sua região semiárida, principalmente, esta não é um deserto. Tem-se na região a "seca verde”, ou seja, aquela em que as águas das chuvas intensas infiltram nos solos rasos da região e dão suporte à explosão do verde da caatinga, embora não sejam suficientes ou adequadas ao desenvolvimento das culturas de subsistência, tais como o milho e o feijão.
Há anos em que predomina o escoamento superficial do excedente hídrico criado pela grande intensidade de ocorrência das chuvas, quando os rios, praticamente secos durante a maior parte do ano, se transformam em caudalosos cursos de água que enchem os açudes.
Durante os últimos 150 anos, milhares de açudes rasos e dezenas de outros profundos foram construídos pelo Governo Federal, pelos Governos estaduais, em cooperação ou por particulares, no Nordeste semiárido do Brasil. Lamentavelmente, verifica-se que muito investimento improdutivo e operacionalmente não sustentável foi feito, seja porque os grandes e pequenos açudes mais servem para evaporar água do que para regularizar a sua oferta, seja porque os grandes açudes, que poderiam ser uma fonte confiável de água, não se integraram numa política pública de uso racional da água, uma vez que os meios necessários nunca foram sequer construídos - sistemas de adução, canais e adutoras, por exemplo - para conduzir água para onde a maior parte da população da região vive e trabalha. Assim, o açude de Orós, orgulho do Ceará, teve sua construção concluída em 1958, mas só recebeu uma tomada de água 20 anos depois.
Esse problema está sendo parcialmente resolvido através da construção de adutoras, pelo PROÁGUA, programa financiado pelo Banco Mundial. Uma dessas adutoras deverá atender à cidade de São Raimundo Nonato, Piauí, que sempre sofreu racionamento de água nos anos de seca, apesar de distar somente 43 km do açude Petrônio Portela, cuja capacidade de armazenamento é de 181 milhões de m³, e mais 10 localidades, beneficiando uma população de cerca de 60.000 pessoas. Lamentavelmente, no caso da adutora Potiguar, verifica-se a preferência por uma grande obra fotogênica para levar água do açude Armando Ribeiro Gonçalves de Açu para abastecer a cidade de Mossoró, enquanto a solução mais barata de abastecimento público é destinada a beneficiar o setor privado do cimento e da agricultura irrigada.
Além dos açudes públicos, em cooperação ou privados, cuja capacidade de estocagem é da ordem de 30 bilhões de m³, outro tanto de água poderia ser ofertado pelos milhares de poços inoperantes por razões diversas. Os poços foram perfurados ao longo das últimas décadas, principalmente pelo Governo Federal, sem o devido equacionamento institucional, isto é, sem que uma solução tenha sido sequer cogitada para fazer a operação e manutenção do próprio poço, da bomba submersa, do cata-vento ou compressor e, caso exista, do dessalinizador.
Os métodos de irrigação tradicionais consomem muita água - arroz, 21.000 m³/ano por hectare, milho 17.000 m³/ano por hectare e feijão 8.000 m³/ano por hectare - enquanto para produzir uva o consumo de água é inferior a 5.000 m³/ano por hectare, por exemplo. Por outro lado, a eficiência econômica da produção de grãos é muito baixa - USD/m³ -, variando entre 0,01 para o arroz, 0,04 para o milho e 0,20 para o feijão, enquanto a produção de frutas pode atingir USD/m³ de água ofertada de 6,10. Assim, o mercado da agricultura irrigada no Nordeste semiárido verifica que o consumo de água inferior a 5.000 m³/ano por hectare é ótimo, entre 5.000 e 7.000 m³/ano por hectare bom, entre 7.000 e 10.000 m³/ano por hectare como valor limite e crítico, quando o consumo de água fica acima de 10.000 m³/ano por hectare (BN, 1999). Desse modo, o fato de a ANA considerar para outorga taxas entre 1 e 2  l/s por hectare ou entre 31.500 e 63.000 m³/ano por hectare, parece que privilegia o desperdício ou não considera os limites impostos pelo agronegócio de viabilidade econômica da agricultura irrigada no Nordeste (BN, 1999).
Deve-se atentar para o fato de que o reduzido grau de desenvolvimento do Nordeste tem a ver, certamente, com a ocorrência de secas na sua região semiárida, mas não tanto quanto se veicula costumeiramente ou faz crer o discurso oficial. Como o Brasil ostenta uma pobreza endêmica no Nordeste semiárido, principalmente, torna-se vulnerável à crise de água ou de outra qualquer. É evidente que, se os habitantes do bairro dos Jardins, São Paulo, migrassem para Guariba, no Piauí, a primeira providência seria estabelecer uma urbanização adequada, água encanada, coleta de esgotos e de lixo, para qual não faltaria grupo econômico interessado em investir, uma vez que a população poderia pagar. Assim, o problema maior do Nordeste semiárido, cujo Índice de Exclusão Social é um dos mais vexatórios (fig. 10), é a falta de condições para sua crescente população superar os níveis de pobreza (Campos et al, 2003).
 
Basta considerar que, se fosse a seca realmente a causa do atraso do Nordeste, ter-se-ia um grande desenvolvimento a partir da sua Zona da Mata Litorânea, do Agreste, dos Brejos de Altitude e do Piauí, cuja taxa de disponibilidade de água nos seus rios é de perto de 9.000 m³/ano per capta, ou seja, a mesma de um norte-americano, por exemplo. Nessas áreas não se têm maior falta de água do que normalmente se tem no Brasil chuvoso ou no mundo em geral. A nosso ver, os efeitos negativos, de natureza econômica e social, que são atribuídos às secas periódicas que assolam a região, estão relacionados, mais propriamente, à estrutura reguladora de mercado (Rebouças, 1997).
Assim, salvo melhor juízo, na Grande Seca que assolou o Nordeste semiárido do Brasil no período de 1876-79, a fome em massa foi uma tragédia política evitável, não um desastre natural. Senão, como explicar o fato de que, no século em que a fome em tempo de paz desapareceu para sempre da Europa Ocidental, esta tenha aumentado de forma tão devastadora em grande parte do mundo colonial, e de modo especial nas regiões assoladas pelas secas (Carvalho, 1988).
Do mesmo modo, como pesar as presunçosas afirmações sobre os benefícios vitais das estradas e dos modernos mercados de grãos, quando tantos milhões de pessoas, sobretudo na Índia britânica, morreram ao lado dos trilhos das ferrovias ou nos degraus dos depósitos de grãos, ao mesmo tempo em que a produção de grãos das áreas assoladas pelas secas era vendida aos consumidores europeus, cujos preços e formas de pagamento eram mais do interesse do mercado da época.
Quase sem exceção, os historiadores modernos que escrevem sobre a história mundial do século XIX, de um privilegiado ponto de vista europeu ou americano, principalmente, têm ignorado as megassecas e fomes que assolaram o que agora chamamos de Terceiro Mundo.
A UNESCO, coordenadora do Decênio Hidrológico Internacional - 1965-1975, e a partir de então Programa Hidrológico internacional (PHI), estima que, na pior das hipóteses, sete bilhões de pessoas em 60 países estarão enfrentando falta de água na metade deste século, Na melhor das hipóteses, serão dois bilhões de pessoas em 48 países nessa situação. Isso vai depender do desenvolvimento de políticas públicas de uso e conservação da água disponível e de uma drástica mudança de mentalidades.
Os problemas de atitude e comportamento - tanto dos governos, quanto das empresas e da sociedade, em geral - são componentes essenciais da crise da água. Além disso, a inércia dos dirigentes e o fato de a população mundial não ter consciência total da dimensão do problema, indicam que se torna necessário tomar medidas corretivas com urgência (UNESCO, 2003)
Dessa forma, tanto o Banco Mundial quanto as Nações Unidas, consideram que o princípio da cobrança pelo direito de uso da água, poderia ser uma medida indutora do seu uso mais racional, de combate aos desperdícios e degradação da sua qualidade, cujos níveis já alcançados nunca foram imaginados. Esses cenários vêm sendo estudados desde a década de 1980 pelos estrategistas do mercado global, que passaram a pressionar - por meio do FMI e Banco Mundial, principalmente - a criação de mecanismos que possibilitassem a cobrança, nos termos do usuário/pagador ou do poluidor/pagador, das águas dos rios, das nascentes, dos poços, das águas de reciclagem ou de reúso das águas.
É evidente que, nessa abordagem, as necessidades vitais de abastecimento do indivíduo deverão ser, preliminarmente, consideradas. No plano nacional estabelece-se que todo individuo terá direito a um consumo de 40 litros por dia per capita. Em termo internacional, a tendência é considerar 50 litros por dia per capita. Entretanto, se o indivíduo vai ter o benefício de uma rede coletora de esgotos, a experiência mostra que não se pode pensar numa taxa de consumo diário interior a 100 litros per capita (Hespanhol, 2003).
De qualquer forma, o conceito de água como dádiva inesgotável da natureza e um bem da humanidade vem sendo modificado desde os anos 80. O bem comum passa, então, a ser tratado como mercadoria para consumo, com preço de mercado. Isso vem ocorrendo desde o momento em que os principais centros financeiros do mundo se deram conta de que a importância de uma nação passaria pela utilização mais eficiente da água, ou seja, como uma mercadoria.
O problema de abastecimento de água no Brasil não é devido à falta de água, mas ao quadro de pobreza endêmica que atinge a maior parte da sua população, a qual não pode pagar pelo serviço de captação, transporte, tratamento e distribuição da água limpa para beber. A mais importante arma contra a privatização dos serviços de saneamento é a eficiência, tanto no mundo quanto no Brasil. Em outras palavras, considerando que os investimentos públicos necessários foram realizados – tanto para construção de obras de captação, adutoras de transporte, estações de tratamento, quanto para implantação das redes de distribuição que atendem perto de 90% da população – conseguir que a água chegue regularmente na torneira de cada um e com qualidade garantida, são as metas que tanto atraem os grupos financeiros nacionais ou internacionais. Na maioria dos países do mundo, onde se trem a universalização da oferta de água – 90% da população são abastecidas e o serviço de coleta de esgotos atende cerca de 80% - as perdas totais de água, tais como vazamento físico das redes de distribuição e falta de faturamento por causa do roubo de água, principalmente, atingem coeficientes razoáveis de 5 a 15%. Por sua vez, pode-se beber a água que chega à torneira e as empresas de saneamento – oferta d'água, coleta e tratamento de esgotos, coleta e disposição adequada do lixo que se produz nas cidades, geralmente - são públicas.

Anexos


(ÁGUA NO BRASIL.docx - 427.65 Kb)

por João Suassuna última modificação 19/02/2016 14:22

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