terça-feira, 29 de outubro de 2013

Manifesto: Riscos previsíveis e conseqüências incalculáveis da Transposição.

Primeiro manifesto à Nação, sobre as questões da Transposição do Rio São Francisco, realizado por Apolo Lisboa (Idealizador e coordenador do Projeto Manuelzão) e colaboradores. Esse manifesto deu início à saga das discussões havidas, sobre o polêmico projeto da transposição do Velho Chico, até o presente momento.


Publicado em : 18 de Mai de 2005
Manifesto: Riscos previsíveis e conseqüências incalculáveis da Transposição
Manifesto ao País

A TRANSPOSIÇÃO DAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO
Riscos previsíveis Conseqüências incalculáveis

Brasília, 29 de novembro de 2004.

Sob todos os aspectos, a transposição das águas do rio São Francisco representa uma decisão equivocada, insustentável em termos políticos e técnicos sérios, com riscos econômicos, éticos e ambientais previsíveis e com conseqüências incalculáveis.

Do ponto de vista hidrológico, esses riscos decorrem dos limites impostos pela utilização das suas águas para fins de geração de energia e irrigação. Do total alocável de 360 m³/s, já se encontram efetivamente alocados 335 m³/s, caso os usos outorgados sejam de fato implementados. Não são disponíveis, portanto, os 63 até 127 m³/s requeridos para a transposição.

Energeticamente, numa conjuntura de escassez e horizonte de crescimento da demanda por energia, será necessário transpor elevadas altitudes e bombear água a grandes distâncias. Considerando-se, para cálculos, a vazão média de 63,5 m³/s, a potência instalada no conjunto (cerca de 9.000 MW) é reduzida proporcionalmente de 3,4%, isto é, de 313 MW. Acrescendo-se aí a potência instalada para elevação desta vazão de 63,5 m³/s a 165 m, que corresponde (somente no Eixo Norte da transposição, em Cabrobó, abaixo de Sobradinho), aproximadamente a 66% do primeiro dado, tem-se: 313 MW (potência instalada perdida nas hidrelétricas) mais 207 MW (potência instalada necessária à elevação) igual a 520 MW. Esta potência equivale a 1,31 da potência instalada em Três Marias (396 MW) e a 1,18 da potência instalada em Moxotó (440 MW), numa conjuntura de escassez de energia, o que inviabiliza a transposição em termos energéticos e em termos de custo do ha irrigado.

Economicamente deve se levar em consideração o elevado custo da água para atividades agrícolas nas bacias pretendentes das águas do São Francisco, tendo em vista a previsão de R$ 0,11 por m³ ofertado quando comparado aos valores praticados na região de Petrolina e na própria bacia do São Francisco, da ordem de R$0,023 por m³, já computado o custo do bombeamento para as propriedades. Esse fato é ainda mais grave quando se considera que a água disponível no Nordeste em açudes e outros aquíferos é suficiente para satisfazer o dobro da demanda atual para abastecimento público e irrigação.

Sob a ótica ambiental, a história de decisões semelhantes em outros contextos revela desastres ecológicos irrecuperáveis. No caso da bacia do rio São Francisco, particularmente previsíveis, são os riscos de salinização do solo e de perda de água através da evaporação.

A água, como direito humano fundamental, decorre do fato de ser um elemento essencial à vida e, por isso mesmo, considerada bem social. Desse ponto de vista, as políticas administrativas têm tratado a questão com ênfase na água como bem econômico, o que acarreta a exclusão de grande parte da população. A gestão participativa no manejo e uso da água, tendo no comitê das bacias hidrográficas o seu instrumento, é a política indicada e desejável para se administrar com êxito a questão das águas no Brasil. Nesse contexto, a transposição das águas do rio São Francisco constitui-se em mais uma tentativa de consolidar a atávica política de privilégios e exclusão social.

Obs: Esta introdução não prescinde e nem substitui a necessária leitura do documento que se segue.

Riscos previsíveis
Conseqüências incalculáveis

Brasília, 29 de novembro de 2004.

Há bacias com demandas totais de água importantíssimas (consumo doméstico, indústrias, irrigação, geração de energia hidrelétrica, principalmente) conseguindo gerir suas necessidades. Outras bacias têm excedente de água (bacias potencialmente doadoras). E há bacias com pouca água ou com má gestão para atendimento destas demandas (bacias potencialmente receptoras).

São três os requisitos essenciais para a transposição racional de água de uma bacia hidrográfica para outra, com finalidade de irrigação: haver uma bacia ou uma área com terras irrigáveis, mas com escassez de água (bacia receptora). Haver outra bacia com muita água sobrando e sem terras para irrigação (bacia doadora). Haver uma relação custo-benefício aceitável para a transposição ser feita (por gravidade ou pequena altura de elevação, com transporte a menores distâncias, etc). E que seja socioambientalmente aceitável.

Na bacia do São Francisco todos estes três requisitos são negativos. Vale lembrar que, basta um único ser desfavorável para tornar qualquer projeto de transposição uma aberração ou uma anomalia. Visto isso, e pelo exposto a seguir, pode-se, em resumo, concluir que o projeto da transposição apresenta três contradições ou características básicas:

Projeto desnecessário (inútil).

Projeto inviável econômica e socialmente e com alto custo ambiental.

Projeto prejudicial ao Nordeste e ao Brasil.

O rio São Francisco nasce em Minas Gerais indo para o Nordeste, numa providencial transposição natural de águas, levando deste Estado aproximadamente 75% do volume total de suas águas. No vale do São Francisco falta irrigar terras de boa qualidade e planas, a um custo bem menor, por falta de investimentos na infra-estrutura agrícola, de apoio técnico aos pequenos produtores e a poluição dos rios. Além disso, há necessidade de água para hidrelétricas, abastecimento humano, produção animal e sobrevivência dos ecossistemas aquáticos da bacia. O potencial irrigável da bacia é de mais de três milhões de hectares, dos quais 340.000 ha já estão efetivamente irrigados, achando-se o mesmo em constante processo de ampliação - a exigir mais água e energia. E como conceder novas outorgas aqui se elas já foram concedidas para acolá, como previsto na lógica do projeto de transposição?

No Plano Decenal de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do São Francisco consta que, de um total alocável de 360 m³/s, já se encontram efetivamente alocados 335 m³/s, caso os usos já outorgados sejam de fato implementados. Dessa forma, restaria o saldo de apenas 25 m³/s para os múltiplos usos de suas águas, seja na bacia ou mesmo para uso externo a ela (um volume diminuto, se comparado ao elevado custo inicialmente previsto do projeto de transposição, avaliado em cerca de US$ 5,5 bilhões e mais um bilhão que seria para a revitalização).

Na esfera energética o rio São Francisco é responsável pela geração de mais de 95% da energia elétrica do Nordeste, sendo o seu potencial instalado, hoje estimado em 10.800 MW, quase que integralmente explorado pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF). Com a atual perspectiva de crescimento do PIB Nacional em cerca de 4% ao ano (possível e não improvável), isso poderá traduzir-se num crescimento da demanda anual de energia em cerca de 6%. Com essa situação é de se esperar que, nos próximos 12 anos, seja necessário dobrar a oferta anual de energia elétrica para o Nordeste, hoje estimada em cerca de 50 milhões de MWh. Portanto, em 2016 o Nordeste necessitará de 100 milhões de MWh para dar continuidade ao seu desenvolvimento. Desta feita, torna-se patente a existência de um real conflito no uso das águas do rio, principalmente entre o demandado pela irrigação e aquele utilizado na geração de energia em todo o Nordeste. É nesse cenário de conflito e de penúria hídrica que se pretende retirar do rio o volume necessário para abastecer cerca de 8 milhões de pessoas no Nordeste, que já contam com volumes superiores às suas necessidades acumuladas nos açudes.

Considerando-se, para cálculos, a vazão média de 63,5 m³/s, prevista na transposição, que corresponde a 23,4% da vazão alocável menos o uso atual consuntivo estimado (360-92=269 m³/s), e a 3,4% da vazão regularizada de Sobradinho (1.815 m³/s), a potência instalada no conjunto (cerca de 9.000 MW após Sobradinho) é reduzida proporcionalmente de 3,4%, isto é, de 313 MW. Acrescendo-se aí a potência instalada para elevação desta vazão de 63,5 m³/s a 165m, que corresponde (somente no Eixo Norte da transposição, em Cabrobó, abaixo de Sobradinho), aproximadamente a 66% do primeiro dado, tem-se: 313 MW (potência instalada perdida nas hidrelétricas) mais 207 MW (potência instalada necessária à elevação) igual a 520 MW. Esta potência equivale a 1,31 da potência instalada em Três Marias (396 MW) e a 1,18 da potência instalada em Moxotó (440 MW), numa conjuntura de escassez de energia, o que inviabiliza a transposição em termos energéticos e em termos de custo do ha irrigado.

Ao lado desse indesejável risco hidrológico, a proposta existente no projeto de transposição do rio São Francisco menciona que o sistema apenas estará em seu pleno funcionamento no momento em que estejam preenchidos 94% da capacidade da represa de Sobradinho (principal reservatório regularizador das vazões do rio), o que significa, numa avaliação ao longo dos últimos anos desde a inauguração desta obra, que apenas será possível a utilização de todo o sistema de sete em sete anos (Sobradinho verteu em 97 e voltou a verter em 2004) ou 15% do tempo, o que reforça a desproporção entre o custo e o benefício da obra.

Vale, porém, ressaltar que o projeto prevê uma vazão contínua de 26 m³/s, embora o conjunto terá capacidade para 127 m³/s, prevendo-se o aproveitamento das sobras da represa de Sobradinho, que pode ocorrer uma vez em cada 7 a 10 anos. É um projeto inimaginável, altamente perdulário e desprovido de qualquer senso de realidade. Imaginem as obras (grandes estações de bombeamento, tubulações, comportas, imensos canais, aquedutos, instalações elétricas etc) superdimensionadas de 26 para 127 m³/s para operar apenas alguns dias cada 7 a 10 anos!

Outra questão merecedora de atenção diz respeito ao elevado custo da água para as atividades agrícolas nas bacias receptoras das águas do rio São Francisco, tendo em vista a previsão de R$ 0,11 por m³ ofertado, constante nos estudos de impactos ambientais do projeto, quando comparado aos valores praticados na região de Petrolina (PE), na própria bacia do São Francisco, pela Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio São Francisco (CODEVASF), da ordem de R$ 0,023 por m³, já computado o custo do bombeamento da água posta nas propriedades. Deve-se observar ainda que o valor estimado da água na transposição (R$ 0,11/m³) não contempla o custo do bombeamento desde a fonte exportadora até as propriedades existentes nas bacias receptoras, o que elevará ainda mais esse valor, tornando-o proibitivo para fins de irrigação. Os juros a uma taxa de 6% ao ano, sobre o montante de 5,5 bilhões de dólares que previram para a transposição, precisam ser contabilizados no custo do hectare irrigado, que seremos obrigados a subsidiar.

O semi-árido do Nordeste tem precipitação média anual de 500mm de chuvas, ou seja, 500 milhões de litros por km². É quantidade não desprezível, pouco aproveitada por agricultores dispersos e pelas populações dos aglomerados urbanos, pela carência de recursos técnicos de manejo de água de chuva e de outras tecnologias de uso local sustentável. O sistema de açudes, criado pelo Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) a partir de 1909, é composto de mais de 400 açudes públicos de médio e grande porte e em torno de 70 mil reservatórios particulares de pequeno porte, com capacidade acumulativa de aproximadamente 37 bilhões de m³ de água, incluindo o mega açude Castanhão, recentemente inaugurado no Ceará. Isto é suficiente para irrigar mais de 700 mil ha no semi-árido. Até hoje a água desses açudes irriga menos que 120 mil ha.

Relatório de uma comissão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), divulgado em maio de 2001, diz que o RN, cujo território está 90% no semi-árido, tem 90% das águas concentradas nos rios Açu e Apodi, justamente os dois rios que receberiam as águas de uma transposição. Só a barragem do Açu vem regularizando uma vazão de 12 a 14 m³/s, o suficiente para atender ao dobro do consumo da população atual do RN. Já o Apodí armazena menos de 10% de suas possibilidades hídricas. Por isso, o Primeiro Plano Estadual de Recursos Hídricos do RN não recomendou a importação de água de outros Estados.

Carlos Matos, ex-secretário de Agricultura do Ceará, em texto publicado na revista Item, nº 51, 3º trimestre de 2001, afirma que: "Atualmente o Ceará tem 62.000 ha de área irrigada, com um potencial para chegar a 170.000 ha dentro do programa de agricultura irrigada. Este potencial do Estado pode ser comparado ao do Chile, que possui 180.000ha irrigados e ao de Israel, com 200.000 ha". Carlos Matos rejeita que o avanço seja calculado apenas com base no crescimento da área física. Ele disse que hoje a área física irrigada não é o mais relevante e, sim, o quanto ela gera de renda. "Eu posso, perfeitamente, ter 1.000 ha de rosas, gerando mais renda do que 20.000 ha de uma cultura sem valor agregado. O grande problema é como agregar valor à água que está disponível". O rio Jaguaribe, por exemplo, onde a simples substituição da irrigação de arroz por melão em Iguatú-CE, já liberaria 5-6 m³/s de água do Açude de Orós, vazão suficiente para abastecer racionalmente cidade do porte de Fortaleza-CE.

Uma área de 100.000 hectares irrigada, na base mínima de 5 ha/família, assentaria no máximo 20.000 famílias ou cerca de 100.000 habitantes. Considerando-se que um emprego direto na irrigação corresponde a mais dois indiretos, seriam 300.000 pessoas direta e indiretamente beneficiadas pela irrigação. Numa população de cerca de 20 milhões de habitantes nos quatro estados nordestinos, os resultados da transposição beneficiariam direta e indiretamente 1,5% da população total.

No Eixo Norte da pretendida transposição, haveria necessidade de um recalque de 165 metros de altura e transportar esta água por um canal de concreto, ou utilizando alguns leitos naturais de rios, num percurso de mais de 2 mil quilômetros em condições de elevada evaporação e infiltração, vencendo vales, montanhas, atravessando rios. Cada hectare irrigado neste faraônico projeto deixará no mínimo dois a três hectares sem possibilidades de irrigação nas margens do São Francisco, com as perdas na transposição e da não recuperação de parte das águas, ocorrida quando se irriga dentro do próprio vale.

Além dos gastos com obras de engenharia em túneis, estações de bombeamento, construção de canais, manutenção e operacionalização do sistema, juros e amortizações sobre o capital, estes 63,5 m³/s de transposição anunciados (Eixo Norte e Eixo Leste), se bombeados 24h/dia, durante 9 meses por ano, produziriam 1,45 bilhões de m³ ao ano ou seja, menos de 3,9% dos 37 bilhões da capacidade instalada dos açudes. É importante salientar que o Eixo Leste foi criado para permitir uma articulação política com os Estados do Leste, visando apoio ao Eixo Norte, que é para projetos de irrigação.

O rio São Francisco foi mutilado por hidrelétricas, pelo lançamento de todo tipo de efluentes e rejeitos da produção, pelo desmatamento geral e a expansão urbano-industrial. Tornou-se uma bacia mecânica, sobretudo após a represa de Sobradinho. Além de assombroso assoreamento que continua, provocando crescente escassez de água nas reservas subterrâneas e no fluxo dos rios. Os peixes (indicadores de qualidade ambiental) estão praticamente desaparecendo, comparando-se com os registros históricos. A água tem sido vista quase sempre como recurso hídrico para fins setoriais, dissociada do ciclo hidrológico, não como produto geo-eco-sistêmico de uma gestão sustentável das bacias.

Consideramos uma eventual transposição como mais grave para o Brasil que as fracassadas Transamazônica e Ferrovia do Aço, obras mandadas realizar à revelia da vontade popular. É importante destacar três aspectos mais: o ambiental puro, o geopolítico e o geológico.

Quanto ao ambiental puro, é necessário alertar para argumento completamente infeliz segundo o qual a entrega de águas ao mar é considerada uma espécie de desperdício. Dessa visão, que deriva de uma percepção limitada utilitarista-comercial da água, parece que ela só está no Planeta a serviço de dessedentar e de participar da elaboração de produtos alimentícios e industriais, quando sua função geoambiental é muito mais ampla. Seguindo por aí, de gota em gota desviada, o Colorado, rio do porte do São Francisco, em certas épocas do ano não entrega uma só ao mar no golfo da Califórnia, já em território mexicano. A propósito, uma das ações de revitalização mais importantes do rio São Francisco é recuperar o transporte de sedimentos ao longo do rio, porque ele faz muita falta ao mar, o que pode ser feito usando um pouco de inteligência, promovendo sucção do lodo do fundo por sifonamento, transpondo a barragem e sem causar o menor dano abrasivo às turbinas.

No plano geopolítico, o Brasil transpôs em 1926 águas do alto Tietê-Pinheiros para Cubatão, onde fez uma bela usina, e nos anos 60 fez Furnas, transpondo para o São Francisco as águas do Pium-í, que eram do rio Grande. Quando decidiu construir Itaipu, a Argentina fez exigências pesadas de compensações em parte por causa das citadas transposições. Se o Brasil fizer a transposição do São Francisco, não estará apenas desrespeitando, mais uma vez, e agora internamente, direitos naturais de ribeirinhos que há muito deveriam constar do formal, porque estará expondo-se, na condição de País de jusante, a derivações semelhantes e de grande porte do Alto Amazonas para a vertente do Pacífico, por exemplo, a partir do Rio Marañon, sem nada poder fazer, porque estará manietado pela transposição do São Francisco, que de fato estabelecerá uma doutrina segundo a qual transposições podem ser feitas.

Do ponto de vista geológico essas transposições são de fato transferências de patrimônio territorial, assim: se fosse possível transferir fisicamente as águas termais de Caldas Novas (GO) para Minas Gerais ou as jazidas de petróleo do Iraque para o Texas (EEUU), o efeito seria o mesmo, porque seriam transferências de fatores essenciais da sustentabilidade que caracterizam os territórios. No caso da transposição do Alto Amazonas, sem perder essa característica essencial, a transposição de pouca água seria muito representativa em volume de sedimentos, que é a matéria prima da construção de territórios mediante o processo geológico. Isto aconteceria porque a região andina representa apenas 12% da bacia Amazônia, mas responde por 84% do sedimento transportado pelo rio, que, por sua vez, responde pela estabilidade de margens do Amazonas, de costas de ilhas como Marajó e até da costa nordeste setentrional da América do Sul até a foz do rio Orenoco para onde as correntes marinhas levam o sedimento do Amazonas.

Havendo estes bilhões de dólares anunciados generosamente para a transposição, que se aplique na revitalização, na promoção de saúde, na educação pública e na gestão adequada do semi-árido. Somente em casos bem especiais de abastecimento humano um fornecimento de água se justificaria. Concordamos com a posição do Comitê de Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), autorizando outorga para dessedentação, desde que comprovadamente necessária, esgotados os recursos hídricos locais. Mas nada de obra faraônica para outros fins, usando para isto o falso argumento "humanitário". Não podemos esquecer que há gente passando sede ou tomando água suja tanto no semi-árido nordestino, nas proximidades dos grandes açudes, como às margens do rio São Francisco em Minas e na Bahia. O argumento de matar a sede do nordestino por meio da transposição não procede. A indústria da seca está mascarando as verdadeiras causas da miséria. Para saciar realmente a sede dos sertanejos basta construir pequenas adutoras e obras hidráulicas a partir das águas armazenadas nos açudes já construídos. Para saciar, porém, a insaciável sede dos industriais das secas, aí serão necessárias grandes e caríssimas obras, como as planejadas nestas transposições. Analogamente, temos visto prosperar nas grandes cidades a indústria da enchente, onde se joga fora dinheiro público rubricado como do saneamento em obras desnecessárias de drenagem com canalizações de rios. A promoção de enchentes é seguida de obras de contenção de enchentes.

Em Minas Gerais, temos o Projeto Jaíba. Nas margens do rio São Francisco, com menos de 20 m de recalque e 600 m de canal de chamada, a água alcança o terreno a ser irrigado e todo o excesso de irrigação retorna ao rio. Com tudo isso (projeto barato e viável), as obras, iniciadas em 1973 e previstas para terminarem em 1979, caminham, por falta de recursos, a passos lentos, alcançando, em 2004, apenas uns 15.000 hectares da área programada para a irrigação de 100.000 ha.

Não há excedente de água no Rio São Francisco, pois seu volume total, inclusive prevendo-se todas as barragens necessárias à sua plena regularização, não seria suficiente para regar mais de 3 (três) milhões de hectares de suas terras planas, próprias para irrigação, já levantadas pela CODEVASF, em parceria com o "U.S. Bureau of Reclamation" dos Estados Unidos. Deve-se observar que estas áreas se localizam no Médio e Sub-médio São Francisco, portando dentro do Polígono das Secas. Comparando-se com a bacia do rio Tocantins que tem aproximadamente a mesma área a bacia do rio São Francisco é pobre hidrologicamente. A construção de mais represas para atender à crescente demanda de energia elétrica acabará com o que resta do fenômeno da piracema, reterá mais sedimentos, e alterará ainda mais a turbidez e a temperatura das águas, praticamente acabando com a biodiversidade do rio São Francisco. A vazão artificialmente regularizada através de obras gigantescas (há outras alternativas) eliminou as enchentes sazonais e as lagoas marginais, criatórios naturais dos peixes. O argumento de que o rio São Francisco está com a mesma vazão de séculos atrás, devido ao papel regularizador das barragens, não pode esconder o fato de que as nascentes, os ribeirões e afluentes maiores do rio São Francisco estão secando e todo o rio com seus barramentos sendo significativamente assoreados.

Essas questões, em si, são graves e de interesse nacional. Parece-nos muito estranho o fato de o projeto da transposição das águas do rio do São Francisco estar sendo discutido, elaborado e encaminhado à revelia da sociedade brasileira e, de modo especial, da população afetada.

Impõe-se a revitalização da bacia do rio São Francisco, sem condicioná-la à transposição. A revitalização prioriza a adoção de cuidados na gestão das águas e dos ecossistemas, a adequação técnica dos usos e formas de ocupação do solo ao ciclo hidrológico, sobretudo em regiões como o semi-árido. Somente uma absoluta ignorância técnica ou interesses espúrios de consultores e de empreiteiras, de fazer obra pela obra, articulados por lobbies políticos e empresariais, pode explicar este projeto de transposição.

O governo Lula precisa ter um pouco mais de sensibilidade no trato de temas polêmicos e importantes como esse, onde costumam entrar em cena os anseios de boa parte da população brasileira. A transposição será um grande atoleiro para o País, afundando a sociedade e o governo. A advertência está feita.

É, no mínimo, muito estranha a tendência do governo federal de minar o papel dos comitês de bacia na gestão ambiental das águas, de forma compartilhada e integrando empresários, governo e movimentos sociais, marco do avanço democrático institucional do Brasil, sem precedentes em nossa história. Configura-se um retrocesso político inaceitável o tratamento que está recebendo o CBHSF, e a utilização de métodos anti-democráticos de aprovação da transposição, forçando a aprovação no Conselho Nacional de Recursos Hídricos onde o governo tem total controle, e sem exame do projeto nas suas Câmaras Técnicas. Um governo democrático não pode agir assim, tratorando a dimensão política da questão e desconhecendo a rejeição generalizada do projeto pela sociedade. Esta atitude afronta totalmente o Plano de Recursos Hídricos recentemente aprovado pelo CBH do São Francisco e a Carta de Princípios deste Comitê. São lamentáveis as posturas política e técnica da Agência Nacional de Águas, da Secretaria Nacional de Recursos Hídricos, dos Ministérios da Integração Regional e do Meio Ambiente. Estamos assistindo na violência da transposição imposta à sociedade a destruição de nosso incipiente Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e o início de uma aventura sem retorno.

Tiveram participação especial na estruturação deste texto, além de diversas entidades e técnicos que o subscrevem, os seguintes especialistas: Alberto Daker (MG), Aldo Rebouças (SP), João Abner Júnior (RN), João Suassuna (PE), Apolo Heringer Lisboa (MG), Edézio Teixeira de Carvalho (MG), Luiz Roberto Santos Moraes (BA), Marco Antonio Tavares Coelho (SP).


ENTIDADES QUE ASSINAM:

1. Projeto Manuelzão/UFMG - MG
2. Instituto Guaicuy - SOS Rio das Velhas - MG
3. Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas - MG
4. Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco
5. Fundação Joaquim Nabuco – Recife/PE
6. Fundação Gilberto Freyre – Recife/PE
7. Associação Mineira de Defesa do Ambiente (AMDA) - MG
8. Laboratório de Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental da UFRN – Natal/RN
9. Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais
10. ONG Mãos Limpas - MG
11. Amigos Associados de Ribeirão Bonito (AMARRIBO) - SP
12. Fundação Brasil Cidadão - CE
13. Instituto Baía de Guanabara - RJ
14. Greenpeace - Belo Horizonte/MG
15. Associação de Maricultores de Palhoça - SC
16. Fé Social - BA
17. Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (AQUASIS) - CE
18. Agência Brasileira de Gerenciamento Costeiro – Santos/SP
19. Associação Vila-Velhense de Proteção ambiental (AVIDEPA) - ES
20. Instituto Baleia Jubarte - BA
21. Associação MarBrasil - PR
22. Grupo de Recomposição Ambiental (GERMEN) - BA
23. Centro Golfinho Rotador - Fernando de Noronha/PE
24. Pró-Mar - Ilha de Itaparica/BA
25. Coalizão Internacional da Vida Silvestre - SC
26. Associação Civil de Recursos Hídricos (CIBAPAR) - MG
27. Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Paraopeba - MG
28. Fórum Mineiro de Comitês de Bacia - MG
29. Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais/UFMG (GESTA) -MG
30. Escola Mangue – Recife/PE
31. Associação Rede Cananéia - SP
32. Instituto Recifes Costeiros - PE
33. Grupo Ambientalista da Bahia (GAMBÁ) - BA
34. Fórum Brasileiro de ONG's e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento – Brasília/DF
35. Amigos da Prainha do Canto Verde - CE
36. Instituto Terramar – Fortaleza/CE
37. Instituto Pró-Rio Doce - Governador Valadares/MG
38. Associação Caatinga – Fortaleza/CE
39. Centro de Estudos AMBIO - SP
40. ONG 4 Cantos do Mundo - Belo Horizonte/MG
41. Amigos do Meio Ambiente – Muriaé/MG
42. Fórum de Defesa do Rio São Francisco - SE
43. Geolurb - Geologia Urbana e de Reabilitação - Belo Horizonte/MG
44. Fórum Mineiro de ONGs - MG
45. Movimento Verde de Paracatu – Paracatu/MG
46. Fundação Relictos – Ipatinga/MG
47. Vibra-Mais - Vida para a Bacia do Ribeirão Arrudas - Meio Ambiente e Integração Social – Belo Horizonte/MG

Novas adesões a partir de 29/11/2004
ENTIDADES QUE ASSINAM:


48. Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES) – MG
49. Sindicato dos Geólogos no Estado de Minas Gerais (SINGEO) – MG
50. Comissão da Produção Orgânica no Estado de Minas Gerais - MG
51. Associação Preparando Pessoas (APP ) – Indaiatuba/SP
52. Liga de Entidades Ambientalistas da Bahia (LIGAMBIENTE) - BA
53. Associação dos Moradores de Mapele (AMAPELE) - Simões Filho/BA
54. Instituto Baía de Todos os Santos (IBTS) – Salvador/BA
55. Associação dos Amigos do Parque São Bartolomeu Pirajá (AAPSB/P ) - Salvador/BA
56. ONG Sócio Ambientalista (CURURUPEBA) - Madre de Deus/BA
57. OURIÇO - Grupo Ambientalista – Salvador/BA
58. Sociedade Movimento Trem de Ferro – Salvador- BA
59. Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais (AATR) – Salvador/BA
60. ABENC - BA
61. ABONG - BA
62. ADS
63. Associação dos Engenheiros Agrônomos do Estado da Bahia (AEABA) - Salvador/BA
64. Assembléia Permanente de Entidades em Defesa do Meio Ambiente do Estado da Bahia (APEDEMA) - BA
65. Articulação do Semi-Árido (ASA) -
66. Centro de Assessoria do Assuruá (CAA) - Gentio do Ouro/BA
67. Cáritas Brasileira
68. Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE) – Salvador/BA
69. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB NE III)
70. Colônia de Pescadores de Remanso - BA
71. Colônia de Pescadores de Casa Nova - BA
72. Colônia de Pescadores de Pilão Arcado - BA
73. Colônia de Pescadores de Sento Sergipe e Bahia
74. Comissão Pastoral dos Pescadores – Salvador/BA
75. Consulta Popular
76. Comissão Pastoral da Terra (CPT/BA) – Salvador - BA
77. Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CREA/BA) - Salvador/BA
78. Central Única dos Trabalhadores (CUT) - BA
79. Federação dos Trabalhadores na Agricultura (FETAG) - BA
80. FUNDIFRAN
81. Grupo de Resistência Rural e Ambiental (GARRA) – Irecê/BA
82. IDA
83. IRPAA
84. Instituto Ambiental da Bahia (IAMBA) – Salvador/BA
85. Movimento de Cidadania Pelas Águas – Correntina/BA
86. Movimento Paulo Jackson - Ética, Justiça, Cidadania - Salvador/BA
87. Ordem dos Advogados do Brasil (OAB ) - BA
88. Pólo Sindical do Submédio São Francisco - PE/BA
89. SASOP
90. SENGE - BA
91. SINDAE - BA
92. SINERGIA - BA
93. SINFRAJUPE - BA
94. SINJORBA
95. Fundação de Estudos e Pesquisas Aquáticas (FUNDESPA)
96. Grupo de Apoio Itaparicano Ambiental e Humanístico (GAIAH) - BA
97. Federação das Ong's da Ilha de Itaparica e Região - BA
98. Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO)
99. Amigos da Justiça Ambiental (AJA) - RJ
100. Assembléia Permanente de Defesa do Meio Ambiente (APEDEMA) - RJ
101. Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (ABREA)
102. Associação em Defesa dos Reclamantes e Ultimados por Doença de Trabalho na Cadeia Produtiva do Alumínio - ADRUT –PA
103. Associação dos Moradores da Lauro Miller e Adjacências (ALMA) – RJ
104. Associação de Vítimas do Césio (VC) - GO
105. Associação Caeté - SC
106. Associação de Moradores de Barão de Iriri - Magé/RJ
107. Associação de Combate aos POPs (ACPO) - SP
108. Associação Livre para Gerenciamento Ambiental (ALGA)
109. Associação Projeto Roda Viva – RJ
110. Brasil Sustentável e Democrático
111. Centro de Estudos Ambientais (CEA)
112. Central Única dos Trabalhadores (CUT)
113. Comissão Pastoral da Terra (CPT)- MT
114. Central Única dos Trabalhadores (CUT) – RR
115. Centro de Estudos de Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana – CESTEH/ENSP/FIOCRUZ – RJ
116. Coalizão Rios Vivos -MS
117. Comissão dos Atingidos pela Barragem de Irapé –MG
118. Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) – RJ
119. Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) – ES
120. ECOA - MS
121. FASE
122. Federação de Entidades Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN) - AM
123. Fórum para o Desenvolvimento e Meio Ambiente (FORMAD) - MT
124. Fórum em Defesa da Zona Costeira do Ceará/CE
125. Fundação Centro Brasileiro de Referência e Apoio Cultural (CEBRAC) – DF
126. Fundação Viver Produzir e Preservar – PA
127. Grupo de Estudos sobre Temáticas Ambientais GESTA/UFMG) - MG
128. Instituto Brasileiro de Análises Sócio Econômicos (IBASE)
129. Instituto de Estudos Sócio Econômicos (INESC) - DF
130. Instituto Terrazul - CE
131. Laboratório de Estudos de Cidadania, Territorialidade, Trabalho e Ambiente -ICHF/UFF – RJ
132. Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) - Manso
133. Movimento Cultura de Rua – CE
134. Movimento das Quebradeiras de Coco Babaçu - MA
135. Observatório de Conflitos Ambientais - CHILE
136. Os Verdes/Movimento de Ecologia Social – RJ
137. Rede Alerta contra o Deserto Verde ES/BA/RJ/MG
138. Rede Ecosocialista Caiçara Cubatão/SP
139. Rede Virtual Cidadã pelo Banimento do Amianto
140. OILWATCH (EQUADOR)
141. Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo/SP
142. Sindicato de Petroleiros de Caxias - RJ
143. Sindicato dos Químicos de Bacarena - PA
144. Sindicato de Trabalhadores Rurais de Porto de Moz – PA
145. Sindicato dos Químicos Unificados - Osasco, Campinas, Vinhedo e Região
146. Sociedade Praense de Defesa dos Direitos (SDDH) – PA
147. Terra de Direitos – PR
148. Conselho Pastoral dos Pescadores
149. Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN) - Porto Alegre/RS

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por João SuassunaÚltima modificação 29/10/2013 10:17

sábado, 26 de outubro de 2013

Seca revisitada

Pesquisadores explicam origem do fenômeno que atinge semiárido nordestino e comentam suas consequências sociopolíticas.


Por: Henrique Kugler
Publicado em 24/10/2013 | Atualizado em 24/10/2013
“A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas”, escreve Graciliano Ramos em ‘Vidas secas’. Hoje, porém, não se vê o êxodo em massa de camponeses. (foto: Leo Nunes/ Wikimedia Commons – CC BY-SA 3.0)
Sol escaldante no semiárido nordestino. A inclemência das secas há tempo arrasa a terra e a vida do sertanejo. Ainda assim, “apesar das dolorosas tradições que conhece através de um sem-número de terríveis episódios, ele alimenta a todo transe esperanças de uma resistência impossível”, narrou Euclides da Cunha (1866-1909) em Os sertões. Esse texto é de 1902. De lá para cá muito mudou, mas ainda hoje a complexidade do sistema climático continua a desafiar a ciência; e as consequências da seca na região ainda nutrem acirrados debates entre acadêmicos, técnicos e gestores.
Como entender a origem das agruras climáticas que afligem o Nordeste de nosso país? “As secas costumam ser ocasionadas por dois fenômenos climatológicos de escala global”, explica o climatologista José A. Marengo, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O primeiro deles é o El Niño. Trata-se de um aquecimento incomum das águas superficiais do oceano Pacífico – o que origina, na costa oeste da América do Sul, índices de evaporação e precipitação bastante elevados.
E, por incrível que pareça, essa mudança ocasional em um oceano distante é capaz de alterar, também, os padrões de circulação atmosférica no território brasileiro. Uma das consequências do El Niño é o decréscimo – por vezes radical – no regime das chuvas sobre o Nordeste de nosso país. A periodicidade desse fenômeno natural é incerta, mas ele costuma ocorrer em ciclos de dois a sete anos.
Por incrível que pareça, uma mudança ocasional em um oceano distante é capaz de alterar, também, os padrões de circulação atmosférica no território brasileiro
O segundo fenômeno responsável pelas sucessivas secas na região tem um nome ligeiramente mais complicado: é o que climatologistas chamam de variação do gradiente de temperatura da superfície do Atlântico Tropical. O conceito é bastante simples. De tempos em tempos, as águas do Atlântico Tropical Norte – região oceânica entre o Equador e a latitude 15° Norte – ficam mais aquecidas que as águas do Atlântico Tropical Sul – localizado entre o Equador e a latitude 15° Sul. Isso acarreta notórias alterações nas zonas de precipitação.
“Onde temos águas mais quentes, há mais evaporação; e maiores taxas de evaporação favorecem a formação de chuvas”, ensina Marengo. Quando as águas do norte se aquecem, portanto, a precipitação tende a se concentrar por lá – abandonando parte do Atlântico Tropical Sul e reduzindo significativamente o índice pluviométrico do Nordeste do Brasil.
É comum confundir os conceitos de seca e estiagem. Vale o esclarecimento. “O clima da região Nordeste é semiárido, o que significa que o ano é dividido em estações chuvosas e estações de estiagem”, explana Marengo. “Seca é quando não chove nos meses em que deveria chover.” No caso do semiárido nordestino, há expectativa de chuva entre janeiro e junho; e ausência de precipitação é esperada entre julho e dezembro.
“Com nossos sistemas de previsão meteorológica, somos cada vez mais capazes de predizer os períodos de seca”, afirma Marengo (ver ‘Incertas, mas previsíveis’). “Mas não podemos prever seus impactos, pois a falta d’água costuma trazer sérias consequências sociais e políticas.”
Incertas, mas previsíveis
Predizer o clima e o tempo é sempre um desafio para a ciência. “Mas, no caso das secas do Nordeste, os índices de acerto nas previsões têm sido bastante satisfatórios”, comenta Marengo. “Estações meteorológicas automáticas distribuídas nos mares e no continente coletam dados precisos sobre temperatura, pressão e diversas outras variáveis climatológicas”, que permitem aos meteorologistas elaborar cenários com grau razoável de confiabilidade.

Atualmente, porém, mesmo com sistemas sofisticados, não somos capazes de prever o tempo com mais de três meses de antecedência. Por exemplo: em setembro, pode-se ter alguma acurácia nas previsões para outubro, novembro e dezembro. A previsão oficial do governo para o Nordeste é anunciada normalmente em janeiro – quando já se sabe como será o regime de chuvas durante os meses de fevereiro, março e abril.

Uma curiosidade: ainda hoje vivem os chamados ‘profetas da chuva’ – figuras locais que, entre o misticismo e a tradição, lançam palpites sobre o regime pluviométrico do sertão. Marengo confidencia: em algumas reuniões entre meteorologistas, esses inusitados magos do semiárido são convidados a participar. “Em muitos casos, o que eles especulam por métodos tradicionais se aproxima do que nossa ciência prevê”, comenta o pesquisador. “Não há nada de errado no fato de a ciência dar ouvidos à experiência.”


Literatura e realidade

A figura clássica do retirante talvez não exista mais. O camponês castigado pela falta d’água, com seu gado magro a definhar na caatinga, é parte de um momento pretérito que, ao que tudo indica, foi superado. Pelo menos em parte. “Não vemos mais aquele êxodo em massa, como retratado em Vidas secas, de Graciliano Ramos [1892-1953]”, comenta o engenheiro Marcos Freitas, da Agência Nacional de Águas (ANA). Nos idos passados, levas de nordestinos deixavam suas terras e rumavam para as grandes cidades. Hoje, no entanto, a vida dos sertanejos parece menos difícil. “Parte desse sucesso se deve às políticas governamentais de incremento de disponibilidade hídrica”, diz o engenheiro da ANA.
Açudes, cisternas, carros-pipa. São algumas das principais estratégias adotadas nas últimas décadas para atenuar a falta d’água em muitos municípios do semiárido. Méritos ao Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs), vinculado ao Ministério da Integração Nacional (MIN). “É preciso reconhecer os avanços, sim, mas estamos distantes de uma situação ideal e ainda há muito a se fazer”, pondera Freitas.

Amanhecer semiárido

Especialistas estão de acordo: “O que caracteriza a seca no semiárido nordestino não é a falta pura e simples de água, e sim a forma lotérica como as chuvas se distribuem no tempo e no espaço”, explica o engenheiro agrônomo João Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco. Um só trimestre pode registrar até 90% da precipitação anual.
“Desafio, portanto, é armazenar essa água de maneira eficiente e segura para que ela seja distribuída de maneira igualitária durante o ano”, diz Freitas. “Mas não basta armazenar; é preciso atentar para a qualidade da água estocada”, alerta. Esgoto nos rios, resíduos sólidos a poluir cursos d’água são alguns dos problemas que insistem em permanecer em pauta – não somente no Nordeste, mas em todo o Brasil. “Tratamos apenas algo em torno de 60% de nossos esgotos”, diz Freitas.
Água armazenada
Nas últimas décadas, muitos municípios do semiárido têm adotado estratégias para atenuar a falta d’água, como o uso de açudes, cisternas e carros-pipa. (foto: Ana Paula Couto/ MIN)
Outro desafio, segundo ele, é incentivar o uso mais racional dos recursos hídricos na agricultura do semiárido. Os sistemas convencionais acarretam desperdício notório de água. “Por isso devemos incentivar a irrigação por gotejamento ou microaspersão”, sugere o engenheiro. “São muito mais eficientes, pois evitam perdas por evaporação.”
O terceiro grande desafio, para Freitas, é o abastecimento de populações difusas. Aglomerados urbanos, em geral, contam com infraestrutura hídrica satisfatória. Mas habitantes de paragens remotas sofrem. “Longas caminhadas, quilômetros a fio com uma lata na cabeça para buscar água; isso ainda acontece”, lamenta Freitas.
Dado desolador: segundo o engenheiro da ANA, no Brasil perde-se de 30% a 40% de água nos processos de distribuição. Motivo: infraestrutura precária – vazamentos, tubulações avariadas, desvios clandestinos...

Sertão: retrato institucional

A última seca do Nordeste foi registrada em 2012. E os baixos índices pluviométricos de 2013 confirmam: esta seca ainda perdura. Quanto a 2014, pouco se sabe. Previsões de janeiro poderão trazer melhores notícias. Ou não. Segundo Marengo, as secas tendem a durar de um a dois anos. Não é incomum, entretanto, que se estendam por tempo maior. Na década de 1950, por exemplo, a terra sedenta do semiárido permaneceu sob esse regime implacável por nove anos.
Freitas: “O avanço do conhecimento divide as ciências, mas devemos superar a visão compartimentada do saber para solucionar os problemas do semiárido nordestino”
“Mas hoje, mesmo no segundo ano consecutivo da seca, os habitantes da região não têm tido graves problemas de abastecimento”, observa Freitas. É a prova, segundo ele, de que as políticas públicas estão funcionando a contento. “Recentemente, o governo federal ampliou as medidas ao anunciar um aporte de R$ 9 bilhões em uma série de iniciativas, como a prorrogação das operações de crédito rural, a renegociação das dívidas agrícolas e a expansão dos programas Bolsa Estiagem, Garantia-Safra e Operação Carro-Pipa”, informou o MIN à Ciência Hoje. As ações devem atender a mais de 10 milhões de pessoas que vivem nas regiões afetadas pela imprevisibilidade do clima.
“Mas, infelizmente, é comum haver descontinuidade entre um governo e outro”, aponta o engenheiro da ANA. “Um estado ou município pode ter boa estrutura institucional durante um mandato; mas ela pode ser totalmente desmobilizada no governo seguinte.” Para Freitas, as instituições ainda funcionam de forma precária – sem um quadro efetivo de servidores permanentes e concursados.
Para os pesquisadores, a solução para o semiárido requer visão integrada. “O meteorologista preocupa-se com as chuvas; o agrônomo com as culturas agrícolas; o hidrólogo com a vazão dos rios; o economista com os impactos econômicos; e o político poderia auxiliar no planejamento orçamentário e nas negociações de questões federativas”, aponta o engenheiro da ANA. “O avanço do conhecimento divide as ciências, mas devemos superar a visão compartimentada do saber para solucionar os problemas do semiárido nordestino.”
A contenda do velho Chico
Impossível falar de seca no Nordeste sem mencionar a transposição do rio São Francisco. A obra é das mais polêmicas – e tem dividido opiniões desde o início. Um dos maiores críticos ao projeto é o engenheiro João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Segundo ele, a transposição é uma grande fraude técnica. “Ela permanecerá no imaginário como a solução para a seca, e não é”, censura Abner. “Essa obra não vai terminar nunca.” O governo rebate: o MIN informou à Ciência Hoje que a obra estará concluída em 2015.

Um dos pontos de disputa é o fato de que a transposição, segundo seus críticos, é uma obra que beneficiará o grande capital – grandes propriedades agrícolas e industriais –, e não as populações difusas que carecem de abastecimento. “Não é verdade”, contra-argumenta o MIN. “Os canais dos eixos Leste e Norte, por exemplo, levarão a água do São Francisco para 325 comunidades difusas.” Segundo Abner, entretanto, são os financiamentos de campanhas eleitorais – por parte das empreiteiras responsáveis pela obra – que motivam a controversa transposição.

Henrique Kugler
Ciência Hoje/ RJ

Texto originalmente publicado na CH 308 (outubro de 2013).

por João SuassunaÚltima modificação 25/10/2013 10:07

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O equivoco do Projeto de Lei 6.441/2013

Heitor Scalambrini Costa
Professor da Universidade Federal de Pernambuco

Foi apresentado pelo deputado pernambucano Eduardo da Fonte (presidente da Comissão de Minas e Energia), no dia 26 de setembro último, na Câmara dos Deputados, Projeto de Lei nº 6.441 que propõe “criar no âmbito do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), o Conselho de Empreendimentos Energéticos Estratégicos (CNEE), destinado a analisar, avocar e decidir, em última e definitiva instância, o licenciamento dos empreendimentos do setor elétrico considerados estratégicos para o Brasil”.

Se não bastasse Pernambuco contar com um governo que não dá a mínima pelo meio ambiente, outra singular personalidade deste Estado quer sepultar de vez as preocupações multidisciplares e reduzir de vez a interesses paroquiais, o processo de licenciamento ambiental, uma exigência legal (Lei 6.938/81, Resoluções do CONAMA: 001/86 e 237/97, e Lei Complementar 140/11) a que estão sujeitos todos os empreendimentos ou atividades que empregam recursos naturais ou que possam causar algum tipo de poluição ou degradação ao meio ambiente.

O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo pelo qual é autorizada a localização, instalação, ampliação e operação destes empreendimentos e/ou atividades. O PL em questão visa retirar do IBAMA o poder de ser o órgão licenciador de empreendimentos energéticos considerados estratégicos, primeiramente, para o país, não necessariamente para o governo. Hoje, essa função cabe aos órgãos ambientais estaduais ou ao IBAMA, no caso de empreendimentos de grande porte, capazes de afetar mais de um estado, o que costuma ser a regra no setor de energia. Além dos órgãos licenciadores, há os órgãos auxiliares, como as autarquias que cuidam de áreas protegidas e precisam dar um parecer sobre a obra, caso ela afete sua área de atuação. Se uma hidrelétrica atinge uma terra indígena, por exemplo, a FUNAI participa do processo de licenciamento.

Com o novo projeto de lei, o IBAMA e os órgãos auxiliares seriam ouvidos, porém a palavra final ficaria com o novo e poderoso conselho, composto por um representante da Câmara dos Deputados e um representante do Senado Federal; e pelos ministros da Casa Civil da Presidência da República, das Minas e Energia, da Justiça, do Meio Ambiente e da Cultura. Enfim, uma proposta contrária aos interesses nacionais – um grande equivoco, que amplia a ação da “mão pesada do Estado” sobre assunto de elevado conteúdo polêmico e com vasta legislação em vigor, que não está sendo cumprida adequadamente.

A justificativa do nobre deputado é simplória e demonstra uma óbvia falta de conhecimento da realidade complexa que envolve tais empreendimentos. No PL encaminhado, a justificativa é que “o Brasil precisa crescer e se desenvolver para permitir o resgate de nossa imensa dívida social. Para isso, nosso povo precisa de energia elétrica barata”. Ainda afirma que existem entraves e indefinições no processo de licenciamento de empreendimentos elétricos, e que há “demora injustificada, exigências burocráticas excessivas, decisões pouco fundamentadas”. Quantos disparates num só parágrafo!

A iniciativa do deputado da Fonte vem se somar ao Projeto de Lei de iniciativa da Comissão de Assuntos Econômicos, que tramita no Senado Federal, o PLS nº 179/2009, que disciplina o licenciamento ambiental de aproveitamentos de potenciais hidráulicos considerados estratégicos, e institui a Criação de Reservas Energéticas Nacionais.

Como descreve o prof. Célio Bermann, da Universidade de São Paulo, “este processo de criminalização dos movimentos sociais e de redução dos espaços de resistência vem sendo acompanhado de uma sucessão de tentativas de modificação do licenciamento ambiental de empreendimentos hidrelétricos.
 
Estas tentativas e intenções de mudanças e de simplificação do licenciamento ambiental já correram em outros momentos recentes de nossa historia, e acabaram não tendo continuidade. Em janeiro de 2007, o diretor geral da ANEEL anunciou um Projeto de Lei para a criação de Reservas para a Exploração de Potenciais Hidroelétricos, que seriam áreas demarcadas pelo governo, sem considerar as restrições de ordem ambiental. Em seguida, em março de 2007, outro Projeto de Lei foi anunciado com o objetivo de identificação de projetos de centrais hidroelétricas estratégicas que seriam avaliadas por um Conselho de Segurança Nacional (de triste lembrança para os brasileiros), sem passar pelo órgão ambiental federal, o IBAMA. Em dezembro de 2008, mais outro Projeto de Lei, agora proposto pela Secretaria de Assuntos Estratégicos, procurava instituir um procedimento “reduzido” de licenciamento ambiental para obras de infraestrutura definidas como estratégicas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na Amazônia Legal, que teriam um prazo (reduzido a quatro meses) diferenciado daquele estabelecido no art. 14 da Resolução CONAMA nº 237/1997.
Como observa o prof. Bermann “muitos dos empreendimentos sujeitos ao licenciamento ambiental devem a demora do seu licenciamento, ao não atendimento dos prazos pelo próprio empreendedor. Ainda, um número significativo de obras encontra-se paralisado, não por dificuldades de obtenção do licenciamento ambiental, mas por problemas de insuficiência de recursos financeiros para as obras”.

Estas três tentativas anteriores de modificação do licenciamento ambiental revelam como a questão ambiental tem sido menosprezada pelas autoridades, desnudando completamente a contradição entre o discurso com preocupações sociais e ambientais, e a prática na contramão dos interesses das populações.

Novamente o governo Federal volta à carga, tanto no Senado Federal como na Câmara dos Deputados, usando da força política, age de forma torpe para (1) impedir a discussão de interesses locais, regionais e nacional, para (2) remeter a decisão para Conselhos antidemocráticos, com ampla maioria de ministros do Governo; e, também, para (3) dificultar a ação legítima e democrática do Ministério Público, sempre que este julgar necessário intervir.

No caso do PL 6.441/2013, espera-se que o deputado da Fonte não leve adiante este desserviço às gerações presentes e futuras de nosso país, e, de modo sensato, retire o seu projeto.
 

Equívocos da transposição do Rio São Francisco.

Empreiteiras ávidas por mais recursos, obras paradas, cronograma adiado, problemas com licitações, aumento bilionário nos custos, canais rachados, túneis desabando, deslizamento de solo, empregos frustrados e caatinga devastada envolvem a transposição do Rio São Francisco. Já se coloca em dúvida se um dia a obra terminará e, ainda mais grave, vai se confirmando a denúncia da ineficácia da transposição para levar água aos que mais dela precisam.



“A transposição do Rio São Francisco se transformou em um grande atoleiro e eu não vejo nenhuma perspectiva de ela ser concluída, pois as obras estão praticamente paradas em vários trechos”, declara João Abner, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em entrevista ao IHU. Segundo ele, “nenhum agricultor que, hoje, recebe água do carro-pipa receberá água da transposição desse rio, porque a água vai escoar em grandes rios, vai para as maiores barragens da região e será utilizada pelo agronegócio”.
Nos últimos dias, a transposição do São Francisco voltou ao noticiário pelo viés do escândalo em que se transformou. A transposição já é o mais caro dos projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Só no governo Dilma Rousseff, os preços aumentaram 71% e saltaram para R$ 8,2 bilhões. A obra se transformou num “ralo do dinheiro público”.
Na opinião de João Abner, “com um terço do custo da transposição do rio São Francisco seria possível construir um grande sistema de abastecimento de água para atender a todo o Nordeste e abastecer todas as casas da região”.
A obra se transformou num mico nas mãos de Dilma, uma das heranças malditas deixadas por Lula. Na opinião de João Suassuna, engenheiro-agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife, a transposição caracteriza-se como um “projeto tecnicamente ruim, socialmente preocupante e politicamente desastroso”.
‘O bispo tinha razão‘
Aos poucos vai se confirmando tudo o que os movimentos sociais, cientistas e especialistas diziam da obra: “A transposição do São Francisco é um erro”. Entre as várias vozes que se levantaram contra a transposição, uma, sobretudo é lembrada, a de dom Luiz Cappio, bispo de Barras (BA). Cappio em seus dois jejuns, em 2005 e 2007, chamou a atenção para os equívocos da obra e profetizou que a mesma era um grande erro e que não seria concluída.
Em uma das entrevistas que concedeu ao IHU, em 2008, dom Luiz Cappio afirma “a transposição não irá acontecer porque é mentirosa, anti-ética, anti-socal, injusta e economicamente inaceitável”. Cappio dizia na oportunidade: “O projeto é socialmente injusto porque vai beneficiar um pequeno grupo, enquanto que projetos alternativos podem beneficiar quase toda a população do Nordeste do semi-árido. Ela é ecologicamente insustentável porque, enquanto o projeto de transposição agride a realidade do Rio São Francisco, os projetos alternativos são altamente sustentáveis. E a transposição é eticamente inaceitável porque é mentirosa, enquanto os projetos alternativos estão aí para poder atender as necessidades do povo”.
Em outra entrevista ao IHU em 20120, Cappio reafirmou: “O tempo mostra a verdade de todas as coisas e vai mostrar o significado da nossa luta”.
“O bispo tinha razão…”, diz o sociólogo Rubens Siqueira da Comissão Pastoral da Terra na Bahia e da articulação São Francisco Vivo. Lembrando o bispo, relata: “’Quando a razão se extingue, a loucura é o caminho’. Com esta ideia, o bispo franciscano de Barra–BA dom Luiz Cappio justificava seus dois jejuns, em 2005 e 2007, contra o projeto de transposição, em defesa do Rio São Francisco e do semiárido brasileiro. Dizia que o projeto, além de ignorar o mal estado do rio, visava, como sempre no Nordeste, concentrar água, terra e poder, levaria dinheiro público para o ralo e votos para urnas e – vaticínio profético? – não seria concluído”.
“E não é que, não à parte a loucura, ele tinha razão! Quatro anos e meio depois de iniciado, o projeto capenga, confirmando as críticas do bispo, de cientistas respeitados e dos movimentos populares. O próprio sertanejo da região ‘beneficiada’, até aqui iludido com a mítica promessa, começa a desconfiar”, destaca Rubens Siqueira.
Transposição, boa apenas para a indústria da seca
A transposição do São Francisco até o momento foi boa apenas para a indústria da seca, destaca João Abner na entrevista ao IHU. Segundo ele, “a indústria da seca é uma espécie de colonialismo que predomina no Nordeste há séculos. Quer dizer, os projetos para distribuir água no Nordeste são pensados fora da região e têm a intenção de capturar recursos públicos. O Programa de Açudagem do Nordeste mostra isso. As obras pensadas para o Nordeste são descoladas de um plano de desenvolvimento e têm um fim em si mesmas”.
Continua o professor da UFRN, “a  transposição do rio São Francisco segue essa mesma lógica. O governo e as empresas querem construir o maior açude possível no Nordeste e depois pensar o que será possível fazer com ele. Para funcionar, a transposição do rio precisa de mais investimento. Além disso, durante o período em que a obra ficou parada, os canais construídos se arrebentaram e terão de ser refeitos. Portanto, essa é a estratégia das elites do Nordeste: criam um projeto de desenvolvimento para se apropriarem de recursos públicos”.
Segundo Abner, “o mal menor seria terminar logo a transposição do rio para mostrar que a obra não tem nada a ver com o desenvolvimento do Nordeste, que não foi feita para acabar com o carro-pipa, que não vai servir para nada. Assim, ao menos ela ficaria exposta como um monumento para denunciar a indústria da seca. O problema é que, enquanto a obra estiver sendo construída, não será possível discutir um projeto específico e alternativo para o Nordeste”. Porém, o professor considera que “a indústria da seca não tem interesse que essa obra seja concluída, porque, quando ela for concluída, a indústria da seca será desmascarada”.
Além de alimentar a indústria da seca, a transposição quando pronta, ou parcialmente pronta, beneficiará o agronegócio ou o hidronegócio.
“Essa história de associar a transposição com a seca é a maior fraude que existe. O projeto é para (…) uso econômico. Na verdade, a água da transposição será utilizada para consumo industrial (na região litoral e metropolitana) e para consumo agrícola”, diz João Abner na entrevista.
Críticas do movimento social se confirmam
As principais críticas ao projeto feitas desde 2005 vão se confirmando. Rubens Siqueiralembra e enumera as denúncias feitas pelo movimento social, pesquisadores e especialistas que estão se comprovando:
1. A obra seria muito mais cara que o previsto: de 5 bilhões iniciais já estão reajustadas em 6,8 bilhões, um aditivo de 1,8 bilhões, 36% em média. Há lotes ainda não re-licitados, o que vai onerar ainda mais o preço final.
2. Não atenderia a população mais necessitada: efetivamente, não pôs uma gota d’água para nenhum necessitado; antes desmantelou a produção agrícola local por onde passou.
3. O custo da água seria inviável: hoje o governo reconhece que o metro cúbico valerá cerca de R$ 0,13 (poderá ser ainda bem maior), seis vezes maior que às margens do São Francisco, onde muitos irrigantes estão inadimplentes por dívidas com os sistemas de água. Para ser economicamente viável, este preço terá que ser subsidiado, e é certo que o povo pagará a conta;
4. Impactaria comunidades indígenas e quilombolas: comunidades quilombolas impactadas são 50 e povos indígenas nove. As demarcações de seus territórios foram emperradas, patrimônios destruídos. No caso dos Truká, em Cabrobó – PE, em cuja área o Exército iniciou o Eixo Norte, o território já identificado é demarcado se aceitarem as obras.  No caso dos Tumbalalá, em Curaçá e Abaré – BA, na outra margem, se aceitarem a barragem de Pedra Branca. Ainda não foi demarcado pela FUNAI o território Pipipã e concluído o processo Kambiwá, a serem cortados pelos futuros canais, ao pé da Serra Negra, em Pernambuco, monumento natural e sagrado de vários povos. Muitas destas comunidades resistem. Em Serra Negra povoado e assentamento de reforma agrária não admitem as obras em seu espaço.
5. Destruiria o meio ambiente: grandes porções da caatinga foram desmatadas. Inventário florestal levantou mais de mil espécies vegetais somente no Eixo Leste.
6. Empregos precários e temporários: como sintetizou o cacique Neguinho Truká, “os empregos foram temporários, os problemas são permanentes”. Em Cabrobó, nada restou da prometida dinamização econômica, só decepção e revolta. Nas cidades por onde a obra passou ficou um rastro de comércio desorientado, casas vazias, gente desempregada, adolescentes grávidas…
7. Arrastadas no tempo, a obra se presta a “transpor” votos e recursos: não debela, antes realimenta a “indústria política da seca”. Nova precisão de data para conclusão: 2014! Vem mais uma eleição aí, em 2012, outra em 2014…
8. Faltam duas das consequências graves a serem totalmente comprovadas, que só teremos certeza se a obra chegar ao fim: vai impactar ainda mais o rio São Francisco e não vai levar água para os necessitados do Nordeste Setentrional. Enfim, a Transposição é para o agro-hidronegócio e pólos industriais do Pecém (CE) e Suape (PE).”
“Está provado que a transposição do rio São Francisco é uma obra que não serve para o Nordeste. Quer dizer, tudo o que se falou anteriormente está sendo comprovado na prática”, comenta João Abner, concordando com o diagnóstico do movimento social.
O principal e mais forte argumento do governo, de que a obra garantiria a segurança hídrica na região semi-árida a 12 milhões de pessoas virou uma falácia. Segundo João Abner,“existem dois discursos: de que a água seria usada para consumo humano e para uso econômico. Mas a primeira fraude diz respeito ao beneficiamento de 12 milhões de pessoas. Nós fizemos um levantamento das populações que possivelmente serão atendidas pelos sistemas adutores, que captam a água das bacias que receberão a água da transposição do rio São Francisco, e contabilizamos três milhões de pessoas”.
“A outra mentira, diz ele, é que essa água não irá perenizar rios secos. Essa água só será despejada na cabeceira dos dois maiores rios do Nordeste, ou seja, será despejada fora do rio São Francisco e do Parnaíba, que é onde se concentram 70% das reservas típicas da região”. “Então, essa história de associar a transposição com a seca é a maior fraude que existe”.
As sucessivas denúncias de que as obras da transposição estavam abandonadas levaram recentemente Dilma Rousseff à região. Para os integrantes da CPT em Floresta/PE, a visita da presidenta Dilma foi uma tentativa estratégica de dar resposta às inúmeras críticas feitas ao megaprojeto e de provocar uma comoção nacional de que a obra não estava abandonada. Foi logo após a visita de Dilma à região que uma série de novas licitações começaram a serem elaboradas e os custos da obra explodiram.
Desde 2005, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, através do seu sítio, da revista IHU On-Line e publicações especiais como os Cadernos IHU, deu espaço e voz a inúmeros estudiosos e lideranças sociais sobre a análise do caráter e natureza da obra. Em centenas de reportagens, artigos e entrevistas, o IHU contribuiu para o debate da polêmica da transposição. Destacamos aqui a publicação Cadernos IHU em formação – A transposição do Rio São Francisco em debate publicada em 2008 que condensou amplo material sobre o tema.
Desde o anúncio da obra, somamo-nos às inúmeras vozes para alertar sobre o equívoco da transposição do Rio São Francisco. Em 2005, o IHU publicava a Revista IHU On-Line edição 159 – Salvar o Velho Chico: uma luta que se revitaliza. À época, muitos contestaram o porque de tanto espaço a um tema regional, ou mesmo não compreenderam e criticaram a postura do IHU de contestação ao projeto – símbolo de uma nova Era no país, a do modelo neodesenvolvimentista capitaneado por Lula. Passados mais de seis anos, como diz domCappio, “o tempo mostra a verdade de todas as coisas”.
(Fonte: http://www.ecodebate.com.br)
 
 
por João SuassunaÚltima modificação 17/10/2013 15:02

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